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FIM DA GUERRA (por enquanto) EM NAGORNO KARABAKH

Armênia e Azerbaijão assinaram, no último dia 10 de novembro, um acordo para cessar as ações militares e pôr fim a este capítulo do conflito que envolve os dois países já há duas décadas.

Com a intermediação do presidente russo Vladimir Putin, o Primeiro-Ministro da Armênia, Nikol Pashinyan, e o Presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, concordaram em congelar a situação tal como ela se encontrava no dia 10 de novembro; ou seja, os avanços de tropas cessariam e a posse das regiões de Nagorno-Karabakh passariam a ser das tropas que controlassem o território naquela data.

Além disso, ficou acordado que os armênios deverão se retirar de sete províncias em território azerbaijano, as quais estavam controladas pelos armênios desde a guerra de 1991-94, e que tropas russas – em torno de dois mil homens – seriam desdobradas na região para separar os lados em conflito e garantir os termos do acordo.

O mapa abaixo facilita o entendimento do tratado.

Mapa adaptado pelo autor com base no existente em https://www.dhakatribune.com/

 

Em verde, no mapa, pode-se observar a área retomada pelas forças do Azerbaijão, que em uma manobra estratégica de flanco, pelo o Sul, conseguiram conquistar a cidade de Shusha, importantíssima do ponto de vista estratégico, uma vez que domina o corredor de Lachin, por onde os armênios abasteciam Nagorno-Karabakh com toda a sorte de suprimentos. Ao Norte, em terreno montanhoso e de progressão muito mais difícil, os ganhos territoriais azerbaijanos foram muito menores.

Foi uma vitória militar do Azerbaijão, sem dúvidas. Mas não uma vitória completa, visto que 2/3 do território de Nagorno-Karabakh permanecem sob controle da minoria armênia. Por alguma razão ainda não totalmente clara, os azerbaijanos não prosseguiram para a conquista da cidade de Stepankert, mais importante de toda a região, a apenas 11 quilômetros de Shusha. Certamente, esse prosseguimento estava no planejamento operacional, porque seria o natural objetivo para o aproveitamento do êxito decorrente da conquista de Shusha. Especula-se que a derrubada acidental, pela artilharia antiaérea do Azerbaijão, de um helicóptero russo sobre território armênio, no mesmo dia da conquista de Shusha, com a morte da tripulação, tenha desencadeado uma resposta mais assertiva dos russos no sentido de que poderiam entrar ao lado da Armênia se o conflito não fosse imediatamente interrompido.

De qualquer forma, o Azerbaijão comemora uma vitória pelas armas, que resulta no retorno à sua soberania de áreas de seu território perdidas na guerra de 1991/94 e que, por quase trinta anos, tentou recuperar por vias diplomáticas, sem sucesso. Isso aconteceu, em grande parte, por uma conjunção de fatores.

O primeiro deles foi o apoio decisivo da Turquia, tanto em recursos materiais quanto diplomáticos. Além disso, suspeita-se do envio pelos turcos de combatentes, recrutados na Síria para lutar ao lado das tropas azeris.

O segundo aspecto foi a neutralidade russa. A Armênia sempre contou com o apoio russo, com quem possui um acordo militar de segurança mútua, para dissuadir o Azerbaijão de uma aventura militar. Entretanto, desde que o Primeiro-Ministro Nikol Pashinyan assumiu o governo da Armênia, em 2018, o país adotou uma postura pró-ocidente, de aproximação da Europa, que contrariou os interesses russos. A neutralidade foi uma maneira bastante clara de a Rússia manifestar sua insatisfação.

O terceiro aspecto foi a inação dos EUA e da Europa. Enquanto os norte-americanos estavam totalmente concentrados em seu processo político interno de eleições presidenciais, os europeus mantinham-se completamente incapazes de atuar como um bloco coeso e permaneceram hesitantes em intrometer-se em problemas na área de influência russa.

Dada a conjunção de fatores acima, o Azerbaijão se sentiu à vontade para atuar militarmente, colocando em prática a máxima clausewitzniana de que a guerra é a continuação da política por outros meios.

Mas essa guerra travada no Cáucaso serve de alerta para uma realidade que poderá ser observada em outras partes do mundo. A emergência de uma ordem global multipolar, ao mesmo tempo em que há um enfraquecimento dos organismos multilaterais, multiplica os riscos de conflitos. Novas potências globais ou mesmo potências regionais em ascensão passam a ter seus interesses político-ideológicos, militares e econômicos ampliados e encontram a liberdade para agir que antes lhes era negada pelos freios que eram impostos pelas potências hegemônicas ou pelos organismos internacionais.

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Assim, é possível se observar interesses dos EUA e da China colidirem na Ásia, na África e mesmo na América do Sul. Disputas também ocorrem entre turcos e russos no Cáucaso, na Síria e na Líbia. Diversos outros exemplos podem ser encontrados em outros locais, com outros atores, como na região da Caxemira, do Mar do Sul da China, Península da Coreia, Mar da China Oriental, Norte da África, Oriente Médio, Região do Magreb africano, Leste Europeu, Norte da América do Sul e Caribe, e Chifre da África, dentre outros.

Como se vê, a ordem multipolar que caracteriza o início do século 21 é notadamente mais instável e fomentadora de disputas. Por isso mesmo, ela exige o aperfeiçoamento de instâncias internacionais capazes de resolver pacificamente as controvérsias entre diferentes Estados e povos. No conflito de Nagorno-Karabakh tais instâncias falharam completamente.

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GUERRA NO CÁUCASO

Azerbaijão e Armênia estão em guerra. O conflito de alta intensidade explodiu há seis dias, mas na verdade trata-se da continuidade de uma disputa que tem suas origens na independência dos países da antiga União Soviética, no final dos anos 1980.

Para entender as causas da guerra, suas repercussões regionais e possíveis desdobramentos, é fundamental entender o contexto político, histórico e geográfico das duas partes em conflito.

O Cáucaso é a área geográfica que divide a Europa oriental da Ásia. Trata-se de uma faixa de terra espremida entre o Mar Negro, à Oeste e o Mar Cáspio, a Leste. Seu nome é emprestado da grande cordilheira que atravessa toda a região, de leste para oeste, separando a Rússia, ao Norte, da Georgia e do Azerbaijão, ao Sul.

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Cáucaso. Fonte – http://www.asia-turismo.com/mapas/caucaso-mapa.htm

 

Na região, existem três países independentes: Geórgia, Armênia e Azerbaijão. Os dois primeiros são considerados, normalmente, europeus, enquanto o último normalmente é vinculado ao continente asiático. Além dos três países, as partes vizinhas mais próximas de Rússia, Turquia e Irã também podem ser consideradas como parte do Cáucaso.

Armênia, Azerbaijão e Geórgia eram repúblicas da antiga União Soviética (URSS). A independência desses países ocorreu no final da década de 1980, durante o processo de esfacelamento soviético. Após a independência, o impasse sobre a região de Nagorno-Karabakh explodiu. O enclave tem sua população majoritariamente armênia mas localiza-se em território reconhecido internacionalmente como sendo azerbaijano. Esta é uma situação herdada do tempo em que toda aquela área era URSS, quando o governo central entregou o enclave ao Azerbaijão.

O descontentamento da maior parte dos moradores da região, que não se consideram azerbaijanos, levou ao conflito, travado entre 1988 e 1994 e que foi interrompido com um saldo de 30 mil mortes, por meio de um acordo de cessar-fogo que não resolveu politicamente a questão. Desde então diversas escaramuças fronteiriças vêm ocorrendo, com o Azerbaijão tentando retomar o controle sobre o autodeclarado (mas que não reconhecido por nenhum país, nem mesmo a Armênia) Estado de Nagorno-Karabakh.

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Conflito em Nagorno Karabakh. Fonte – BBC

 

Dessa forma, há cerca de uma semana, o conflito ressurgiu, desta vez com alta intensidade. As imagens divulgadas por todas as mídias mostram colunas de blindados, artilharia, aviação, sistemas de aeronaves remotamente pilotadas (SARP), enfim, o pleno emprego dos meios militares à disposição das partes em conflito. Como em qualquer guerra, como já disse Clausewitz, “as notícias que nos chegam da guerra são quase sempre contraditórias, na maior parte, também falsas. As mais numerosas são em grande quantidade sofrivelmente suspeitas.” Assim, no calor do momento e entre as campanhas de desinformação e de operações psicológicas de ambos os lados, o mundo vai tomando conhecimento das operações militares no terreno. Entretanto, pelo que se pode vislumbrar através da bruma da guerra, e em uma avaliação bastante preliminar, o emprego dos SARP e o apoio decisivo dos turcos aos azerbaijanos talvez desequilibre o poder de combate em favor dos últimos.

As potências regionais e globais vão se alinhando às partes em conflito, sempre na defesa de seus próprios interesses. A Turquia e a Rússia são os principais atores externos envolvidos e, mais uma vez, assim como na Líbia e na Síria, estão em lados opostos. Os turcos apoiam abertamente os azerbaijanos, com quem possuem grande identificação histórica, linguística e cultural. Mas também há fortes interesses econômicos. O Azerbaijão é parceiro da Turquia na operação do gasoduto Transanatoliano, uma alternativa de fornecimento energético que reduz a dependência turca em relação ao gás russo.

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Gasoduto TANAP. Fonte – https://www.researchgate.net/figure/The-TANAP-TAP-and-Nabucco-pipelines_fig1_322927029

 

Já os russos, que integram juntamente com Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão uma aliança militar com a Armênia, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), e já têm problemas na Líbia, Síria, Ucrânia e Bielorrússia, não parecem muito dispostos a se engajar decisivamente em um conflito no Cáucaso.

Assim, vê-se que a resposta calculada da Rússia frustra a Armênia, cuja solicitação formal de apoio militar à OTSC não foi atendida até o momento, em contraste com o decisivo apoio turco aos Azerbaijanos.

Os EUA, completamente concentrados em suas questões internas e nas eleições presidenciais, não passaram de exortações protocolares pela paz. A Europa, com o presidente Macron à frente, assim como as Nações Unidas, também fizeram declarações em favor da paz que não alcançaram qualquer resultado prático.

Assim, parece que a solução do conflito dependerá de as partes envolvidas chegarem a um acordo, ou da ação da Turquia e Rússia. Mais exatamente de até onde os russos tolerarão a expansão da influência turca, também naquela região.

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RUSSOS E TURCOS EM LADOS OPOSTOS NA SÍRIA

Os presidentes da Turquia, Recep Erdogan, e da Rússia, Vladimir Putin possuem boas relações pessoais. Essa aproximação ajudou os dois países a firmarem, em 2018, um acordo no qual se criava uma zona desmilitarizada em Idlib, noroeste da Síria. Mas a ofensiva do governo sírio, apoiada pelos russos, contra grupos rebeldes da região, transformaram aquele acordo em “letra-morta”, uma vez que os dois países estão em lados contrários na guerra civil que assola a Síria há 9 anos.

Esse antagonismo assumiu contornos mais graves recentemente, quando soldados turcos que estão na região foram mortos em combates contra tropas sírias diretamente apoiadas pela força aérea russa.

Para entender como os acontecimentos chegaram a este ponto, é importante retroceder a outubro do ano passado. Naquele mês, os norte-americanos declararam ter vencido o grupo terrorista Estado Islâmico na região e, por isso, iriam retirar o grosso de suas tropas da Síria. Essa retirada criou as condições necessárias para que a Turquia interviesse diretamente no conflito. Assim, foi desencadeada a Operação “Primavera da Paz”, uma ofensiva no território sírio. Os objetivos, segundo o governo turco, seriam: combater grupos paramilitares curdos – considerados terroristas por Ancara, mas aliados dos norte-americanos na luta contra o Estado Islâmico – e garantir uma “Zona de Segurança” no território sírio, para onde seriam levados grande parte dos 3,5 milhões de refugiados da guerra civil que estão hoje em território turco.

Os militares turcos que foram mortos pelos sírios são integrantes das forças participantes da Operação “Primavera da Paz”. Os combates têm se aproximado cada vez mais de regiões densamente povoadas, especialmente da cidade de Idlib e da região fronteiriça de Bab al-Hawa. Trata-se de um dos últimos territórios controlados pelas forças rebeldes (compostas, hoje, principalmente pelo grupo jihadista Hayat Tahrir al-Sham, integrado por antigos militantes da Al Qaeda), mas o governo do Presidente Bashar al-Assad, firmemente apoiado pela aviação e apoio logístico russos, pretende retomar o controle da área.

Teme-se que a ofensiva do governo provoque uma enorme leva de refugiados, além de uma tragédia humanitária. E isso está se comprovando. Somente de dezembro até hoje, estima-se em 900 mil o número de novos deslocados, na sua maioria mulheres e crianças, que fogem tentando, em vão, chegar à Turquia. Essas pessoas estão na faixa de fronteira entre os dois países, desabrigadas ou em abrigos improvisados, enfrentando as baixas temperaturas da região, agravando a crise dos refugiados.

A tragédia humanitária em Idlib não tem obtido quase nenhuma atenção no ocidente. Os EUA, que adotaram no governo Trump uma política externa mais isolacionista, estão concentrados nas eleições presidenciais que se aproximam. As potências europeias tampouco demonstram interesse ou força política para definir rumos no conflito. A ONU tem feito apelos vãos por um cessar fogo, que não é implementado porque não encontram eco nas potências do Conselho de Segurança, que efetivamente teriam poder para adotar ações práticas.

Assim, restam a Rússia e a Turquia, países sobre os quais parecem repousar os destinos da guerra na Síria e, em consequência, de milhões de refugiados. Os russos bancaram a permanência de Assad no poder. Com isso, fincaram o pé como uma potência extrarregional capaz de interferir nos destinos do Oriente Médio, ao mesmo tempo em que garantiram um governo amigo aos russos em um país estratégico aos seus interesses políticos, econômicos e militares. Nesse sentido, é importante destacar a relevância estratégica, para a Rússia, do porto de Tartus, base naval cedida aos russos pelos sírios, em seu território, que concede à marinha russa o acesso às águas do Mar Mediterrâneo.

A Turquia, por sua vez, possui desafios difíceis pela frente. Se decidir impulsionar sua ofensiva na região de Idlib, atacando as tropas sírias para evitar que estas retomem a cidade, arrisca-se a engajar-se decisivamente em uma guerra que não deseja, em um enfrentamento direto contra os russos. Se, por outro lado, contiver suas ações militares evitando o engajamento decisivo nos combates, certamente verá fracassar seus esforços de conter o fluxo de refugiados em razão de uma tragédia humanitária ainda maior em suas fronteiras.

Percebendo a situação difícil em que se encontra, o Presidente Erdogan decidiu atuar com mais intensidade no campo diplomático. Por um lado, fez questão de relembrar que seu país é membro da OTAN, solicitando aos EUA baterias de mísseis Patriot, para a defesa de seu espaço aéreo. De outro lado, marcou, para o dia 05 de março, uma reunião com os Presidentes Putin e Macron, além da chanceler Angela Merkel. Note-se uma ausência: a dos norte-americanos. Uma novidade para a geopolítica da região, que enfraquece a liderança que a superpotência sempre desempenhou na definição dos destinos do Oriente Médio




A CRISE HUMANITÁRIA NO NORTE DA SÍRIA

A Turquia e a Síria dividem uma fronteira de 822 Km, um pouco menor do que a fronteira entre o Brasil e o Uruguai. A linha foi criada em 1918 quando, derrotados na Primeira Guerra Mundial, os turcos do antigo Império Otomano perderam para a França o território que viria a se tornar a Síria. É por essa fronteira que a Turquia recebeu em seu território boa parte dos 3,5 milhões de refugiados da guerra civil na Síria, iniciada em 2011. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), mais de 60% de todos os refugiados da guerra civil na Síria estão na Turquia. As consequências políticas, militares e, principalmente, econômicas e sociais desse fluxo migratório são facilmente imagináveis.

Na confusão de interesses envolvidos no conflito sírio, nem sempre grupos armados e exércitos que combatem juntos possuem os mesmos objetivos. Mas, os turcos sempre se posicionaram contra o governo sírio de Bashar al-Assad, apoiando alguns grupos contrários ao governo. Até outubro do ano passado, esse era um apoio indireto. A partir daquele momento, entretanto, especialmente na região de Idlib, no noroeste da Síria, as tropas dos dois países passaram a se enfrentar diretamente. E as consequências têm sido uma tragédia humanitária ainda maior na região.

Outubro do ano passado marcou os acontecimentos na Síria porque os Estados Unidos, um ator fundamental no desenrolar dos acontecimentos, que até aquele momento atuava fortemente no enfrentamento de grupos terroristas, além de apoiar grupos insurgentes que enfrentavam o governo sírio, por decisão do Presidente Trump, reduziu significativamente a sua presença militar na Síria. A Rússia, por sua vez, outro ator fundamental no conflito, é responsável pela manutenção de Bashar Al-Assad no poder. Seu apoio econômico e militar ao regime garantiu a situação atual na qual o governo sírio recuperou o controle sobre a maior parte do país.

A retirada do grosso das tropas norte-americanas da Síria possibilitou um engajamento maior dos turcos no conflito. As forças militares do país tentam implementar a ideia de seu presidente, Recep Erdogan, de criação de uma zona de segurança, ao longo da fronteira turco-síria, de trinta quilômetros de profundidade, para onde planeja repatriar a maior parte dos milhões de refugiados sírios que estão em seu país. Na região nordeste da fronteira, a operação foi relativamente bem sucedida. Já na porção noroeste, na província de Idlib, as coisas se complicaram.

Presidente Erdogan mostra seu plano na ONU

Ocorre que os sírios, decisivamente apoiados pelos russos, decidiram recuperar o controle sobre todo o território do país, especialmente em Idlib. As forças sírias, apoiadas por bombardeiros russos, atacaram posições turcas no início deste mês de fevereiro. A ofensiva redundou em baixas de ambos os exércitos. Mas o resultado mais visível do recrudescimento do conflito foi o repentino e significativo aumento do do número de pessoas que fugiram da área. Cerca de 700 mil já saíram de Idlib desde dezembro. Este é o maior volume de deslocados em um período tão curto de tempo nos quase dez anos de conflito.

Ou seja, a ação militar turca havia sido planejada para tentar dar uma solução para os mais de 3,5 milhões de refugiados, mas, ao contrário, está piorando significativamente a situação, na medida em que, ao reverso do planejado, agravou-se a situação humanitária.

Para tentar reverter a situação, os turcos podem optar por uma escalada militar na região, aumentando a presença de tropas para garantir a criação da zona de segurança. Mas isto, além de significar um enorme custo econômico, esbarra no poderio militar russo que apoia os sírios na região.  Os russos controlam o espaço aéreo na área e, sem esse controle, uma grande ofensiva turca contra os sírios está praticamente descartada.

Assim, é fundamental o esforço diplomático. Russos e turcos sempre estiveram em lados opostos no conflito da Síria. Mas, apesar disso, os presidentes Erdogan e Putin desenvolveram um diálogo pessoal e próximo. A recente aquisição, pelos turcos, das baterias antiaéreas russas S400, além da declaração de que os dois países mantêm uma “parceria estratégica” são comprovações desse novo nível de relacionamento. No momento, ambos os lados voltam a negociar, cada um defendendo seus próprios interesses. Os russos, pregando o desarmamento dos grupos rebeldes que enfrentam o presidente sírio e os turcos, exigindo a criação de uma área segura na fronteira para onde possam ser enviados os milhões de sírios que estão na Turquia.

Há ainda, um aspecto a destacar em toda essa crise. Os EUA, que sempre foram um ator fundamental na região, retiraram-se e não mais são focados pelas luzes da ribalta. Esta distância é uma novidade na geopolítica da região. Trata-se de um vácuo que enfraquece a liderança norte-americana, pois fragiliza a confiança de aliados na perenidade do apoio da superpotência e dá margem para o surgimento de novos protagonistas, como a própria Turquia e a Rússia, que ganha destaque passando a ser a única potência extrarregional com liberdade para atuar influenciando os destinos do conflito.




A TURQUIA E OS CURDOS. OS RUSSOS, OS IRANIANOS E A SIRIA. E OS EUA COM ISSO

O Presidente Trump ordenou a retirada das tropas norte-americanas que estavam na Síria. Talvez esta tenha sido a decisão de política externa mais criticada de seu período como presidente, tanto por integrantes da oposição quanto por membros do seu próprio partido, por vários motivos. O mais evidente foi o fato de a retirada das tropas servir como senha para a invasão do norte da Síria pela Turquia, em uma ofensiva contra os Curdos, que dominam a região desde 2012. Curdos esses que, aliados aos próprios norte-americanos, foram os grandes responsáveis por combater com êxito o grupo terrorista Estado Islâmico, na Síria.

Para entender a confusa situação da Síria, é preciso consultar a história da formação das fronteiras dos países do Oriente Médio. Essas fronteiras inexistiam até as potências vencedoras da 1ª Guerra Mundial dividirem o território que antes fora o Império Otomano. Pelo acordo Sykes-Picot, celebrado entre Reino Unido e França, confirmado pela Conferência de San Remo, em 1920, os europeus traçaram linhas em mapas, linhas que não existiam na realidade e que criaram algumas das fronteiras mais artificiais da história. Antes, não havia nenhuma Síria, nem Líbano. Tampouco Israel, ou Palestina, Iraque, Kuait, Arábia Saudita, Jordânia. Esses e outros países foram criados, de um lado, unindo pessoas e povos que não estavam habituados a conviver e, de outro, separando etnias e povos de origens e costumes comuns.

Assim, a área onde hoje é a Síria, logo após a I Guerra Mundial, tornou-se um protetorado francês. Essa condição só foi modificada com a independência, em 1946. Em 2011, na esteira da chamada Primavera Árabe, teve início a Guerra Civil que se prolonga até hoje.

Bashar al-Assad, ditador sírio, esteve a ponto de ser derrubado, mas graças ao apoio de russos e iranianos, o regime se manteve. O apoio russo tem forte motivação geopolítica. Após a queda de Kadafi, na Líbia, na Primavera Árabe, os russos viram sua influência na região ser ameaçada. E o risco de perder um governo amigo também na Síria era intolerável. É neste país que, desde 1971, os russos mantêm a base naval de Tartus, um porto de águas profundas. A base é fundamental para garantir a presença naval russa no Mediterrâneo.

O Irã é outro forte ponto de apoio do regime de Assad. Isso se deve a alguns fatores, políticos e religiosos. O principal é que os sunitas, principais opositores de Bashar al-Assad, são também rivais dos xiitas iranianos. A eventual troca de governo na Síria, e a consequente ascensão sunita, aproximaria a Síria da esfera de influência da Arábia Saudita, significando um forte revés para a influência iraniana na área.

A Turquia aproveitou a retirada das tropas norte americanas da Síria para lançar uma ofensiva contra os curdos, que detêm o controle da posição nordeste do país, mantendo-se em uma situação de semiautonomia. O motivo alegado é o de criar uma “faixa de segurança” na fronteira, do lado sírio, para onde seriam enviados de volta parte dos 3,6 milhões de refugiados que estão no país, em fuga da guerra civil síria. Para um país de economia frágil e de 80 milhões de habitantes, esse é um problema de dificílima resolução. O presidente turco Recep Erdogan acusa as autoridades europeias e norte-americanas de não cumprirem acordos, deixando de enviar ao país 3 bilhões de euros que foram prometidos pela União Europeia em 2016. Ameaça também, caso não consiga enviar os sírios de volta ao seu país, “abrir as portas” para que os refugiados entrem Europa adentro.

Os curdos são um povo originário da região que hoje engloba a parte sudeste da Turquia, norte do Iraque, noroeste do Irã e sudoeste da Armênia. Estima-se que hoje sejam entre 25 e 35 milhões de pessoas.

Curdistão

Na Turquia, os curdos são vistos como uma ameaça. Desde a década de 1980, o grupo PKK, ou Partido dos Trabalhadores do Curdistão, fez uma opção pela luta armada, em busca da independência do Curdistão. Mais de 40 mil pessoas já morreram em atentados terroristas e em enfrentamentos com o Exército Turco desde então. Para os turcos, os curdos que estão na Síria nada mais são do que um dos braços de apoio ao PKK.

E, em meio a esse cenário conturbado, a decisão do presidente Trump afeta fortemente o equilíbrio das forças, redundando em um reequilíbrio que dificilmente será favorável aos interesses dos proprios norte-americanos na região. Em primeiro lugar, os curdos se sentiram traídos e abandonados, imediatamente entrando em acordo com o Presidente Bashar al-Assad. A fama de “parceiro não confiável” dos norte-americanos será espalhada pela máquina de propaganda dos seus inimigos no Oriente Médio, e exigirá um grande esforço futuro para que essa narrativa seja revertida. Em segundo lugar, o aforismo “o poder não deixa vácuo” foi comprovado pela enésima vez. Quase imediatamente, o presidente russo Vladimir Putin intermediou o acordo entre o presidente sírio e os curdos, e iniciou contatos com o presidente turco. Posicionou tropas em locais estratégicos no norte da Síria e tenta mediar o conflito. A Rússia assume o papel que até então era desempenhado pelos EUA na região.

O presidente norte-americano talvez ampare a decisão de retirar as tropas da Síria na premissa de que os cidadãos do seu país desejem uma política exterior mais isolacionista. Uma em que os EUA não se metam em “problema dos outros”. Afinal, o país tem enviado tropas para combater em lugares distantes já há um bom tempo. O que talvez essa postura não considere, é que os EUA só chegaram a ocupar o lugar de única superpotência do planeta porque, a partir da 2ª Guerra Mundial, souberam defender seus próprios interesses no xadrez geopolítico global. Decisões implicam em consequências. Somente o tempo indicará quais as repercussões geopolíticas das decisões do Presidente Trump.