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OITOCENTOS DIAS DE GUERRA NA UCRÂNIA

Ontem, dia 03 de maio de 2024, a guerra na Ucrânia completou oitocentos dias. Essas efemérides, embora não tenham nenhuma importância prática nos campos de batalha, convidam à reflexão sobre o desenrolar dos acontecimentos.

No campo tático/operacional, especialmente na frente Oriental, o momento é favorável aos russos, que pressionam a frente e obtêm ganhos territoriais de forma lenta, mas constante. Analistas do Black Bird Group, da Finlândia, a partir do estudo de fotografias de satélites, concluíram que, se entre 01 de junho e 01 de outubro do ano passado os russos perderam a posse de 414,26 Km2 de território ocupado na Ucrânia, a maré virou em 2024. De 01 de janeiro deste ano a 02 de maio, os russos recuperaram uma área equivalente à perdida em 2023, mas com alguma sobra: 432,3 Km2, a maior parte na região de Donetsk.

O esforço do povo ucraniano de se contrapor à invasão de seu território por um exército russo muito maior, e dotado de vastos recursos bélicos, está cobrando um preço muito alto. A carência de pessoal nas fileiras do exército ucraniano é grave. Embora o presidente Zelensky recentemente tenha anunciado em 31 mil o número de soldados mortos em combate, serviços de inteligência ocidentais acreditam que esse é um número muito subestimado, tendendo a ser, provavelmente, mais que o dobro dessa quantidade. Para tentar repor essas baixas em suas fileiras, o país mudou suas leis de recrutamento, reduzindo a idade elegível para o serviço militar de 27 para 25 anos. Zelensky também pediu aos governantes ocidentais que encorajassem os ucranianos em idade de prestação do serviço militar que estejam refugiados em seus países, a voltarem à Ucrânia.

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Ao problema da falta de pessoal se soma a carência de armas e munições. Os quase seis meses de interrupção de ajuda militar por parte dos EUA diminuíram de forma muito importante as capacidades militares do exército ucraniano, especialmente suas capacidades de defesa antiaérea e de realização de fogos com sua artilharia de campanha. A recente aprovação, pelo congresso americano, da ajuda de US$ 61 bilhões se deu em um momento verdadeiramente crítico para os ucranianos e, embora se tenha anunciado que essa ajuda já começa a se materializar com a chegada de armas e munições à Ucrânia, ainda levará um bom tempo para que todo esse dinheiro se materialize em poder de combate real, no terreno.

Os russos, por sua vez, embora também estejam sofrendo pesadas baixas, têm uma capacidade muito maior do que a Ucrânia de repor seus efetivos militares. Isso passa tanto por uma base populacional muito maior – a Rússia possui 144 milhões de habitantes, enquanto a Ucrânia possuía, antes da guerra, cerca de 42 milhões – quanto por uma maior aceitação de risco por parte dos seus planejadores militares, que não hesitam em seguir em frente e manter operações ofensivas mesmo em face de pesadas baixas.

No que concerne aos suprimentos de armas e munições, a Rússia conseguiu alcançar um equilíbrio logístico graças à imposição de um regime de economia de guerra, com sua base industrial de defesa trabalhando em um regime de três turnos, 24 horas por dia, e às importações da Coreia do Norte e do Irã.

Essas condições, no momento em que a primavera e a aproximação do verão melhoram a transitabilidade do Teatro de Operações, levam muitos analistas a prever o desencadeamento de uma nova ofensiva russa, cujos objetivos ainda não estão claros. Talvez se restrinjam a tentar conquistar a integralidade dos territórios das quatro províncias ucranianas anexadas formalmente pela Rússia: Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzhya, ou talvez tenha objetivos mais ambiciosos, com a conquista de novos territórios ucranianos. Preparando-se para essa possibilidade, as forças ucranianas já estão há algum tempo a preparar novas posições defensivas em profundidade.

No campo diplomático, o fato da balança da guerra, em 2024, estar pendendo para o lado russo está por trás de uma importante mudança recente no discurso dos aliados europeus da Ucrânia: a possibilidade de utilização de equipamentos fornecidos pela OTAN para ataques em profundidade sobre alvos no interior do território russo. Esse uso vinha sendo vetado pela aliança ocidental desde o início da guerra, em razão do temor de causar uma escalada do conflito que levasse a um enfrentamento direto entre a Rússia e a OTAN. Entretanto, o ministro das relações exteriores do Reino Unido, David Cameron, deu essa permissão acerca dos sistemas de armas fornecidos pela Grã-Bretanha. Além de Cameron, outras lideranças europeias começam a se manifestar no mesmo sentido. O presidente francês Emmanuel Macron também tem subido o tom de sua retórica, afirmando que a França não descarta o envio de tropas em socorro à Ucrânia caso a manutenção da soberania ou a própria sobrevivência daquele país esteja e risco. Britânicos e franceses se comprometeram ainda a ajudar com bilhões de euros no esforço de guerra ucraniano.

Essa maior assertividade na retórica dos líderes europeus vem acompanhada de uma conscientização de que seus países devem confiar cada vez mais em si mesmos e nas alianças forjadas dentro da própria Europa, dependendo menos do guarda-chuvas dissuasório oferecido pelos Estados Unidos, principal membro da OTAN. Nesse sentido, o presidente Macron disse, em discurso na universidade de Sorbonne, que “a Europa pode morrer”. O presidente francês acrescentou, em entrevista à revista The Economist, que “se a Rússia vencer na Ucrânia não haverá segurança na Europa”. “Quem garante que a Rússia irá parar na Ucrânia? Que segurança poderiam ter países como Moldávia, Romênia, Polônia, Lituânia e outros países vizinhos?” foram as perguntas feitas por Macron.

Ainda no campo diplomático, Suíça e Ucrânia anunciaram a realização de uma conferência de paz, a se realizar na Suíça, nos dias 15 e 16 de junho. Mais de cem países já foram convidados. Entretanto, como a Rússia não deve participar do evento, uma vez que acusa a Suíça de ter abandonado sua histórica neutralidade em favor da Ucrânia, é muito provável que outros países – especialmente aqueles do chamado “Sul Global” – se recusem a participar.

Assim, neste momento em que a invasão russa à Ucrânia completa 800 dias, nada indica que a guerra esteja próxima de um término. Se, de um lado, a Ucrânia claramente não possui, nas condições atuais, poder de combate suficiente para expulsar o invasor de seu território, por outro lado, os russos dificilmente encontrarão facilidade em obter novos ganhos territoriais enquanto os ucranianos continuarem a receber apoio dos EUA e da Europa. O que se pode prever é a manutenção de uma guerra de atrito, acompanhada de uma intensificação nos bombardeios aeroestratégicos de ambos os lados, buscando alvos de valor estratégico, como fábricas, centrais elétricas, pontes importantes, entroncamentos ferroviários etc.

Essa previsão vale até as eleições nos EUA, em novembro. Caso Donald Trump vença, é provável que o apoio americano à Ucrânia mingue consideravelmente. Se isso acontecer, a Rússia estará em uma posição de força para impor uma paz nos seus termos. A menos que a Europa compre a briga ucraniana. Em qualquer das hipóteses, infelizmente para as populações direta e indiretamente flageladas pela guerra, a paz ainda está muito longe.

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Dois Anos de Guerra na Ucrânia: Repercussões Geopolíticas, Humanitárias e Militares

A data de hoje marca os dois anos da invasão russa à Ucrânia, momento oportuno para uma breve análise acerca de alguns, dentre vários, desdobramentos que o conflito trouxe aos campos da geopolítica, da economia, das relações internacionais e da defesa. Isso sem falar nas terríveis consequências humanitárias para as pessoas, contadas aos milhões, diretamente afetadas pela tragédia da guerra.

As repercussões geopolíticas são evidentes. A guerra é a manifestação mais violenta do momento de contestação da ordem internacional liderada pelos Estados Unidos, erigida no pós Guerra Fria. Trata-se principalmente da ascensão chinesa e do desafio que passou a ser oferecido à liderança norte-americana por atores estatais que buscam o protagonismo no sistema internacional. Isso ficou muito bem caracterizado na conversa entre Putin e Xi Jinping, em frente aos repórteres, em Moscou, em março do ano passado, quando Xi disse a Putin que o mundo estava vivendo um momento de mudanças, como não era visto há cem anos, e que eram eles próprios, os dois líderes, que as estavam promovendo. Putin respondeu, concordando.

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A Rússia, tendo conquistado quase 20% do território ucraniano, renovou a preocupação de segurança entre os europeus, que até 24 de fevereiro de 2022 pareciam acreditar que os conflitos de grande escala estavam superados no continente. Esta mudança de percepção foi acompanhada por um notável redirecionamento nos investimentos em defesa por parte dos países europeus. De acordo com um levantamento realizado pelo Institut de Relations Internationales et Stratégiques, entre 2022 e meados de 2023, as aquisições de sistemas e materiais militares pelos países europeus totalizaram quase 100 bilhões de euros, representando um aumento de cerca de 33% em relação ao ano anterior. A Alemanha e a Polônia foram responsáveis por aproximadamente um terço desse aumento substancial, com encomendas avaliadas em cerca de 28 e 16 bilhões de euros, respectivamente. Dos 27 países europeus pesquisados, 25 aumentaram seus orçamentos de defesa de 2022 para 2023, evidenciando uma mudança de tendência. Apenas Hungria e Grécia foram exceções, registrando uma diminuição em seus orçamentos de defesa neste período.

No campo dos estudos estratégicos, a guerra na Ucrânia veio para derrubar mitos, reforçar fundamentos e apresentar novidades. A principal característica do conflito – sua alta intensidade, caracterizada pelo atrito e pelo maciço emprego da artilharia pelos dois lados – derrubou uma crença recente de que os conflitos modernos poderiam ser resolvidos apenas por pequenos exércitos, altamente móveis, dotados de ferramentas tecnológicas no estado da arte. É claro que mobilidade e tecnologia são importantes. Mas, para se conquistar um território invadido, defendido em linhas de trincheiras apoiadas por extensos campos de minas e por poderosa artilharia, o que ainda importa são as massas dos exércitos, constituídos por uma reserva mobilizável contada em centenas de milhares de soldados. Essa é a razão pela qual o serviço militar obrigatório volta a ser adotado e discutido por diversos países europeus. Também se deve a isso o esforço acelerado de abertura de fábricas de munições, para superar a enorme deficiência europeia nessa produção, especialmente quanto à granadas de artilharia.

Ao mesmo tempo em que se assiste ao emprego de técnicas, táticas e procedimentos utilizados desde a Primeira Guerra Mundial, o Teatro de Operações da Ucrânia serve de palco para inovações. Os sistemas aéreos remotamente pilotados, ou drones aéreos, que já tinham surgido como armas importantes na guerra de 2020 entre Armênia e Azerbaijão, se apresentam como sistemas fundamentais nos conflitos atuais. Seus congêneres navais, entretanto, fazem sua estreia, com resultados surpreendentes, sendo os responsáveis pelo afundamento de diversos navios da frota russa no Mar Negro. O emprego dos mísseis hipersônicos russos também é uma inovação digna de nota.

No campo econômico, um primeiro aspecto a se destacar é a constatação de que a coerção econômica que os EUA e seus aliados pretendiam infligir à Rússia por intermédio das dezenas de sanções e embargos não atingiram os resultados esperados. Os russos conseguiram, em grande medida, substituir as trocas comerciais embargadas por novas relações com países do chamado “Sul Global”, que não aderiram às sanções. Nesse sentido, o caso da Índia é exemplar. O país aumentou em mais de 13 vezes o valor das importações de petróleo da Rússia, totalizando, em 2023, cerca de 37 bilhões de dólares.

Essa não é uma boa notícia para a manutenção da paz no mundo. A constatação, por parte das grandes potências, de que a ferramenta da coerção econômica não é mais tão eficaz como foi no passado, pode vir a significar uma opção direta pela solução militar, sem a “escala” pela pressão econômica. Ou seja, pode vir a significar o aumento do risco da eclosão de novos conflitos armados.

Finalmente, há que se destacar a questão humanitária. A guerra sempre impõe enorme sofrimento às populações atingidas, e não seria diferente no caso da guerra na Ucrânia. Cerca de 14 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas desde o início da invasão russa, há dois anos, e quase 6,5 milhões vivem fora do país como refugiados. O número de baixas fatais de combatentes de ambos os lados é tratada com sigilo, e os números não são confiáveis. Entretanto, é um consenso entre os analistas que, somadas, ultrapassam facilmente a cifra de meio milhão de soldados. Há também os deploráveis episódios de maus tratos e violações graves e generalizadas dos direitos humanos, com centenas de casos relatados de violações do Direito Internacional dos Conflitos Armados, sem falar na enorme destruição de infraestrutura, inclusive de cidades quase por completo, como os casos de Bakhmut e Avdiivka.

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Assim, constata-se que a guerra na Ucrânia pode ser caracterizada como um divisor de águas, evidenciando a fragilidade da ordem internacional pós-Guerra Fria e o recrudescimento das tensões geopolíticas.

O conflito na Ucrânia também terá impactos importantes e duradouros no campo dos estudos estratégicos. O retorno da guerra de alta intensidade, de atrito e da artilharia, convivendo com novas armas e tecnologia no estado da arte, obrigará os governos de todo o mundo a aumentarem seus investimentos em defesa, repensarem suas estratégias, suas formas de mobilização e o preparo de suas forças armadas.

Por fim, embora no momento não se vislumbre a possibilidade de um desfecho a curto prazo, destaca-se a urgência de uma solução para o conflito. A guerra na Ucrânia causou um enorme sofrimento humano, com milhões de pessoas deslocadas, cidades devastadas e enormes perdas de vidas. A reconstrução da Ucrânia será um desafio monumental, que exigirá um esforço global para garantir a recuperação do país e o bem-estar de sua população.

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Seiscentos dias de guerra na Ucrânia

Hoje, segunda-feira, 16 de outubro de 2023, completam-se seiscentos dias da invasão russa à Ucrânia. Os combates entre ucranianos e russos continuam a acontecer de forma feroz na planície sul da Ucrânia e no leste do país. Os bombardeios russos se mantêm impiedosos, atingindo alvos de forma indiscriminada em todo o território ucraniano. Mas, a opinião pública mundial está concentrada em outra tragédia: a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas.

Para os ucranianos, que veem sua contraofensiva obter resultados muito mais modestos do que o esperado pelos políticos e pela opinião pública ocidental, que apoia o esforço de guerra ucraniano e está ávida por boas notícias do campo de batalha, a explosão da violência na Terra Santa foi mais uma má notícia. O esforço de guerra ucraniano, totalmente dependente do apoio financeiro e material dos EUA e de seus aliados europeus, agora tem um competidor a dividir as atenções e recursos: o esforço de guerra israelense.

Muitas coisas surpreendentes aconteceram nos últimos seiscentos dias. A primeira delas, é termos chegado a esta data com a Ucrânia ainda combatendo. Quando, em 24 de fevereiro do ano passado, os russos invadiram o território internacionalmente reconhecido da Ucrânia, poucos poderiam prever que a resiliência das forças armadas e do povo ucraniano pudesse nos trazer à situação atual, de seiscentos dias de resistência. Afinal, tratava-se de um ataque em quatro direções estratégicas, duas delas tendo a capital, Kiev, como objetivo, feito por aquele que é considerado o segundo mais poderoso exército do mundo. A Ucrânia era presidida por um político inexperiente, em primeiro mandato, mal avaliado nas pesquisas, que, nos cálculos russos, não tinha condições de fazer face ao desafio e provavelmente fugiria do país. Para o presidente Putin e seu entorno, em duas ou três semanas, no máximo, o exército ucraniano seria batido e seria instalado no palácio presidencial de Kiev um novo governo, chefiado por um líder amigável aos russos, no estilo da vizinha Belarus e do seu eterno presidente Lukashenko.

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Como se sabe, nada disso aconteceu. O exército russo apresentou falhas de planejamento, liderança e execução das operações militares que eram inesperadas em razão de sua fama. O exército ucraniano, por sua vez, bem liderado, bem treinado e usando uma estratégia inteligente, além de táticas, técnicas e procedimentos de combate muito eficientes, conseguiu resistir ao ataque inicial russo, ganhando o tempo necessário para que o indispensável apoio internacional e financeiro começasse a chegar. A liderança política ucraniana, por sua vez, surpreendeu. O presidente Zelensky não fugiu, como esperavam os russos. Pelo contrário: fez o que se espera de um líder político de um país em guerra: galvanizou a vontade de lutar de seu povo, reunindo os apoios internos necessários ao esforço de guerra, ao mesmo tempo em que iniciou uma incessante e bem-sucedida campanha internacional, angariando apoios materiais e financeiros que já somam cifras da ordem de dezenas de bilhões de dólares.

A segunda surpresa foi o fortalecimento da OTAN. Há seiscentos dias, ninguém poderia prever que hoje a Finlândia seria o 31º membro da aliança atlântica, ou que a Suécia estaria às portas de se tornar o 32º. Os dois países renunciaram a políticas de neutralidade longevas e decidiram buscar abrigo no guarda-chuvas dissuasório da OTAN, em uma reação ao expansionismo da Rússia, país contra o qual os dois Estados nórdicos já guerrearam no passado. A resposta praticamente uníssona da Aliança é a antítese do que foi expresso há menos de quatro anos pelo presidente da França, Emmanuel Macron, que afirmou literalmente que a OTAN estava em morte cerebral, no dia 07 de novembro de 2019. O reavivamento da ameaça da guerra contra um inimigo comum foi responsável pela saída da Aliança do estado vegetativo em que se encontrava, de acordo com diagnóstico feito pelo líder francês.

A terceira constatação surpreendente foi a da maior liberdade de ação e autonomia do grupo de países que passou a receber a genérica denominação de “Sul Global”. Países africanos, latino-americanos, do grande Oriente Médio, do Sul e do sudeste asiático, com especial destaque para China e Índia, foram diretamente responsáveis por evitar que as sanções econômicas sem precedentes impostas pelos Estados Unidos, pela Europa e seus principais aliados levassem a Rússia ao colapso econômico. Afinal, se quarenta países sancionam a Rússia, cerca de 2/3 da população do mundo vivem em Estados que não o fazem.

Isso não significa que esses países apoiem a invasão russa. Em março do ano passado, em sessão de emergência da Assembleia Geral das Nações Unidas, 141 nações votaram a favor de uma resolução condenando a agressão da Rússia contra a Ucrânia, 35 abstiveram-se e apenas cinco votaram contra. No entanto, para muitos, esta é uma “guerra europeia”, que não lhes diz respeito, embora sofram as consequências, especialmente nos campos da segurança alimentar e energética. Isso foi expresso de maneira enfática pelo Ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, ao afirmar que a Europa “pensa que os problemas da Europa são os problemas do mundo, mas que os problemas do mundo não são os problemas da Europa”. A conclusão mais evidente é a de que, se os Estados Unidos e a Europa não conseguiram levar tantos países a concordarem com suas políticas retaliatórias em relação à Rússia, é porque sua influência e poder globais estão a enfraquecer. Isso reflete um momento de mudanças na arquitetura global de poder, com profundas implicações nas relações entre os Estados.

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As três constatações acima são apenas algumas das que podem ser destacadas dentre tantas surpresas e reviravoltas da política internacional nesses seiscentos dias. Outras devem continuar a surgir, uma vez que, infelizmente, o flagelo da guerra parece não estar próximo do fim nos campos de batalha da Ucrânia.

Os russos e os ucranianos estão atualmente se enfrentando em uma feroz guerra de atrito, com a presente ofensiva ucraniana já chegando a seu ponto culminante e com o período chuvoso e de inverno a transformar o campo de batalha em um imenso lamaçal, que estabilizará as operações nos próximos meses. A guerra, portanto, continuará a cobrar seu enorme preço em vidas humanas e destruição.

A essa situação se some a deflagração da guerra entre Israel e Hamas, apenas no início, mas que, se vislumbra, também se estenderá por um longo período, com todo seu potencial de gerar ainda mais instabilidade no sistema internacional.

Os dois conflitos, separados geograficamente, estão interligados. Como dito no início deste texto, a guerra na Terra Santa tende a beneficiar a Rússia, embora os EUA e seus aliados digam que o apoio a Israel não afetará o apoio à Ucrânia. Mas, repercussões como uma possível crise no abastecimento de petróleo, em uma eventual escalada do conflito, podem ter consequências importantes no Teatro de Operações ucraniano. Isso sem falar nas surpresas e repercussões imprevistas, que assim como no conflito europeu, podem surgir da guerra na Faixa de Gaza.

As guerras em curso afetam terrível e profundamente as pessoas das áreas conflagradas, mas não deixarão ilesos os habitantes dos demais países do globo. Todos já estão sendo indiretamente afetados. E as coisas, infelizmente, não parecem estar destinadas a melhorar no curto prazo.

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500 dias de guerra na Ucrânia

Hoje, se completam 500 dias desde que as tropas russas ultrapassaram as fronteiras ucranianas, em 24 de fevereiro do ano passado, no que previam ser uma ação militar fulminante, com a qual esperavam derrotar o exército ucraniano, retirando o presidente Zelensky do poder e substituindo-o por um governante “amigável” ao regime russo.

A invasão russa é flagrantemente ilegal. Contraria, no mínimo, três instrumentos do Direito Internacional dos quais o país é signatário. O primeiro é a Carta da ONU, especificamente o previsto no nº 4 do artigo 2º, que prevê que “os Membros (da ONU) deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado”. O segundo é o Memorando de Budapeste, de 1994, no qual Grã-Bretanha, Rússia e Estados Unidos se comprometeram a “abster-se de recorrer à ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política da Ucrânia”, em troca da adesão desta ao Tratado de Não Proliferação Nuclear e da entrega à Rússia de todas as suas ogivas nucleares, herdadas da União Soviética. O terceiro é o Acordo de Helsinki, de 1975, quando representantes dos blocos capitalista (ocidental) e comunista (oriental) encontraram-se em Helsinque, para negociações sobre um futuro pacífico para a Europa. Naquela oportunidade, todos os trinta e cinco países signatários, dentre eles a União Soviética, comprometeram-se com “a cooperação econômica, a inviolabilidade das fronteiras, a solução pacífica de conflitos e a não intromissão em assuntos de ordem interna”.

A despeito de tudo isso, os russos, e em especial o presidente Vladimir Putin, apresentam razões históricas e securitárias para justificar a invasão. Tentar compreendê-las não significa concordar com elas. Mas é fundamental para se entender como chegamos a esses quinhentos dias de guerra.

As razões históricas se amparam na narrativa da origem comum de russos e ucranianos, herdeiros do mesmo ente político seminal, a Rus Kievana, proto-estado que há pouco mais de mil anos existiu na porção oriental da Europa. Sob a justificativa da ancestralidade compartilhada, se constrói a retórica de que a própria existência da Ucrânia como um Estado independente é absurda, portanto, a invasão seria justificável na medida em que desfaz uma separação que, a priori, nunca deveria ter acontecido.

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As razões securitárias são relacionadas à sensação de insegurança entranhada na cultura estratégica russa. Terra das planícies intermináveis, que facilitam os movimentos dos exércitos, a Rússia teve seu território invadido inúmeras vezes ao longo de sua história. A começar pelos mongóis no século XIII, mas também em tempos mais recentes. Desde o século XVII até o atual, não houve nenhum em que a Rússia não fosse invadida, a começar pelos poloneses, do rei Sigismundo III, em 1609​, pela Suécia do rei Carlos XII, em 1708​, pela França, de Napoleão, em 1812​ e pela Alemanha, nas duas grandes guerras, no século XX​. Em levantamento feito por Tim Marshall, no livro Prisioneiros da Geografia, se acrescentarmos a guerra na Crimeia, os russos terão combatido na planície norte europeia, ou no entorno dela, em média, uma vez a cada 33 anos, desde as invasões napoleônicas até os dias atuais. Isso significa que todas as gerações de militares russos dos últimos dois séculos participaram de combates na Europa.

É claro que isso tem profundas implicações nas preocupações de segurança e na cultura estratégica russa. É nesse contexto que a paulatina adesão de países cada vez mais a leste da Europa, consequentemente cada vez mais próximos à fronteira da Rússia, à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e a perspectiva da entrada da Ucrânia à Aliança, passou a ser vista pelo presidente Putin e seu entorno como uma ameaça insuportável à segurança do país.

Todas essas justificativas possuem contrapontos válidos. Os ucranianos alegam, baseados em boas razões históricas e culturais, possuir uma identidade política, cultural e histórica própria. Europeus e norte-americanos, por sua vez, alegam que a expansão da OTAN não possui caráter ofensivo e que a Rússia não teria nenhuma razão objetiva para se sentir ameaçada.

O fato é que, independentemente da sua ilegalidade, ou de suas justificativas, a guerra de alta intensidade voltou ao coração da Europa e já se prolonga há 500 dias. Cenas que se julgava tivessem ficado na história do Velho Continente, como combates em trincheiras, avanços de colunas de blindados, barragens de artilharia e bombardeios indiscriminados de cidades, voltaram a fazer parte do cotidiano, com toda a sorte de sofrimento humano, prejuízos econômicos e desequilíbrios políticos e geopolíticos que uma guerra dessa natureza produz.

A longa duração do conflito – que no momento atual não permite antever um desfecho em curto prazo – pode ser creditada a dois fatores principais. Em um primeiro momento, à decidida mobilização da sociedade ucraniana, que se reuniu em torno de sua liderança política e de suas forças armadas com o firme propósito de se defender. Isso surpreendeu os russos, que não esperavam encontrar uma resistência tão forte ao seu avanço inicial. Em um segundo momento, ao decidido apoio de norte-americanos, europeus e seus aliados que, por um lado, enviaram aos ucranianos recursos financeiros, treinamento e sistemas e materiais de emprego militar que proporcionaram à Ucrânia as condições mínimas para equilibrar as ações no Teatro de Operações, e por outro, impuseram embargos comerciais à Rússia, que se não a debilitaram decisivamente, como talvez se pudesse esperar, causaram certamente muitos percalços econômicos, com reflexos para seu esforço de guerra.

As operações militares em curso na Ucrânia comprovam mais uma vez o caráter total das guerras, como ensinava Clausewitz, ainda no século XIX. Infelizmente, a violência da guerra vem sendo reiterada a cada um dos últimos 500 dias. Nada mais significativo dessa realidade que a constatação do colossal consumo de munição de artilharia, em especial da de maior calibre. Os Estados Unidos já enviaram à Ucrânia, desde o início da guerra, mais de 1,5 milhões de granadas de 155mm, que são consumidas aos milhares pelos obuseiros ucranianos, todos os dias. Pelo lado russo, estima-se o consumo desse tipo de munição na casa das dezenas de milhares, diariamente. Esses números somente encontram paralelo histórico nas grandes guerras mundiais. A guerra de alta intensidade em curso na Ucrânia usa também outros sistemas e materiais de emprego militar, além de técnicas, táticas e procedimentos de combate típicos das grandes guerras do século 20: vasta utilização de campos de minas, emprego de carros de combate, linhas de trincheiras, baterias antiaéreas, para citar apenas alguns exemplos.

Mas a guerra também aponta para novas tecnologias, como o extensivo uso de sistemas de aeronaves remotamente pilotadas, os chamados drones, mísseis hipersônicos, vasta utilização de sistemas satelitais e guerra cibernética. No campo da informação, as mídias sociais fazem a guerra parecer ser narrada em primeira pessoa, com vídeos de combates onipresentes nas redes, ajudando a conformar narrativas, que os dois lados em disputa tentam fazer prevalecer.

Essa guerra também trouxe de volta – e de forma surpreendentemente preocupante – o espectro do conflito nuclear. O uso da arma nuclear é um tabu, uma vez que, após os terríveis efeitos de sua única utilização, pelos norte-americanos, em Hiroshima e Nagasaki, nunca mais qualquer país ousou sequer ameaçar empregá-la. De lá para cá, potências nucleares perderam guerras, sem jamais recorrer à ameaça de sua utilização. Foi o caso dos EUA, no Vietnã e da União Soviética, no Afeganistão. Mas, na guerra em curso na Ucrânia, isso mudou. A ameaça da escalada nuclear já foi feita diversas vezes ao longo desses 500 dias, por diferentes autoridades russas, sendo verbalizada com especial ênfase – e de forma reiterada – pelo ex-presidente da Rússia, Dmitry Medvedev.

Para além dessas condições táticas e operacionais, é importante também compreender que o conflito gerou crises múltiplas, em diferentes níveis.

A guerra, somada a ascensão chinesa, caracterizam a emergência de um mundo multipolar, onde a hegemonia norte-americana é desafiada. Esse mundo multipolar confere mais liberdade de ação aos países do chamado “Sul Global”, que se sentem mais confortáveis para adotar uma postura independente, descolada, por exemplo, do que norte-americanos e europeus desejariam. Assim, Índia e diversos países africanos, do Oriente Médio e da América do Sul, deixaram de aderir às sanções econômicas impostas pelas potências ocidentais à Rússia. A guerra também mostra a necessidade de reformulação da ONU, em especial de seu Conselho de Segurança, uma vez que o mais importante organismo multilateral se mostra completamente incapaz de mediar um processo de paz.

No campo econômico, a guerra traz consequências desfavoráveis em um ambiente já estressado pela pandemia da Covid 19, especialmente para a Europa. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projeta um crescimento dos países da zona do Euro, em 2023, de apenas 0,9%, muito menor do que se previa antes da invasão russa.

As consequências humanitárias da guerra são graves. As vítimas da guerra, nos dois lados do conflito, já podem ser contadas na casa das centenas de milhar. As pessoas forçadas a migrar para outros países, ou a se deslocarem no interior da própria Ucrânia já são contadas na casa dos milhões, com todas as inúmeras consequências pessoais para os afetados, além das consequências sociais e políticas para as comunidades que recebem os refugiados. Na Ucrânia, a destruição das cidades vai exigir investimentos na casa das centenas de bilhões de dólares para a reconstrução. Isso sem falar dos transtornos causados por munições falhadas, que permanecerão por anos sendo encontradas na Ucrânia e das minas terrestres, espalhadas por milhares de quilômetros quadrados no que exigirão um esforço de anos para serem completamente desativadas.

A essa altura o leitor pode estar se perguntando sobre as perspectivas para o fim da guerra. Confrontos militares dessa natureza só terminam quando um dos contendores – ou os dois – desistem ou são forçados a desistir de lutar. Isso pode acontecer pela derrota militar, como no caso da rendição da Alemanha, que encerrou a Segunda Guerra Mundial. Ou, pela completa exaustão, como aconteceu no conflito Irã x Iraque, em que os dois lados se exauriram completamente, após quase uma década de guerra, chegando a um acordo. Ou, como na Guerra da Coreia, onde a guerra não foi oficialmente encerrada, mas “congelada” por um armistício acertado pelos dois lados após uma estabilização do campo de batalha por cerca de dois anos.

Infelizmente, no caso da Ucrânia, é forçoso se reconhecer que não há, no momento, nenhuma perspectiva realista para o fim da guerra. O presidente ucraniano, Volodymir Zelensky já declarou reiteradas vezes que não aceita negociar enquanto houver tropas russas no território internacionalmente reconhecido como ucraniano. Os seus aliados ocidentais, notadamente os EUA, também já reiteraram a disposição de continuar apoiando decisivamente a Ucrânia, pelo tempo que se fizer necessário. Os russos, por outro lado, estão firmemente aferrados ao terreno conquistado em solo ucraniano, o que tornará a ofensiva que a Ucrânia acabou de iniciar para tentar retomar território uma operação muitíssimo difícil e de resultado bastante incerto. Ademais, do ponto de vista do presidente da Rússia, Vladimir Putin, é impensável recuar suas tropas de volta para a casa sem uma vitória, ainda mais em uma guerra que ele mesmo iniciou. Isso muito provavelmente significaria o fim de sua carreira política como presidente da Rússia.

A guerra pode, dessa forma, perdurar por muito tempo ainda. Do lado ucraniano, tudo depende da disposição de seus parceiros em manter o apoio militar. Do lado russo, é provável que sejam capazes de manter a atual operação defensiva por muito tempo, mantida por suas ainda amplas capacidades militares, na esperança de que os governos do ocidente, em especial dos EUA, encerrem seu apoio à Ucrânia, talvez pressionados por suas populações, quando essas se cansarem da guerra, ou talvez por uma mudança de postura em uma eventual nova administração que possa assumir o governo após as eleições presidenciais do ano que vem.

Finalmente, no triste aniversário de 500 dias da guerra na Ucrânia, não se vislumbra o encerramento do conflito, que infelizmente continuará causando muito sofrimento às populações envolvidas e graves consequências para o restante da humanidade.

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O início da contraofensiva ucraniana

Finalmente, a tão anunciada contraofensiva ucraniana teve início. Junto com ela, a intensificação da disputa de versões e de narrativas, naturais em tempos de guerra, em que cada uma das partes em conflito tenta fazer parecer, à opinião pública local e estrangeira, que a balança da guerra está a pender para o seu lado. Enxergar por entre a bruma da guerra, na magistral imagem clausewitzniana que ilustra a incerteza e a confusão inerentes ao conflito, não é tarefa fácil. Para isso, entretanto, pode-se recorrer à algumas ferramentas, como o conhecimento histórico e doutrinário acerca das operações ofensivas.

Vamos começar por uma definição. Operações ofensivas são operações agressivas, onde predominam o movimento, a manobra e a iniciativa, para lançar-se contra o inimigo, no local e momentos decisivos, destruindo-o ou neutralizando-o. Para ter sucesso, o atacante precisa ter uma superioridade de meios em relação ao seu adversário. Por isso, deve evitar as partes mais fortes do inimigo, procurando forçá-lo a atuar em uma direção inesperada, preferencialmente onde o terreno não esteja preparado para a defesa.

Dito assim, pode parecer simples, mas realmente não é. Por isso, não espere resultados rápidos da ofensiva ucraniana.

No caso, é importante notar que os russos dispõem de uma maior quantidade de soldados; tiveram bastante tempo para preparar suas defesas, construindo centenas de quilômetros de linhas de trincheiras, tanto em largura quanto em profundidade; lançaram muitos campos de minas, ao logo de toda a frente; prepararam os tiros de artilharia, que certamente já estão regulados nas direções de ataque mais prováveis; pré-posicionaram suprimentos logísticos, especialmente munições e treinaram contra-ataques em suas linhas defensivas.

Os ucranianos sabem disso tudo. Por isso, não se espera que os primeiros movimentos – justamente os que estão em curso atualmente – sejam decisivos. Esses devem ser, de acordo com a doutrina e à luz do que a história militar nos ensina, ataques limitados ou secundários, para “testar” as defesas russas, iludi-las quanto à localização do ataque principal, descobrir fragilidades em seus dispositivos e atrair a movimentação das reservas inimigas para determinadas partes da frente de combate. Provavelmente os objetivos ucranianos nesse primeiro momento são curtos, sobre as primeiras linhas de defesa. Conquistando esses pontos na primeira linha, os ucranianos abrem “buracos” na defesa russa, que se sentirá obrigada a deslocar novas tropas para posições mais em profundidade, tamponando as brechas que foram abertas na defesa.

Seguindo-se essa linha de raciocínio, espera-se que os planejadores ucranianos tenham imaginado que, quando essa primeira fase do ataque estiver concluída a figura do campo de batalha vai mostrar pequenos avanços ucranianos em diferentes partes da frente. Prestem atenção a isso quando virem os mapas que serão divulgados pela imprensa.

Quando isso acontecer, os atacantes ucranianos estarão combatendo tropas russas em uma segunda ou terceira linha de defesa, ou seja, mais em profundidade. Lembrem-se que esses defensores mais em profundidade são aquelas reservas, a que me referi antes. Este será o momento para o desencadeamento de uma segunda onda de ataques, em outras partes da frente, essa sim, destinada a alcançar os objetivos decisivos mais em profundidade.

Como as reservas russas não poderão estar em dois lugares ao mesmo tempo, os ucranianos não precisarão enfrentar tantas linhas de defesa. Pelo menos é isso que os planejadores ucranianos provavelmente esperam que aconteça.

Tudo isso levará, no mínimo, algumas semanas para acontecer. A menos que aconteça um desastre nas defesas russas, o que não parece provável neste momento.

Mas prossigamos na tentativa de antever os movimentos do exército da Ucrânia, sempre à luz dos ensinamentos históricos e doutrinários. Se os planos da ofensiva derem certo, os ucranianos controlarão, ao final dessa fase, objetivos operacionais relevantes. Os locais escolhidos para a definição desses objetivos são aqueles que proporcionam aos ucranianos uma vantagem operacional marcante, como a cidade de Melitopol, por exemplo, que interrompe a ligação terrestre entre a Crimeia e a Rússia. De posse desses objetivos, a Ucrânia poderá tentar passar para a próxima fase de seu plano de campanha: o cerco e a destruição. Com as defesas desorganizadas pelo avanço da ofensiva, restarão bolsões russos. Estes passarão a ser cercados e destruídos.

É claro que a visão descrita acima é aquela em que tudo dá certo para os ucranianos. Os russos conhecem a doutrina e a história. Aprenderam com os erros da primeira fase da guerra e farão o que estiver a seu alcance para impedir que isso aconteça.

As próximas semanas e meses serão de combates muito duros na Ucrânia.

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O G7, a guerra na Ucrânia e a China

O Grupo dos Sete (G7), formado por Estados Unidos, Reino Unido, Japão, França, Canadá, Alemanha e Itália, reuniu-se para sua cúpula anual, na cidade de Hiroshima, no Japão, entre os dias 19 e 21 de maio. Além dos países que compõem o grupo, alguns outros foram convidados: Brasil, Índia, Austrália, Coreia do Sul, Vietnã, Indonésia, Ilhas Cook e Comores. Além desses, um chefe de Estado foi recebido, com especial deferência: Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, país invadido pela Rússia em 24 de fevereiro do ano passado. Dois assuntos ganharam destaque no encontro: a guerra na Ucrânia e as relações dos países do G7 com a China.

O espectro da guerra em curso no território ucraniano acompanhou toda a reunião. A crise ganhou tal destaque nas conversas que é citada no comunicado final[1] do encontro como primeiro item das medidas concretas que estão sendo tomadas pelo G7: “Estamos tomando medidas concretas para apoiar a Ucrânia pelo tempo que for necessário diante da guerra de agressão ilegal da Rússia”.

A invasão da Ucrânia pela Rússia foi citada como uma séria violação do Direito Internacional, especialmente da Carta da ONU. Em face disso, o G7 se compromete a “intensificar seu apoio diplomático, financeiro, humanitário e militar à Ucrânia, aumentando os custos para a Rússia e aqueles que apoiam seu esforço de guerra e continuar a combater os impactos negativos da guerra sobre o resto do mundo”.

A região do Indo-Pacífico também recebeu destaque na declaração final do encontro. Os países do G7 se disseram comprometidos com um “Indo-Pacífico livre e aberto, que seja inclusivo, próspero, seguro, baseado no estado de direito e que proteja os princípios compartilhados, incluindo soberania, integridade territorial, resolução pacífica de disputas, liberdades fundamentais e direitos humanos”.

As relações dos países do grupo com a China também mereceram uma atenção especial. Eles afirmam que suas políticas não são projetadas para prejudicar a China ou impedir o seu progresso e o desenvolvimento econômico. Pelo contrário, o G7 afirma que uma China em crescimento, que obedeça às regras internacionais, seria de interesse global. Em seguida, entretanto, o grupo afirma que a China praticaria políticas não comerciais, que distorceriam a economia global. O país transferiria ilegalmente tecnologia e divulgaria dados descumprindo as normas internacionais. Outro foco de preocupação do G7 em relação à China é a situação no Mar do Sul da China e em Taiwan. O grupo declarou que se oporia fortemente a qualquer tentativa unilateral de mudança do status quo da região pela força ou pela coerção, em clara referência à situação taiwanesa. Também afirmou ser contrário à militarização do Mar do Sul da China, afirmando que as pretensões territoriais chinesas não encontram amparo na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Uso do Mar. O grupo ainda se disse preocupado com a situação dos direitos humanos em Xinjiang, no Tibete e em Hong Kong.

Os chineses imediatamente reagiram, se dizendo gravemente preocupados com a declaração. Afirmaram que os países do G7 vêm, ao longo dos últimos anos, interferindo grosseiramente nos assuntos internos da China referentes à Taiwan, Hong Kong, Xijiang e Tibete. Além disso, o grupo semearia a discórdia entre os países no Mar do Sul da China. Em alerta ao Ocidente, os chineses disseram que para a manutenção da paz no Estreito de Taiwan é imperativo que os países do G7 se oponham a qualquer ato que estimule a independência do arquipélago. Os chineses, por fim, pediram ao G7 que “descarte a mentalidade da Guerra Fria e o preconceito ideológico, pare de interferir grosseiramente nos assuntos internos de outros países, pare com a prática de formar pequenos círculos para o confronto em bloco e pare de criar deliberadamente antagonismo e divisão na comunidade internacional”.

As posições apresentadas pelos países que compõem o G7 em sua reunião, que acaba de se encerrar, explicita o momento de intensa disputa geopolítica em curso. A guerra na Ucrânia é um sintoma dessa confrontação, e a troca de acusações entre os países do grupo e a China, é outro. Espera-se que as tensões no Indo-Pacífico não ultrapassem o nível da retórica e evitem a confrontação armada porque, diferentemente da guerra entre russos e ucranianos, onde a participação direta da OTAN no conflito vem sendo evitada, no Mar do Sul da China ou no Estreito de Taiwan essa contenção dificilmente seria possível, o que transformaria tais conflitos em crises muito maiores do que a atualmente em curso na Ucrânia.

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[1] https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2023/05/20/g7-hiroshima-leaders-communique/




No aniversário da guerra, dois discursos que aumentam as tensões

No dia 21 de fevereiro, no intervalo de poucas horas, os presidentes das duas maiores potências nucleares do planeta discursaram, tendo a guerra na Ucrânia, que no dia 24 completará um ano de duração, como pano de fundo.

Na Rússia, o presidente Vladimir Putin fez seu discurso anual ao congresso e às maiores lideranças civis e militares do país. Na Polônia, o presidente dos EUA, que chegava de uma histórica visita à Kiev, capital da Ucrânia, discursou para uma multidão do lado de fora do Castelo Real da Polônia.

As duas visões de mundo apresentadas não poderiam ser mais contraditórias.

Putin reafirmou sua narrativa, sem surpresas. Responsabilizou o Ocidente e a OTAN, a quem acusa de querer “destruir a Rússia”, pela guerra na Ucrânia. Atacou o governo ucraniano, chamando-o de “regime neonazista”, enfatizando que a Rússia não desistiria de seus objetivos.

Além disso, Putin reforçou a narrativa da guerra cultural, colocando a Rússia como o país que protege os verdadeiros valores cristãos e acusando o Ocidente de “destruição da família”.

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Joe Biden, por sua vez, reafirmou o compromisso dos EUA com a Ucrânia, instando as demais nações do mundo a assumirem um compromisso com o país. Afirmou que a democracia global estava em jogo e acusou a Rússia de cometer graves crimes contra civis.

Em resposta à acusação que Putin tinha feito horas antes, disse que foi a Rússia quem escolheu a guerra e que o Ocidente nunca havia planejado invadir a Rússia. Mas, afirmou que os EUA, a Europa e o mundo foram testados pela invasão russa, uma vez que teriam que escolher entre apoiar os ucranianos ou fazer vista grossa. A decisão, de acordo com o presidente dos EUA, não poderia ser outra a não ser apoiar os ucranianos.

Entretanto, foi um anúncio de Putin que teve maior repercussão. O presidente russo anunciou que seu país suspenderia o cumprimento do previsto no tratado Novo Start, de 2011, que limita em 1.550 o número de ogivas nucleares, além de controlar a quantidade de lançadores e de mísseis balísticos intercontinentais que podem ser desdobrados por EUA ou Rússia.

O acordo prevê 18 visitas anuais das equipes de controle de cada um dos lados, de modo a garantir o cumprimento das resoluções. Essas visitas já estavam, na prática, interrompidas há três anos, primeiramente em razão da pandemia da Covid-19 e, depois, por causa da guerra na Ucrânia. Com a decisão anunciada por Putin, a Rússia simplesmente não aceitará mais as visitas.

Os russos afirmaram, entretanto, que não se trata de “se retirar” do acordo, e que não têm intenção de aumentar seu arsenal nuclear, mantendo-o na quantidade atual. Mas, Putin afirmou que “se os EUA realizarem testes, nós também o faremos”.

Dessa forma, o último acordo que regulava os arsenais nucleares entre as duas potências cai por terra. Outros acordos de não proliferação, incluindo o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, do qual os EUA se retiraram em 2018, no que foram seguidos pela Rússia em retaliação, desmoronaram nos últimos anos.

O fim dos acordos de controle das armas nucleares entre EUA e Rússia, em um contexto em que os dois países acirram suas retóricas, em plena guerra na Ucrânia, não é um bom presságio. Ainda mais se se juntam a este contexto o desenvolvimento cada vez maior da missilística intercontinental da Coreia do Norte, o desenvolvimento do programa nuclear iraniano e a intenção chinesa de elevar seus estoques de armas nucleares ao mesmo nível dos russos e norte-americanos.

O resultado dessa conjuntura é a possibilidade cada vez maior de o mundo observar o surgimento de novos atores com capacidade nuclear. Recentes pesquisas na Coreia do Sul indicam que 76% dos sul-coreanos defendem que o país desenvolva e adote armas nucleares como forma de dissuasão.

Desconfio que se essa pergunta for feita em vários outros países, os resultados podem ser semelhantes.

A sensação de insegurança, cada vez maior, já está acelerando os gastos militares em todo o mundo. Os discursos de Putin e Biden nada mais fizeram do que explicitar cabalmente essa insegurança.

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Conheça o Challenger 2, o carro de combate principal que o Reino Unido está mandando para a Ucrânia

O Reino Unido decidiu enviar 14 unidades do Challenger 2, o suficiente para mobiliar um Esquadrão de Carros de Combate, para o exército ucraniano.

O Challenger 2 começou a operar no exército britânico na segunda metade da década de 1990, tendo sido empregado na Bósnia e no Kosovo, além da invasão do Iraque, em 2003.

É um carro pesado, de 62,5 toneladas, armado com um canhão 120 mm capaz de empregar tanto munições de energia cinética (flecha), quanto munições explosivas, além de duas metralhadoras 7,62 mm, uma coaxial e outra de emprego geral. A aparelhagem de pontaria óptica e termal, disponíveis tanto para o atirador do carro quanto para o comandante, são integradas à torre estabilizada, que permite um rápido engajamento dos alvos. O motor diesel Perkins CV12 de 12 cilindros e 1.200 hp, com uma caixa de câmbio David Brown TN54, fornecem seis marchas à frente e duas marchas à ré.

Em maio de 2021, o Ministério da defesa do Reino Unido fechou um contrato de £ 800 milhões com a Rheinmetall BAE Systems Land (RBSL) para atualizar 148 Challenger 2 para o exército britânico. O veículo atualizado, a ser chamado de Challenger 3, será um carro de combate principal “digital, habilitado para combate em rede, com letalidade de última geração, capacidade de sobrevivência atualizada, além de recursos de aquisição de alvos de última geração.




A OTAN dobra a aposta

A ajuda militar à Ucrânia anunciada nos últimos dias por Estados Unidos, França e Alemanha, além das promessas no mesmo sentido feitas por outros países europeus, aumentará significativamente o poder de combate ucraniano para a guerra contra a Rússia em 2023. 

Embora o apoio ocidental à Ucrânia até aqui tenha sido fundamental para evitar uma derrota para os russos, é importante notar que o que aconteceu recentemente, com os anúncios de novas levas de ajuda militar feitos de forma praticamente simultânea por EUA, França e Alemanha, foi uma indicação de que esses países dobram a aposta e se comprometem definitivamente com a causa ucraniana. 

Isso porque, desta vez, além de fornecer os itens que já vinham repassando desde o início da guerra, os ocidentais resolveram apoiar com materiais militares que podem fazer grande diferença em favor dos ucranianos. Os alemães anunciaram o envio de 40 Viaturas Blindadas de Combate de Infantaria (VBCI) Marder. Os norte-americanos, por sua vez, enviarão 50 VBCI Bradley M2A2 e 18 obuseiros autopropulsados M109 Paladin. Já os franceses, garantiram o envio de Viaturas Blindadas de Combate de Cavalaria (VBCCav) AMX-10 RC. Em conjunto, essas viaturas vão aumentar a potência de fogo, a mobilidade, a proteção blindada, a ação de choque e a capacidade de comunicação das tropas de infantaria, cavalaria e artilharia ucranianas, o que sem dúvida será muito útil na ofensiva de primavera, a ser provavelmente desencadeada pelos ucranianos assim que as condições meteorológicas se mostrarem mais favoráveis. 

Ainda não são os Carros de Combate Principais, os mais importantes meios blindados para uma operação ofensiva, como os Leopard II alemães, os Leclerc franceses ou os Abrams norte-americanos. Mas, parece que esses, apesar de escassos nos inventários de todos os exércitos do mundo, também poderão ser enviados à Ucrânia em curto prazo.  Finlândia e Polônia já declararam que podem ceder seus carros à Ucrânia, caso a Europa encontre uma forma de doação coletiva que mantenha o poder de combate dos países doadores. Outra possibilidade que vem sendo aventada é a de o Reino Unido enviar os carros Challenger II. 

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É claro que o simples envio dos blindados não resolve a questão. É necessário providenciar o treinamento das tripulações e assegurar a complexa cadeia logística de cada um dos blindados. O carro francês, por exemplo, possui um canhão de calibre 105 mm, que não usa munição padrão OTAN, exigindo uma cadeia de suprimentos específica. Não é um esforço trivial ou simples de ser executado. 

O movimento das potências ocidentais certamente provocará reações por parte da Rússia. O Kremlin reforçará a retórica, especialmente para sua própria população, de que a Rússia não enfrenta apenas a Ucrânia, e sim toda a OTAN. Com isso, a população russa poderia ser levada a aceitar com mais facilidade as provações a que está sendo submetida pela guerra, incluindo-se aí uma nova mobilização de recrutas. Serviços de inteligência ocidentais teriam informações de que, dessa vez, o objetivo seria o de recrutar meio milhão de soldados, e que tal movimento poderia ocorrer a partir de março.

Ao mesmo tempo, os russos intensificarão seu esforço de guerra, como já anunciou o presidente Putin. Além disso, provavelmente buscarão novos fornecedores externos de material de emprego militar, além de intensificar as importações que já fazem do Irã e, muito provavelmente, também da Coreia do Norte. A Rússia poderá ainda pressionar seus aliados por mais apoio, especialmente Belarus e demais países aliados da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC): Armênia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão. China e Índia dificilmente concordarão em exportar armas ao país, pelo menos de forma ostensiva, mas continuarão fundamentais aos russos do ponto de vista econômico. 

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Também é provável que a Rússia amplifique sua retórica nuclear, reforçando em declarações de suas autoridades as capacidades do país e enfatizando aos líderes do Ocidente que poderia usar armas atômicas caso alguma “linha vermelha” russa venha a ser ultrapassada pelos ucranianos ou pelo próprio Ocidente. 

Em síntese, o que se vê com esse movimento Ocidental de reforçar as doações de material bélico à Ucrânia é a OTAN redobrando sua aposta na Ucrânia. Entretanto, o inimigo não é débil. Longe disso, está aprendendo com os erros que cometeu até aqui.  

Assim, não se pode fazer nenhuma previsão de encerramento do conflito em curto prazo. Pelo contrário, 2023 provavelmente será um ano de combates ainda mais encarniçados em território ucraniano. 

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Trezentos dias de guerra na Ucrânia

No dia 21 de dezembro, a invasão russa à Ucrânia completou 300 dias. A marca impressiona pela persistência do conflito que, antes de iniciar, era dado como improvável e que, depois de iniciado, era apontado como um evento destinado a ser de curta duração. Afinal, o poderio militar russo, incontestavelmente superior, deveria sobrepujar as defesas ucranianas em questão de dias. Mas a guerra, já ensinava Clausewitz, é o “reino da incerteza” e, ao se atingir a tricentésima alvorada do conflito, a máxima do general prussiano se vê confirmada mais uma vez.

Estamos acompanhando a uma guerra de alta intensidade, com largo emprego de artilharia e de blindados, operações aeromóveis, milhares de quilômetros quadrados de áreas minadas, combates em localidades, ampla destruição de infraestrutura de uso civil, mobilização de reservistas, milhões de refugiados e dezenas de milhares de mortos e de feridos. Uma guerra daquelas que os europeus imaginavam que não mais seria travada, pelo menos em seu próprio continente.

A crença no “fim das guerras” se refletiu na relativa desaceleração dos investimentos em Defesa nas duas primeiras décadas do século 21 e no descrédito dos próprios europeus ocidentais em sua aliança militar, a OTAN. Nesse sentido, o presidente francês Emmanuel Macron, em uma entrevista publicada na revista The Economist, em novembro de 2019, afirmou que não sabia se o compromisso da OTAN com a defesa coletiva ainda era válido e que a aliança estava passando por “morte cerebral” devido à falta de coordenação estratégica e liderança dos Estados Unidos.

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Nesse contexto, e certamente muito mal impressionado pelas imagens desastrosas de afegãos desesperados pendurados nas aeronaves norte-americanas quando da retirada das tropas daquele país do Afeganistão, o presidente Putin começou a ficar excessivamente confiante. Acreditar na própria propaganda é um erro que líderes autocráticos cometem com frequência ao longo da história, e Putin talvez tenha acreditado demais no suposto “declínio do Ocidente”. Ele aparentemente julgou que dispunha de capacidades militares e econômicas mais que suficientes para impor uma derrota rápida aos ucranianos, instalar um governo simpático à Rússia em Kiev e consolidar a posse da Crimeia, além da instalação de dois Estados fantoche, as repúblicas de Lugansk e Donetsk, palcos da guerra civil financiada pelos russos contra a Ucrânia desde 2014.

Mas, aos russos, “faltou combinar com os ucranianos”. Foi nesse ponto que surgiu uma liderança surpreendente e improvável, o presidente Volodymir Zelensky. O humorista, político inexperiente em primeiro mandato, mostrou a que veio logo em sua primeira decisão crucial, a de permanecer em Kiev. Os EUA ofereceram providenciar sua evacuação, mas sua resposta foi: “A luta é aqui. Eu preciso de munição, não de uma carona”. A partir de então, o presidente ucraniano fez o que se espera de um líder de um país em guerra: galvanizou os esforços de construção de um arco de alianças, que ficou consubstanciado no enorme apoio em recursos financeiros e material de emprego militar que o país vem recebendo ao longo desses trezentos dias, e liderou seu próprio povo no esforço de guerra. Ele foi visto frequentemente visitando as frentes de combate e hospitais e dirige-se diariamente à população, conquistando apoio e respeito dos ucranianos, que é refletido nas altas taxas de popularidade do presidente.

Mas é claro que a liderança de Zelensky não é a única explicação para a impressionante resiliência ucraniana. O exército do país aprendeu muito desde a tomada da Crimeia pelos russos e o início na guerra na região do Donbass, em 2014, e demonstra ser uma força bem treinada e bem liderada. Além disso, há o fundamental apoio material do Ocidente, mais especificamente dos países da OTAN, aquela mesma aliança desacreditada pelo presidente Macron em 2019, a quem a guerra de Putin não somente fez reoxigenar, como também expandir em direção às fronteiras russas, com os avançados processos de inclusão da Suécia e Finlândia. Sem modernos sistemas de armas como o lançador múltiplo de foguetes norte-americano HIMARS, sem as centenas de milhares de granadas de artilharia, sem o apoio em inteligência e cibernética, e principalmente sem o apoio financeiro dos países da OTAN, a guerra já teria sido vencida pelos russos.

Os russos, ao depararem-se com a surpreendente resistência oferecida pela Ucrânia, além das já esperadas sanções econômicas – que se diga, não atingiram os efeitos esperados pelo Ocidente – foram forçados a adaptar sua estratégia e alterar seus objetivos. Aparentemente, ficariam satisfeitos se o término da guerra lhes premiasse com a posse dos territórios hoje ocupados, nas províncias da Lugansk, Donetsk, Zaporizhzhia e Kherson, além da Crimeia.

Mas, se de um lado a Ucrânia não parece estar disposta a ceder nenhum centímetro de seu território, de outro, ao presidente russo, seria impensável sair da guerra sem qualquer conquista, uma vez que seria impossível justificar ao povo russo a “operação militar especial”, seus enormes prejuízos econômicos e as milhares de vítimas.

Assim, o impasse permanece garantido, e é ainda prematuro fazer qualquer previsão realista de um final para essa guerra em um curto prazo.

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