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Trezentos dias de guerra na Ucrânia

No dia 21 de dezembro, a invasão russa à Ucrânia completou 300 dias. A marca impressiona pela persistência do conflito que, antes de iniciar, era dado como improvável e que, depois de iniciado, era apontado como um evento destinado a ser de curta duração. Afinal, o poderio militar russo, incontestavelmente superior, deveria sobrepujar as defesas ucranianas em questão de dias. Mas a guerra, já ensinava Clausewitz, é o “reino da incerteza” e, ao se atingir a tricentésima alvorada do conflito, a máxima do general prussiano se vê confirmada mais uma vez.

Estamos acompanhando a uma guerra de alta intensidade, com largo emprego de artilharia e de blindados, operações aeromóveis, milhares de quilômetros quadrados de áreas minadas, combates em localidades, ampla destruição de infraestrutura de uso civil, mobilização de reservistas, milhões de refugiados e dezenas de milhares de mortos e de feridos. Uma guerra daquelas que os europeus imaginavam que não mais seria travada, pelo menos em seu próprio continente.

A crença no “fim das guerras” se refletiu na relativa desaceleração dos investimentos em Defesa nas duas primeiras décadas do século 21 e no descrédito dos próprios europeus ocidentais em sua aliança militar, a OTAN. Nesse sentido, o presidente francês Emmanuel Macron, em uma entrevista publicada na revista The Economist, em novembro de 2019, afirmou que não sabia se o compromisso da OTAN com a defesa coletiva ainda era válido e que a aliança estava passando por “morte cerebral” devido à falta de coordenação estratégica e liderança dos Estados Unidos.

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Nesse contexto, e certamente muito mal impressionado pelas imagens desastrosas de afegãos desesperados pendurados nas aeronaves norte-americanas quando da retirada das tropas daquele país do Afeganistão, o presidente Putin começou a ficar excessivamente confiante. Acreditar na própria propaganda é um erro que líderes autocráticos cometem com frequência ao longo da história, e Putin talvez tenha acreditado demais no suposto “declínio do Ocidente”. Ele aparentemente julgou que dispunha de capacidades militares e econômicas mais que suficientes para impor uma derrota rápida aos ucranianos, instalar um governo simpático à Rússia em Kiev e consolidar a posse da Crimeia, além da instalação de dois Estados fantoche, as repúblicas de Lugansk e Donetsk, palcos da guerra civil financiada pelos russos contra a Ucrânia desde 2014.

Mas, aos russos, “faltou combinar com os ucranianos”. Foi nesse ponto que surgiu uma liderança surpreendente e improvável, o presidente Volodymir Zelensky. O humorista, político inexperiente em primeiro mandato, mostrou a que veio logo em sua primeira decisão crucial, a de permanecer em Kiev. Os EUA ofereceram providenciar sua evacuação, mas sua resposta foi: “A luta é aqui. Eu preciso de munição, não de uma carona”. A partir de então, o presidente ucraniano fez o que se espera de um líder de um país em guerra: galvanizou os esforços de construção de um arco de alianças, que ficou consubstanciado no enorme apoio em recursos financeiros e material de emprego militar que o país vem recebendo ao longo desses trezentos dias, e liderou seu próprio povo no esforço de guerra. Ele foi visto frequentemente visitando as frentes de combate e hospitais e dirige-se diariamente à população, conquistando apoio e respeito dos ucranianos, que é refletido nas altas taxas de popularidade do presidente.

Mas é claro que a liderança de Zelensky não é a única explicação para a impressionante resiliência ucraniana. O exército do país aprendeu muito desde a tomada da Crimeia pelos russos e o início na guerra na região do Donbass, em 2014, e demonstra ser uma força bem treinada e bem liderada. Além disso, há o fundamental apoio material do Ocidente, mais especificamente dos países da OTAN, aquela mesma aliança desacreditada pelo presidente Macron em 2019, a quem a guerra de Putin não somente fez reoxigenar, como também expandir em direção às fronteiras russas, com os avançados processos de inclusão da Suécia e Finlândia. Sem modernos sistemas de armas como o lançador múltiplo de foguetes norte-americano HIMARS, sem as centenas de milhares de granadas de artilharia, sem o apoio em inteligência e cibernética, e principalmente sem o apoio financeiro dos países da OTAN, a guerra já teria sido vencida pelos russos.

Os russos, ao depararem-se com a surpreendente resistência oferecida pela Ucrânia, além das já esperadas sanções econômicas – que se diga, não atingiram os efeitos esperados pelo Ocidente – foram forçados a adaptar sua estratégia e alterar seus objetivos. Aparentemente, ficariam satisfeitos se o término da guerra lhes premiasse com a posse dos territórios hoje ocupados, nas províncias da Lugansk, Donetsk, Zaporizhzhia e Kherson, além da Crimeia.

Mas, se de um lado a Ucrânia não parece estar disposta a ceder nenhum centímetro de seu território, de outro, ao presidente russo, seria impensável sair da guerra sem qualquer conquista, uma vez que seria impossível justificar ao povo russo a “operação militar especial”, seus enormes prejuízos econômicos e as milhares de vítimas.

Assim, o impasse permanece garantido, e é ainda prematuro fazer qualquer previsão realista de um final para essa guerra em um curto prazo.

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A ameaça nuclear de Putin

No discurso feito no último dia 21 de setembro, em que anunciou a “mobilização parcial” dos meios em pessoal e material para a guerra na Ucrânia, o presidente Putin ameaçou utilizar seu arsenal nuclear: “…gostaria de lembrar àqueles que fazem afirmações sobre a Rússia que o nosso país também dispõe de vários meios de destruição e que, em alguns casos, eles são mais modernos do que os dos países da Otan. Se a integridade territorial russa for ameaçada, utilizaremos todos os meios disponíveis para proteger a Rússia e o nosso povo.” Não é a primeira vez que Putin ou outras autoridades russas acenam com a carta nuclear desde o início da guerra. Em maio, o chanceler Sergey Lavrov, já havia afirmado que o perigo de uma escalada nuclear era “sério, real e não deveria ser subestimado”.

A frase de Putin foi dita no contexto da realização dos referendos que os russos e seus proxies promoveram em quatro províncias ucranianas que atualmente se encontram parcialmente ocupadas pelas tropas russas: Lugansk, Donetsk, Zaporzhizia e Kherson. O resultado do referendo, como era evidente, decidiu pela incorporação dos territórios à Rússia, o que já foi formalizado pelo governo russo.

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Uma vez anexadas, na narrativa engendrada por Putin, aquelas áreas passaram a ser Rússia, e suas populações, “povo russo”, mesmo que toda a comunidade internacional permaneça considerando-as solo e povo ucranianos.

Assim, a guerra, na narrativa russa, deixa de ser travada em solo ucraniano e passa a ser disputada em território da própria Rússia. O emprego de “todos os meios disponíveis” passa a ser legitimado pela narrativa da defesa do próprio território. O uso da arma nuclear pelos russos deixaria de ser uma ação ofensiva, uma vez que se tratava de uma invasão de um país soberano, para ser uma ação defensiva, a defesa de seu próprio território.

É evidente que a maior parte da comunidade internacional não aceitou a anexação. Mas, para Putin, isso não faz a menor diferença. A guerra claramente não saiu como ele previa e a contraofensiva ucraniana, que causa enormes perdas em pessoal e material às suas forças armadas, já o obrigou a mobilizar tropas pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, uma medida que vem se mostrando muito impopular na Rússia. Não conquistando os objetivos iniciais e vendo sua popularidade diminuir, Putin precisa pelo menos salvar as aparências, propósito a que a anexação das quatro províncias pode servir, pois seria uma situação que poderia ser apresentada aos cidadãos russos como uma vitória.

Mas, os ucranianos já demonstraram não estar dispostos a renunciar a seus territórios e uma paz que exigisse essa condição certamente seria recusada por Kiev. Caso a ofensiva ucraniana continue obtendo êxitos, teme-se que Putin, cada vez mais acuado pelos insucessos na guerra e pelas pressões internas, resolva fazer o impensável: apelar ao seu arsenal nuclear.

Caso tomasse essa decisão, Putin ultrapassaria seu Rubicão, provocando reações por parte dos EUA, da OTAN e da Ucrânia que podem não ser exatamente aquelas que ele prevê. O mais provável é que ele fizesse isso como uma demonstração de força e de disposição para escalar o conflito, lançando um artefato nuclear tático. Há várias formas de se definir esse tipo de armamento nuclear, mas, para simplificar, basta dizer que se trata de uma arma com menor alcance e menor poder explosivo, destinada a ser utilizada no próprio Teatro de Operações, muitas vezes na presença das tropas da própria força que a utiliza.

Também se especula que os russos a lançariam sobre o mar – poderia ser no Mar Negro, por exemplo – ou em alguma região rural, pouco habitada e relativamente isolada na Ucrânia que, não nos esqueçamos, é um país de grande extensão territorial. Os russos também poderiam lançar suas bombas sobre efetivos militares ucranianos, o que exigiria a utilização de várias armas ao mesmo tempo. Em um cenário ainda mais grave, as bombas poderiam ser utilizadas contra cidades ucranianas.

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A lógica russa por trás desse ataque seria o pressuposto – correto – de que os EUA e a OTAN não desejam escalar o conflito para se contrapor diretamente aos russos. Nessa linha de raciocínio, uma ação nuclear não ensejaria uma resposta nuclear, dada a mútua destruição assegurada de um conflito dessa natureza. Mas, ao lançar as bombas atômicas, Putin tentaria demonstrar que diferentemente dos ocidentais, não temeria essa escalada e que seria exatamente isso que estaria prestes a acontecer caso a Ucrânia não mudasse de rumo e aceitasse negociar uma paz nos termos russos. Seria o que se denomina “escalar para desescalar”: levar o conflito a um nível insuportável para obrigar a rendição do inimigo.

Ocorre que mesmo no cenário mais brando, da explosão sobre o mar ou em áreas desabitadas, causando relativamente poucas baixas, essa seria uma escalada no conflito que exigiria que os principais atores do sistema internacional se posicionassem, e eles o fariam, isolando ainda mais a Rússia.

Países que tem evitado posicionar-se contra a Rússia, em especial China e Índia, certamente desaprovariam vigorosamente a ação. Embora provavelmente continuassem a manter distância do conflito, evitando envolvimentos, e provavelmente pugnassem pela imediata negociação entre as partes, eles acabariam por aderir a novos embargos e sanções contra a Rússia, deixando o país presidido por Putin completamente isolado.

Já os EUA e a OTAN, poderiam reagir, em tese, de uma das seguintes formas:

  1. Contra-atacando o território russo com armas nucleares
  2. Atacando convencionalmente as forças russas na Ucrânia ou mesmo fora daquele território.
  3. Aumentando ainda mais o apoio à Ucrânia, fornecendo mais armamentos, de tipos ainda não disponibilizados, como mísseis de longo alcance, e recursos financeiros, além de assessoria militar e de inteligência.
  4. Pressionando a Ucrânia a resolver o conflito, dando à Rússia uma saída honrosa.

As hipóteses 1 e 2 mudariam fundamentalmente a natureza do conflito, uma vez que a OTAN e os EUA passariam a estar diretamente envolvidos. A hipótese 4 é politicamente inviável, dada a solidariedade e o apoio até aqui oferecidos à Ucrânia pelo Ocidente. Mais do que isso, significaria que a chantagem nuclear teve sucesso, um desdobramento que os EUA e a OTAN não podem admitir. Assim, considero as hipóteses 1 e 4 muito improváveis. A segunda hipótese, pouco provável, somente seria adotada caso o ataque nuclear russo à Ucrânia causasse muitas e insuportáveis baixas.

Dessa forma, creio que a terceira hipótese seja a que seria adotada, à qual se somaria a organização de embargos que isolariam quase completamente a Rússia do Sistema Internacional. O problema de se aumentar ainda mais o apoio à Ucrânia em armamento convencional, é que isso poderia estimular os russos a novos empregos de armas nucleares táticas, com alvos mais relevantes, levando o conflito a uma nova e mais perigosa escalada.

Potências nucleares já foram derrotadas em guerras convencionais. Os EUA, no Vietnã, e os próprios russos, no Afeganistão. Mas a situação que se apresenta na guerra da Ucrânia é inteiramente nova pois, pela primeira vez, desde 1945, um país que detém armamento nuclear admite empregá-lo contra um adversário que não possui o mesmo recurso. Isso leva a um questionamento. Nesta circunstância, uma potência nuclear pode ser derrotada?

Por considerar que não pode, é que Putin e os seus generais acenam com a possibilidade de usar a arma atômica. Os desdobramentos, caso isso aconteça, serão gravíssimos.

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Um mundo mais perigoso

Mesmo o observador mais desatento já percebeu que algo está fora de ordem no mundo. A Europa caminha para completar seis meses assistindo a uma guerra de alta intensidade em seu território. Mísseis chineses cruzam o espaço aéreo de Taiwan para atingir mares da Zona Econômica Exclusiva do Japão. Foguetes palestinos cruzam-se no ar com mísseis israelenses, de forma tristemente rotineira. Autoridades iranianas dizem que, embora não desejem, poderiam construir a bomba atômica, se quisessem, a qualquer momento. No Cáucaso, azerbaijanos e armênios rompem o frágil cessar-fogo na região de Nagorno Karabakh. Tudo isso em meio ao agravamento das consequências das mudanças climáticas, da gravíssima crise alimentar na África, da resiliência da pandemia da covid e do surgimento de uma possível nova pandemia, da varíola dos macacos.

A solução para tantas controvérsias internacionais e desafios mundiais, na ordem internacional pós-guerra fria, teria de passar obrigatoriamente por uma ação concertada dos Estados, tendo a Organização das Nações Unidas (ONU) como centro de gravidade. Mas não é isso o que se vê. A ONU, modelada pelos vencedores da 2.ª Guerra Mundial, está sendo incapaz de fazer face aos desafios que se impõem. Seu Conselho de Segurança, instância mais importante do organismo e local em que tais assuntos são prioritariamente tratados, está bloqueado, com a Rússia exercendo constantemente seu poder de veto.

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Toda essa instabilidade não ocorre por acaso. Estamos a assistir às dores do fim de uma ordem internacional estabelecida no pós-guerra fria e o surgimento de outra, ainda lutando para emergir; um momento em que as velhas certezas foram postas em dúvida e as novas ainda não surgiram, em que as instâncias de poder, os freios e contrapesos que valiam antes, perdem aceleradamente sua relevância. Percebendo o momento, os principais Estados do sistema internacional se movimentam na defesa do que consideram ser seus interesses vitais.

A invasão russa à Ucrânia, flagrantemente ilegal sob o prisma do Direito Internacional, é a culminância de um processo de décadas, para o qual Vladimir Putin vinha preparando seu país há alguns anos. Em 2007, numa conferência na Alemanha, Putin declarou que o mundo testemunhava um “quase incondicional hiperuso da força nas relações internacionais, força que está mergulhando o mundo num abismo de permanente conflito”. Ele se referia, obviamente, aos EUA. Um ano depois dessa declaração, os EUA declararam que Geórgia e Ucrânia, dois antigos Estados da União Soviética, poderiam se unir à Otan. Para Putin, era mais um exemplo deste “hiperuso da força”. Ato contínuo, a Rússia invadiu a Geórgia. Em 2014, aconteceu o que Michael Mandelbaum, no livro The Four Ages of American Foreign Policy (Ed. Oxford, 2022), considera ser o episódio que é, ao mesmo tempo, símbolo e causa do fim da era pós-guerra fria: a anexação da Crimeia e a guerra civil provocada pelos russos na Ucrânia. Os russos procuravam mudar o status quo do continente, desafiando, em última análise, o país que era seu garantidor: os EUA. Como obteve êxito em 2014, Putin se sentiu confiante para a invasão de 2022.

Percebendo que sua segurança está em risco, os países europeus resolveram prestar atenção a uma verdade que foi bem sintetizada numa máxima atribuída frequentemente a Rui Barbosa: “Uma nação que confia em seus direitos, em vez de confiar em seus soldados, engana-se a si mesma e prepara a sua própria queda”.

Desde que a invasão da Ucrânia pela Rússia começou, em fevereiro, os Estados-membros da União Europeia anunciaram aumentos nos gastos com defesa no valor de cerca de € 200 bilhões. Isso representa uma enorme mudança. Entre 1999 e 2021, os gastos combinados do bloco em defesa haviam aumentado apenas 20%, em comparação com 66% dos EUA, 292% da Rússia e 592% da China.

Deste modo, a Alemanha anunciou um vigoroso aumento dos investimentos em defesa, a começar por uma injeção de € 100 bilhões. A Polônia decidiu aumentar seus gastos para 3% do PIB, anunciando a aquisição de centenas de veículos blindados e aeronaves. A França anunciou um aumento de € 3 bilhões em seus investimentos, para citar apenas alguns exemplos.

O rearmamento dos países europeus ocorre de forma simultânea ao aumento das tensões na Ásia, onde, no Estreito de Taiwan, se desenrola a maior crise desde a década de 1990 e, no Japão, toma vulto um movimento para a modificação da Constituição pacifista e reestruturação das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, no Oriente Médio, o Irã se aproxima da fabricação da arma atômica.

A solução para a diminuição de tantas tensões passaria, necessariamente, por uma revisão das instâncias de interlocução entre os países, especialmente da mais importante delas, a ONU. Urge modernizar suas estruturas, tornando-a mais representativa da ordem internacional atual, para que ela possa, de fato, ser eficaz em seu propósito primeiro: manter a paz e a segurança internacionais.

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A liderança política na guerra da Ucrânia

Uma boa definição de liderança é a adotada pelo Exército Brasileiro: “A liderança militar consiste em um processo de influência interpessoal do líder militar sobre seus liderados, na medida em que implica o estabelecimento de vínculos afetivos entre os indivíduos, de modo a favorecer o logro dos objetivos da organização militar em dada situação”[1].

Ou seja, o líder deve se esforçar em construir engajamento, deve levar as pessoas a quererem fazer o que deve ser feito para o atingimento dos objetivos da organização a que todos pertencem.

A guerra da Ucrânia contrapõe dois líderes políticos, os presidentes Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin. Putin está no poder há mais de 22 anos, sendo um líder experiente e experimentado na cena internacional. Já conduziu seu país por crises e guerras. Lidera de forma autocrática, cercado por um grupo fiel de assessores que estão ao seu lado há vários anos e que, por isso mesmo, dificilmente divergem de suas decisões. Coerentemente com esse estilo de liderança, permanece afastado, cultivando uma imagem quase venerável. A foto de uma reunião, no início da guerra, com seus mais importantes generais, Shoigu e Gerasimov, sentados em uma extremidade de uma enorme mesa, à uma grande distância do líder, bem representa essa postura.

Para conduzir os russos na direção dos objetivos que ele traçou, Putin se apoia em uma narrativa que tenta transmitir aos seus concidadãos uma situação de relativa normalidade. Nesse sentido proibiu que a guerra seja chamada pelo que é – efetivamente uma guerra – determinando que ela fosse apresentada aos russos apenas como uma “Operação Militar Especial”. Coerentemente com essa narrativa, até o momento, não decretou uma mobilização geral, evitando assim reconhecer que o país necessite adotar medidas extraordinárias em razão do conflito.

Putin apela ao nacionalismo e ao orgulho russos, alegando que o país estava sendo ameaçado pela expansão da OTAN em direção às fronteiras russas e que as minorias étnicas russas na Ucrânia estavam sendo maltratadas pelo governo ucraniano. Ele recorre constantemente às imagens de grandeza do império russo e desdenha da legitimidade da própria existência da Ucrânia como nação independente. Esse discurso encontra eco na sociedade russa e as taxas de aprovação de Putin, que estavam em torno de 60% antes da guerra, passaram a ser de mais de 80%[2] depois do início do conflito.

Zelensky, por sua vez, é um outsider, novato na política, o que torna seu caso interessante de ser analisado sob o prisma dos estudos de liderança. Comediante famoso em seu país, foi guindado à presidência sem antes ter passado por qualquer cargo político. Eleito em 2019 com mais de 70% dos votos, sua aprovação pelos ucranianos, no início de 2022, estava em torno de 30%. Após o início do conflito, sua popularidade triplicou, passando de 90% de aprovação[3].

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Tal fato demonstra que, quando testado pelo conflito, Zelensky surpreendeu a todos fazendo basicamente o que se espera de um líder político nessas situações: galvanizar a vontade de lutar do povo ucraniano e angariar apoios internacionais fundamentais ao esforço de guerra de seu país.

Para efetivamente exercer a liderança, a pessoa deve reunir três qualidades fundamentais: proficiência profissional, ou seja, saber fazer o que deve ser feito no cargo que desempenha; senso moral, servindo de exemplo das virtudes morais esperadas dos liderados; e atitude, tomando as medidas adequadas, no tempo correto, em prol do atingimento dos objetivos almejados por toda a coletividade.

Zelensky soube exercer a presidência em tempos de guerra, até o momento, atendendo a esses requisitos. Mantendo-se no nível de decisão político/estratégico, delegou as decisões de nível operacional e tático aos generais ucranianos. Manteve-se na capital do país, Kiev, durante todo o tempo, mesmo na fase inicial da guerra, com a cidade sob ataque e quando se acreditava que as tropas russas conquistariam a capital rapidamente, demonstrando com isso coragem pessoal e empatia com a população.

Utilizando com maestria sua capacidade de comunicação, cultivada certamente pela profissão de ator, Zelensky passou a se dirigir diariamente à população, sempre com uma mensagem de otimismo e de união do povo ucraniano. Ao mesmo tempo, se dirigiu à comunidade das nações, falando em inúmeros fóruns por videoconferência, conversando com os mais importantes chefes de Estado, inclusive recebendo muitos deles em Kiev. Soube assim aproveitar-se da boa vontade já existente em favor da Ucrânia no Ocidente para angariar apoios importantíssimos para o esforço de guerra ucraniano.

Zelensky é visto visitando as tropas e condecorando soldados, inspecionando hospitais, indo à frente de combate. Ele se comunica diretamente ao mundo pelas redes sociais. Sua mensagem é de colaboração, objetivos compartilhados e formação de equipe.

Tal estilo de liderança, entretanto, não o constrange de tomar medidas duras, se julgar necessário. Um exemplo foi o recente afastamento de seu chefe do serviço de inteligência, um amigo de infância, além da procuradora geral, em razão de centenas de casos de servidores acusados de traição e colaboracionismo com os russos.

Ao se comparar os estilos de liderança de Zelensky e Putin, vemos as enormes diferenças entre os dois. É inegável que Zelensky se comunica muito melhor e com mais facilidade, e comunicação é uma capacidade fundamental aos líderes. Seu estilo é mais adequado aos parâmetros ocidentais modernos, de uma liderança participativa, que conta com o engajamento e as ideias dos liderados.

Putin prefere o estilo autocrático, que chama para si a responsabilidade das decisões, estabelecendo objetivos, fixando normas e avaliando resultados. Ele é o único a encontrar as soluções e espera que sua equipe cumpra seus planos e ordens sem qualquer tipo de ponderação.

É inegável que ambos os estilos apresentam resultados. Pessoalmente, prefiro o estilo participativo, mas sei que haverá momentos em que cabe somente ao comandante supremo a decisão, sendo necessária uma ação imediata, sem espaço para ponderações.

Das guerras sempre emergiram, ao longo da história, líderes que souberam conduzir povos e exércitos em face a enormes desafios. Não será diferente agora. Caso a Ucrânia venha a ser exitosa, conseguindo, se não a vitória completa, que parece ser muito distante nesse momento, pelo menos um acordo de paz digno, que mantenha o país independente e viável, não tenho dúvidas, Zelensky, um ator ucraniano desconhecido, será alçado a condição de um dos mais importantes líderes do século 21, um século até aqui bastante carente de figuras políticas inspiradoras.

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[1] Manual de Liderança Militar do Exército Brasileiro. Leia em https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/302/1/C-20-10.pdf

[2] Veja em https://www.statista.com/statistics/896181/putin-approval-rating-russia/

[3] Veja em https://www.newstatesman.com/chart-of-the-day/2022/03/how-president-zelenskys-approval-ratings-have-surged




Os blindados das pequenas frações no Combate Urbano

Em 2010, eu era um jovem Tenente-Coronel instrutor da Seção de Operações Ofensivas na Escola de Comado e Estado-Maior do Exército. Fui convidado e escrevi meu primeiro artigo para uma revista do EB. A Sangue Novo, da AMAN, voltada para jovens oficiais e cadetes.

O tema do artigo era o os blindados no combate urbano. Relendo, acho que o artigo envelheceu bem, com vários conceitos valendo para a guerra da Ucrânia.

Deem uma olhada!

Os blindados das pequenas frações no combate urbano




A Finlândia e a Suécia na OTAN

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, sempre deixou bastante claro que a principal razão para a invasão da Ucrânia era a ameaça que a possível adesão daquele país à OTAN representava para a segurança da Rússia.

A forte objeção não se deve, apenas, ao fato de ser a Ucrânia um país intimamente ligado à Rússia, com raízes históricas comuns, que estaria se afastando da órbita de influência russa em direção à Aliança Ocidental e à União Europeia. Mas, principalmente, sempre segundo a linha de raciocínio do presidente Putin, tratar-se-ia de mais um passo da contínua expansão da OTAN em direção às fronteiras russas. Afinal, as antigas ex-repúblicas soviéticas, Letônia, Estônia e Lituânia, além dos antigos aliados do Pacto de Varsóvia, Polônia, Bulgária, Romênia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia, já integram a OTAN. Ver a Ucrânia se juntar a esse grupo não é aceitável para presidente russo.

Expansão da OTAN
Fonte – BBC

Dessa forma, se entende a contrariedade que o presidente Putin certamente está experimentando ao ver que a Suécia e a Finlândia, países historicamente neutros, manifestarem o firme propósito de aderir à OTAN.

A Suécia não faz parte de nenhuma aliança militar há mais de 200 anos, desde as guerras napoleônicas, e também manteve a neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial. A Finlândia, por outro lado, tornou-se neutra após perder cerca de 10% de seus territórios para a então União Soviética, na Segunda Guerra Mundial.

A mudança de postura dos dois países nórdicos é surpreendente e reflete as grandes alterações no ambiente de segurança da Europa após a invasão russa à Ucrânia, em 24 de fevereiro. A percepção da ameaça se tornou palpável e a guerra de conquista de território, uma possibilidade impensável até pouco tempo, ainda mais na Europa, mostra-se real. E essa sensação de insegurança se refletiu na opinião pública finlandesa e sueca. Pesquisas de opinião feitas em fevereiro indicavam que apenas 53% dos finlandeses eram favoráveis à adesão à OTAN. Hoje, os índices mudaram bastante, informando que 76% da população passou a ser favorável à adesão.

A entrada na OTAN depende de um rito que, se depender das declarações do Secretário-geral da organização, Jens Stoltemberg, um Norueguês, será acelerado ao máximo. Entretanto, pode haver algumas dificuldades. Segundo as normas da organização, a aceitação de um novo integrante depende da concordância unânime de todos os seus membros.

O presidente da Turquia, Recep Erdogan, deu a entender que seu país seria contrário à entrada ao declarar que Estamos acompanhando o desenvolvimento da situação com a Finlândia e a Suécia, mas não temos certeza [sobre esse assunto]. Os países nórdicos são uma hospedaria para organizações terroristas”. Erdogan está se referindo a cidadãos turcos que o regime considera ligados a atividades terroristas curdas que são recebidos como refugiados em ambos os países nórdicos. O presidente turco ainda se referiu à Grécia, ao afirmar que foi um erro da OTAN aceitar aquele país como membro, no passado.

Apesar dessas manifestações do presidente turco, é pouco provável que a Turquia, quando chamada formalmente a se manifestar no âmbito da OTAN, realmente vete a entrada de suecos e finlandeses. Seria politicamente muito difícil sustentar tal posição na Aliança, colocando-se em posição antagônica a praticamente todos os parceiros justamente em um momento de crise. A Finlândia formalmente integrada à OTAN agregará 1.340 km de fronteira direta entre a Rússia e os aliados, praticamente dobrando a extensão atual, que é de 1.215 Km. Por sua vez, suecos na OTAN representam um grande aumento na segurança e na dissuasão da Aliança no Mar Báltico, uma região de capital importância para os interesses estratégicos russos.

Quase três meses depois do início da invasão à Ucrânia, os russos sofrem um duro revés político-estratégico. O fortalecimento da OTAN resultante da ação militar russa se constitui em um desfecho absolutamente contrário aos objetivos de Putin. Resta saber quais serão as respostas russas a esses acontecimentos.

Este texto foi originalmente publicado no site Hoje no Mundo Militar

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Chineses e taiwaneses prestam atenção à Ucrânia

Estrategistas de todo o mundo estão atentos aos acontecimentos em curso na invasão russa à Ucrânia. Por dever de ofício, são obrigados a analisar os acontecimentos não só no campo militar, mas também em seus aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e tecnológicos.

Mas há dois grupos de analistas especialmente interessados nos desdobramentos do conflito: os chineses e os taiwaneses. A razão para isso está no paralelismo que pode ser encontrado nas aspirações russas de absorver parte do território ucraniano com a possibilidade de os chineses também conduzirem uma operação militar para reintegrar Taiwan à soberania da China continental.

É importante, de início, deixar claras as diferenças existentes entre os dois casos. Em primeiro lugar, relembre-se que a Ucrânia é um país soberano, reconhecido por todos os países do mundo, inclusive pela Rússia. Já Taiwan, embora na prática seja um ente político independente, não é reconhecido desta forma pela comunidade internacional. A ampla maioria dos países reconhece a República Popular da China e, por consequência, formalmente concorda com princípio de “uma só China”, que aquele país advoga como exigência fundamental para o estabelecimento de relações com qualquer nação.

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A política externa da Rússia e da China em relação ao uso de suas forças armadas como instrumento de projeção de poder também apresenta diferenças. Os russos enviam tropas ao exterior para operações militares com frequência, como na própria Ucrânia, em 2014, além de Geórgia, Síria, Belarus e Casaquistão, sem falar no grupo mercenário Wagner, que trabalha em perfeito alinhamento com os interesses russos em dezenas de países. Já os chineses, embora tenham adotado um comportamento mais assertivo nos últimos anos, especialmente por intermédio de sua marinha no Mar do Sul da China, excetuando-se os contingentes que compõem as missões de paz da ONU, desdobrou tropas para uma ação militar no estrangeiro pela última vez na campanha contra o Vietnã, no já longínquo ano de 1979.

Para os russos, que negaram até o último instante a intenção de invadir a Ucrânia, a causa da guerra está ancorada nas preocupações com uma Ucrânia cada vez mais sob a influência do Ocidente, caminhando para uma adesão à Otan que, desde o ponto de vista da Rússia, representaria uma ameaça à sua segurança. Já para os chineses, que nunca negaram a possibilidade de agir militarmente, a reunificação de Taiwan é um objetivo permanente a ser perseguido, reiterado em várias oportunidades pelo presidente Xi Jinping e presente em diversos documentos do Estado chinês.

Mas, se as diferenças são marcantes, são as semelhanças que atraem os estrategistas de ambos os lados do Estreito de Taiwan a se debruçarem sobre algumas questões: a comunidade internacional reagiria no caso de uma invasão chinesa a Taiwan de forma semelhante à adotada no caso ucraniano? A surpreendente resiliência ucraniana na defesa de sua pátria seria reproduzida também pelos defensores da ilha de Taiwan? O Exército de Libertação Popular da China, muito menos experimentado em combate que o poderoso exército russo, enfrentaria as mesmas dificuldades operacionais e logísticas que são observadas pelos invasores da Ucrânia?

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A reação da comunidade internacional a uma invasão a Taiwan seria modulada principalmente pela provável aceitação, por muitos países, da narrativa chinesa de que se trataria de uma questão interna, e não de uma agressão a um país estrangeiro, uma vez que Taiwan não é um Estado soberano. Este seria um pretexto ideal para todos os países que, em razão dos enormes interesses econômicos envolvidos, dependem da manutenção de boas relações com a China. Mas, certamente, essa não seria a posição dos EUA e seus principais aliados: Canadá, cerca de três dezenas de países da Europa Ocidental, Austrália, Japão e Coreia do Sul. A este conjunto restariam a alternativa pouquíssimo provável de atuar militarmente em apoio a Taiwan ou a replicação das sanções econômicas – como impostas à Rússia –, com a enorme diferença de que sancionar a China, maior parceira econômica da maior parte das nações do mundo, é tarefa muitíssimo mais complicada do que embargar economicamente a Rússia.

Taiwan, ao que parece, já percebeu, observando a invasão da Ucrânia, que estará sozinha no campo militar, caso seja invadida. Várias recentes notícias dão mostras de que a ilha se prepara para a hipótese de ter de se defender sozinha. O anúncio da possível ampliação do tempo do serviço militar obrigatório, a aquisição de sistemas antiaéreos Patriot, dos EUA, e o desenvolvimento próprio de um míssil com alcance de 1.200 km, assim capaz de atingir importantes cidades chinesas, são exemplos claros dessa atitude.

As diferenças e semelhanças da guerra na Ucrânia com uma possível crise no Estreito de Taiwan, como se vê, merecem ampla reflexão. Esperemos que as conclusões sejam as que levem à solução pacífica das controvérsias e à paz mundial.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 03/05/2022

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O fantasma do emprego de uma bomba nuclear volta a assombrar

A possibilidade de emprego de uma arma nuclear tática pelos russos, na guerra da Ucrânia, embora remota, não pode ser descartada. Antes de tratar desta possibilidade assustadora, vejamos como tudo começou.

A Era nuclear, ou atômica, teve início com o teste do primeiro artefato dessa natureza, no deserto do Novo México, nos EUA, em 16 de julho de 1945. Cerca de mês depois, os EUA lançariam as duas únicas bombas nucleares lançadas até hoje em uma situação de conflito, sobre as cidades japonesas de Hiroshima (06 de agosto 1945) e Nagasaki (09 de agosto 1945).

Em Hiroshima, apenas uma fração de segundo após a detonação, a temperatura ao nível do solo ultrapassou 7.000o C e uma poderosa onda de choque varreu a paisagem. De uma população de 343.000 habitantes, cerca de 70.000 pessoas morreram instantaneamente, e até o final do ano, o número de mortos ultrapassou 100.000. Dois terços da área da cidade foram destruídos. “Sombras nucleares” eram tudo o que restava das pessoas que haviam sido submetidas à intensa radiação térmica. Uma enorme nuvem em forma de cogumelo subiu a uma altura de mais de 12 km.

Na manhã de 09 de agosto, os soviéticos, que acabavam de declarar guerra ao Japão, já haviam invadido a Manchúria e as ilhas Sakalinas. Os japoneses, mesmo atacados em Hiroshima, não falavam em rendição. Então aconteceu o ataque a Nagasaki, com 40 mil vítimas instantâneas. No dia 14, os japoneses aceitavam os termos aliados. Era o fim da 2ª Guerra Mundial. O impacto do ataque norte-americano causou profundas transformações na forma como os estrategistas da época passaram a encarar as possibilidades de conflitos entre potências nucleares.

A estratégia atômica, ou melhor, a aplicação pela estratégia das consequências da arma atômica, produziu importantes reviravoltas na concepção do emprego das forças, sob o ponto de vista da guerra ou da manutenção da paz.

A arma atômica não é uma arma como as outras, apenas mais poderosa. Por sua potência, ela está fora de proporção com tudo que a humanidade havia conhecido até o seu desenvolvimento. Além disso, os vetores que transportam as armas nucleares podem atingir qualquer local do Globo terrestre, com precisão notável, com uma rapidez que, na maior parte das vezes, inviabiliza uma resposta defensiva. Esses vetores compõem a capacidade de lançamento de um arsenal nuclear, comumente conhecida por “tríade nuclear”. Os componentes dessa tríade são os mísseis balísticos intercontinentais terrestres, os bombardeiros estratégicos e os mísseis balísticos lançados por submarinos.

Essa característica de incomparável poder destrutivo, os terríveis efeitos da radiação nuclear, aliada ao fato de poder ser lançada sobre qualquer ponto da Terra pelos modernos meios de lançamento, criou uma situação inteiramente nova: uma única bomba passou a ser capaz de produzir os efeitos que antes só poderiam ser alcançados com enormes quantidades de bombas, granadas, aviões, canhões e obuseiros.

As bombas nucleares liberam sua energia pelos processos de fissão ou fusão nuclear, ou pela combinação dos dois processos. As bombas de fissão são comumente chamadas de bombas atômicas. As bombas de fusão são as termonucleares, ou de hidrogênio. Seu poder destrutivo é de tal magnitude, que duas unidades de medidas tiveram que ser criadas: o quiloton, que corresponde 1.000 Ton de TNT, e o megaton, que corresponde a 1.000.000 Ton do mesmo explosivo. A bomba de Hiroshima, por exemplo, era de cerca de 15 quilotons. A maior bomba já testada, a russa “Tsar”, chegou à inacreditáveis 57 megatons, potência suficiente para destruir uma grande cidade, do porte das maiores capitais do mundo.

As armas nucleares tiveram um imenso e rápido desenvolvimento durante a Guerra Fria, o enfrentamento entre os EUA e seus aliados, de um lado, e União Soviética e seus satélites, de outro, entre 1945 e 1991. Para se ter uma ideia, em 1966, o arsenal nuclear norte-americano alcançava cerca de 32 mil armas, de 30 diferentes tipos. Os soviéticos, por sua vez, em 1988 chegaram a possuir um arsenal de 33 mil bombas. Após a desintegração da URSS, seu arsenal foi herdado pela Rússia.

Mas EUA e Rússia não são os únicos países possuidores de armamento nuclear. Reino Unido, França, China, Índia, Paquistão, Coreia do Norte e Israel, embora este último país não reconheça, também possuem tais armas em seus arsenais.

Na Guerra Fria, cada um dos lados se deparou com a realidade de que a única maneira de evitar um ataque nuclear por parte do adversário, que certamente resultaria na destruição completa do Estado, seria impor ao oponente o medo de represálias. Para isso, era preciso possuir uma força de ataque de potência suficiente para desviar o adversário do propósito de empregar a sua força. É a chamada Estratégia da Dissuasão.

dissuasão repousa antes de tudo sobre o fator material: é preciso ter um grande poder de destruição, um alcance adequado e uma boa precisão. Outro fator a se considerar é, qual dos dois partidos será o primeiro a atirar. Este cálculo não tinha grande importância na época dos aviões relativamente lentos, porque os prazos de execução decorrentes do alerta eram tais que o ataque e a resposta se cruzavam no ar.

Com os mísseis, entretanto, não há mais dissuasão se a primeira rajada do atacante possuir capacidade de destruição tal que a resposta do defensor seja consideravelmente enfraquecida. Assim, o valor da dissuasão encontra-se ligado não à potência de fogo da força de ataque, mas à sua potência de fogo restante, após ter sofrido os efeitos da primeira rajada do defensor.

Assim, é importante o fator psicológico. O que se quer é impressionar o adversário até o ponto de impedi-lo de usar sua força de ataque. Então é preciso, antes de mais nada, ter uma capacidade de destruição tal que ele a tema suficientemente. Em seguida, é imperioso levá-lo a crer que se é capaz de desencadear uma represália em resposta, ou numa primeira rajada, qualquer que seja a hipótese.

Todos os cálculos levados em consideração para o desenvolvimento da Estratégia da Dissuasão Nuclear levavam em consideração as armas nucleares estratégicas. É sobre elas que estamos a falar até este ponto. São as armas de grande poder destrutivo que podem ser levadas pelos vetores da tríade nuclear a qualquer parte do Globo Terrestre.

Mas, e aqui começamos a nos aproximar da questão referente ao temor que envolve o atual conflito na Ucrânia, existem também as chamadas armas nucleares táticas. Elas são armas de muito menor poder explosivo, desenvolvidas para serem utilizadas no campo de batalha, mesmo na proximidade de tropas amigas ou em territórios em disputa ou contestados.

Podem ser bombas de gravidade, lançadas por bombardeiros, ou podem ser mísseis de curto alcance, granadas de artilharia, minas terrestres, cargas de profundidade, ou torpedos que estejam equipados com cabeças de guerra nucleares. Não há uma definição universalmente aceita para a potência de tais armas, mas elas podem ser bastante limitadas, de 0,5 a 5Kt, por exemplo.

Estima-se que, hoje em dia, a Rússia possua cerca de 2 mil armas nucleares táticas em seus arsenais. Dois sistemas de armas que podem conduzir em seus mísseis cabeças de guerra deste tipo são o “Kalibr”, míssil lançado a partir de submarinos e o “Iskander”, lançado de plataformas terrestres móveis.

Os russos utilizam em seus planejamentos militares uma estratégia chamada de “Escalar para Desescalar”. Tal ideia pressupõe uma ação de alto impacto — como o lançamento de uma arma nuclear tática no campo de batalha — de modo a causar tamanha repercussão no adversário, e na sua opinião pública, que ele será forçado a recuar.

A preocupação, cada vez maior, é a de que o presidente Putin, caso sinta-se encurralado, ou perceba que seus planos na Ucrânia estão falhando e pressinta que o insucesso pode ameaçar até mesmo sua permanência no poder, determine o uso de uma bomba nuclear tática como um “divisor de águas”, para reverter a situação e evitar a derrota.

Tal cálculo leva em consideração a premissa, provavelmente verdadeira, de que o uso de uma bomba atômica de pequeno porte não provocaria uma reação no Ocidente que causasse uma confrontação nuclear. Para isso, o alvo seria cuidadosamente escolhido para, mesmo provando a determinação russa de usar tal arma, causar uma destruição limitada, não muito diferente da que está atualmente em curso na guerra.

É claro que esta não é uma decisão simples e fácil de ser tomada. Putin quebraria um tabu e seria o primeiro líder a usar tal armamento desde Hiroshima e Nagasaki. Outro aspecto a ser considerado é o de que ele afirma que os povos russo e ucraniano são na verdade um só povo, o que o colocaria na absurda posição de lançar uma arma atômica contra aqueles que seriam, nas suas próprias palavras — seus compatriotas. Há ainda o fortíssimo impacto que tal atitude teria na opinião pública internacional e nos governos de todo o mundo, inclusive naqueles que lhe são favoráveis. A China e a Índia, por exemplo, teriam muita dificuldade em apoiar a Rússia em uma atitude como essa. O emprego da arma nuclear certamente significaria, portanto, o completo isolamento da Rússia no cenário internacional.

Mas, como a própria invasão da Ucrânia comprovou, Putin nem sempre toma as decisões consideradas mais racionais. Assim, é bom recordar dos conselhos dados por Sun Tzu, o autor da magistral obra Arte da Guerra, escrita há 2.500 anos. O general chinês aconselhava, no capítulo VII do livro, a quando cercar um exército, deixar uma saída, pois um inimigo aflito e sem escapatória poderá tomar medidas desesperadas para tentar sobreviver.

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Um mês de guerra na Ucrânia

A invasão russa à Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro, completa seu primeiro mês. É hora de um balanço dos eventos em curso nos campos de batalha da Ucrânia, ressaltando-se que se trata de uma análise parcial, uma vez que a guerra está em andamento, e incompleta, em razão de só possuirmos os dados que nos chegam pela imprensa ou pelas mídias sociais.

Comecemos pelas razões políticas da guerra, afinal Clausewitz já ensinava que “A guerra é a continuação da política por outros meios”. Parece claro que Putin, ao decidir travar a guerra, tinha como seu principal objetivo político impedir a Ucrânia de entrar para a OTAN. Tal adesão, mesmo que informal, seria inaceitável para o presidente russo, que inclusive tem dificuldades em aceitar a própria existência da Ucrânia como nação soberana, como declarou reiteradas vezes[1].

No trigésimo dia de guerra, apesar de uma série de problemas no desenvolvimento tático da campanha, parece que a Rússia conseguirá, no mínimo, garantir que as províncias de Luhansk e Donetsk se separem de facto da Ucrânia. Também parece provável que o litoral sul do país, especialmente a leste da foz do Rio Dnieper, também seja separado da Ucrânia. A conquista da capital Kiev ainda não está garantida, mas se for conseguida, é provável que o atual governo se mude para alguma cidade ocidental do país, como Lviv, por exemplo. Na hipótese da Ucrânia resultar dividida da guerra, Putin talvez consiga o controle do território a leste do rio Dnieper. A pergunta que se impõe, a partir dessa hipótese, é a seguinte: terá valido a pena?

Para responder essa pergunta é necessário se analisar o que Putin esperava alcançar em relação à OTAN. A aliança militar Ocidental, criada para se antepor à União Soviética e – por extensão – à Rússia, vivia nos últimos anos um período de indefinição, para dizer o mínimo. Diversos países não cumpriam a meta acordada de investir 2% de seus PIB em defesa[2]. Os EUA, líderes da aliança, se voltavam com clareza para a região do Indo-Pacífico, criando novos arranjos como o “Quad[3]” – sua aliança com Japão, Índia e Austrália para conter a China – e a “Aukus”[4], o pacto militar entre EUA, Reino Unido e Austrália para a construção de um submarino nuclear pela Austrália, deixando aos poucos de priorizar a Europa. Não se pode esquecer, ainda, que há menos de três anos, em novembro de 2019, o presidente Macron declarava que a OTAN estava em “morte cerebral”[5].

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Pois bem, a invasão russa à Ucrânia teve o condão de reunir novamente os países da Aliança contra um inimigo comum. Países que vinham investindo pouco em defesa, sendo a Alemanha[6] o exemplo paradigmático, decidiram incrementar em muito seus investimentos na área. A Aliança reposicionou suas tropas e equipamentos, aumentando seus efetivos nos países do leste. Haverá, a partir de agora, na Europa e nos EUA, um novo e forte estímulo para se reforçar a OTAN em todos os seus aspectos. Se a Aliança Atlântica estava em morte cerebral, parece que a guerra a ressuscitou.

Apesar dos reiterados pedidos do presidente Zelenski, da Ucrânia, para que a OTAN intercedesse militarmente na guerra, especialmente pela garantia de uma zona de exclusão aérea sobre os céus da Ucrânia que impedisse as aeronaves russas de sobrevoar e, consequentemente, atacar com mais proximidade, alvos no país, a Aliança evitou se envolver diretamente, restringindo-se ao fornecimento de sistemas e material de emprego militar. Afinal, isso significaria um enorme risco de confronto direto entre aeronaves da OTAN e da Rússia. E, como afirmou o presidente dos EUA, Joe Biden, quando russos e norte-americanos trocarem tiros, isso significará a 3ª guerra mundial.

Aqui se vê com clareza que a estratégia da dissuasão[7] funcionou muito bem para o lado russo, evitando que a OTAN interviesse diretamente no conflito, claramente contida pela ameaça da escalada nuclear da guerra pelo lado russo. Por outro lado, os ucranianos não se mostraram suficientemente fortes para impedir os russos de atacarem, bem como os EUA e seus aliados que também foram incapazes de dissuadir os russos e evitar a invasão, apenas com as ameaças de “sanções econômicas nunca vistas”.

Mas, apesar de não evitarem a guerra, as sanções econômicas foram utilizadas com uma intensidade até aqui inédita, infligindo pesados custos econômicos à Rússia, mas também aos países e corporações que mantinham negócios como os russos. Foram impostas sanções a bancos e membros do governo e da elite econômica, incluindo o congelamento de ativos, restrições de viagens e exclusão de grandes bancos russos do sistema financeiro e do sistema de comunicação usado para transações internacionais (Sistema SWIFT). Outras medidas incluíram restrição de importações de petróleo, gás e carvão da Rússia, proibição da exportação de diversos produtos para o país, incluindo artigos de luxo, taxação sobre importação de produtos e restrições a aeronaves russas no espaço aéreo de diversos países.

As sanções atingiram diretamente também os cidadãos russos comuns, que de uma hora para a outra não puderam mais usar seus cartões de crédito e deixaram de contar com os serviços e a presença de diversas empresas ocidentais, de lojas de departamentos a lanchonetes, bancos, empresas de streaming, etc. Grandes empresas do setor privado, como Coca-Cola, McDonald’s, Starbucks e várias outras, suspenderam operações na Rússia. Certamente essa situação gera inúmeros transtornos aos cidadãos russos comuns, o que pode criar uma crescente insatisfação com as consequências práticas da operação militar em curso.

Aliás, na guerra, a percepção que a população tem da realidade é de suma importância. Dessa percepção advém o apoio ou não às operações, consequentemente, a legitimidade que cada um dos lados recebe, tanto de sua população quanto da comunidade internacional, para travar o combate.  Neste sentido, ocorre a disputa no campo informacional, com ambos os lados tentando impor sua narrativa. De um lado, os russos falam em “desnazificar” e “desmilitarizar” a Ucrânia, além de acusarem o governo de promover um “genocídio” contra as minorias russas do leste do país. Por outro lado, os ucranianos adotam a narrativa de “Davi x Golias”, do país injustamente agredido que luta pela própria sobrevivência, acusando os russos de atacarem civis e destruírem as cidades. A Ucrânia vem vencendo essa guerra, tanto pelo apelo da narrativa, muito mais facilmente compreensível pela opinião pública, que inclusive se mostra empática com o sofrimento da população atacada, quanto pela falta de verossimilhança da narrativa russa.

Nesse sentido, o sofrimento dos milhões de refugiados e deslocados pela guerra é muito palpável para os europeus, especialmente para os países mais de leste, como Polônia, Romênia e Moldávia. Em trinta dias de guerra já são cerca de 3,6 milhões de refugiados, um grande problema, com efeitos de longo prazo.

Finalmente, passemos a uma breve análise dos combates propriamente ditos. Os russos optaram por atacar a Ucrânia em quatro frentes. Uma que vem de Norte, de Belarus, em direção a Kiev. Outra que vem de Nordeste, em direção a Kharkiv. Há ainda a direção leste, na região de Donbas e a Sul, que vem da Criméia e dos mares de Azov e Negro.

Após um avanço inicial em todas as frentes, o movimento russo foi interrompido há cerca de dez dias, aproximadamente aonde se encontram as manchas vermelhas, no mapa.

As causas para a interrupção do movimento podem apenas ser especuladas, uma vez que não se dispõe de informações fidedignas a este respeito. Entretanto, é bastante provável que tenha ocorrido uma conjunção de fatores.

Em primeiro lugar o fator logístico. A tarefa de apoiar logisticamente uma invasão em território estrangeiro, de uma tropa de cerca de 190 mil homens, é gigantesca. Especialmente em se tratando, como é o caso, de tropas mecanizadas e blindadas. Os volumes de combustíveis e lubrificantes são contados nas casas dos milhões de litro por dia. Isso sem falar em rações e água, munição, material de intendência, como equipamentos, capacetes, barracas, coletes balísticos, dentre inúmeros outros itens, munições e explosivos, peças e conjuntos de reparação, armamento, etc. Aparentemente, pelos relatos vindos do front, muitos desses itens escassearam, especialmente combustível, o que exigiu um intervalo operacional para reorganização dos atacantes.

Um segundo aspecto a considerar é a obstinada defesa ucraniana, talvez em um nível inesperado pelas tropas russas. Apoiados pelo armamento fornecido pelos países ocidentais, em especial os mísseis anticarro e antiaéreos, os ucranianos vem utilizando muito bem o terreno, que conhecem profundamente, afinal lutam em seu próprio país, para vender caro cada palmo conquistado pelos russos. Os ucranianos estão adotando uma “defesa elástica”, uma técnica defensiva que permite avanços do inimigo para coloca-los em posição de serem emboscados. Ao mesmo tempo, realizam com muita frequência contra-ataques e ações ofensivas de pequena profundidade, fustigando e impondo elevadas baixas ao inimigo.

A interrupção do avanço caracteriza o que Clausewitz chamava de atingimento do “ponto culminante da ofensiva”, um momento nas operações em que o atacante é detido. Quando isso acontece, segundo o grande general prussiano do século 19, autor do clássico “Da Guerra”, algumas coisas podem acontecer: negociações de paz que ponham fim às hostilidades, mudança da atitude do atacante, que passa à defensiva, ou uma reorganização para retomar a iniciativa da ofensiva. No caso, vemos as três coisas acontecendo, embora a construção de posições defensivas pelos russos não seja generalizada e apenas ocorra em alguns locais aonde os ucranianos fazem pequenos contra-ataques, e as negociações de paz, até o momento, tenham se mostrado inconclusivas. O mais provável é que os russos retomem a ofensiva, após uma reorganização.

Ao mesmo tempo em que os russos perderam a impulsão do ataque, eles passaram a atuar mais fortemente com os fogos, aumentando a intensidade e a frequência dos ataques aéreos, de artilharia de campanha, de mísseis e de foguetes, sobre as posições ucranianas. Esses ataques, muitas vezes feitos a alvos nas cidades, têm causado grande destruição suscitando críticas da comunidade internacional pelo sofrimento causado aos civis e dúvidas quanto a legalidade das ações segundo o Direito da Guerra

A este respeito, é importante que se separem os dois corpos jurídicos que tratam da guerra. O primeiro é o “Jus ad bellum”, ou o direito à guerra, que trata da legitimidade para se travar a guerra. A Carta das Nações Unidas[8], assinada tanto por Rússia como por Ucrânia, obriga as nações a buscarem a resolução de disputas por meios pacíficos e requer autorização das Nações Unidas antes que uma nação possa iniciar qualquer uso da força contra outra. Entretanto, a própria carta resguarda o direito do país soberano de se defender em caso de agressão. Sob esse ponto de vista, a invasão da Ucrânia pela Rússia é claramente ilegal, uma vez que não foi autorizada pela ONU. Um exemplo histórico de outra invasão não autorizada a um país soberano – portanto ilegal – foi a do Iraque, pelos EUA, em 2003. Já a defensiva ucraniana, em seu próprio território, em face de uma invasão estrangeira, é perfeitamente justificada legalmente.

O segundo é o “Jus in bello”, ou o direito na guerra. Este parte da premissa de que, uma vez que a guerra existe e está sendo travada, os dois lados combatentes devem respeitar certas normas, acordadas em convenções como as de Genebra e outras, que limitem as ações no sentido de limitar o sofrimento causado pelo conflito. Esse corpo jurídico, que conforma o Direito Internacional dos conflitos Armados[9] (DICA), também chamado de Direito Internacional humanitário (DIH) é regido por princípios e é focalizado sob sua luz que as ações de ambos os contendores estão sendo observadas, e que os comandantes poderão ser responsabilizados ao fim das hostilidades.

Com trinta dias de guerra, não é possível, evidentemente, se afirmar com certeza o rumo dos acontecimentos. Como tentei demonstrar, a guerra é uma atividade muitíssimo complexa, submetida a uma infinidade de variáveis, que podem em determinado momento interagir de uma forma inesperada e descortinar novos e imprevisíveis cenários.

O panorama apresentado dos acontecimentos decorridos até o momento visa apenas mostrar, muito sumariamente, alguns dos diversos aspectos envolvidos, com o objetivo de auxiliar o leitor a compreender melhor os acontecimentos, contribuindo para a formação de suas próprias conclusões.

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[1] “George, você precisa entender que a Ucrânia não é um país.” Estas foram as palavras de Vladimir Putin ao presidente George W. Bush em Bucareste, na cúpula da Otan, em 2008. Disponível em https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,putin-conseguiu-colocar-os-eua-exatamente-onde-ele-queria-leia-artigo,70003959787

[2] Os 70 anos da OTAN. Disponível em https://paulofilho.net.br/2019/12/09/os-setenta-anos-da-otan/

[3] Estados Unidos fortalecem aliança com Japão, Índia e Austrália para conter avanço da China no Indo-Pacífico. Disponível em https://brasil.elpais.com/internacional/2021-09-25/estados-unidos-fortalecem-alianca-com-japao-india-e-australia-para-conter-avanco-da-china-no-indo-pacifico.html

[4] Aukus: o que é o pacto militar anunciado por EUA, Reino Unido e Austrália para conter a China. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58582195

[5] Macron afirma que OTAN está em “morte cerebral’ Disponível em https://www.dw.com/pt-br/macron-afirma-que-otan-est%C3%A1-em-estado-de-morte-cerebral/a-51159104

[6] Alemanha investirá 100 bilhões de euros nas Forças Armadas. Disponível em  https://www.dw.com/pt-br/alemanha-investir%C3%A1-100-bilh%C3%B5es-de-euros-nas-for%C3%A7as-armadas/a-60937933

[7] A Estratégia da Dissuasão caracteriza-se pela manutenção de forças militares suficientemente poderosas e prontas para o emprego imediato, capazes de desencorajar qualquer agressão militar. Esta é a definição do Manual de Estratégia do Exército Brasileiro. Disponível em  http://www.coter.eb.mil.br/images/noticias/2020/294/Painel_de_Manuais.pdf

[8] Leia o Capítulo VII da carta, que trata das ações relativas a ameaças à paz, rupturas da paz e atos de agressão – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm

[9] Saiba mais consultando o manual do Ministério da Defesa sobre DICA – https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/File/legislacao/emcfa/publicacoes/md34a_ma_03a_dicaa_1aed2011.pdf




A invasão russa à Ucrânia à luz dos ensinamentos de Sun Tzu

A Arte da Guerra é um clássico dos estudos estratégicos. O livro é atribuído a Sun Tzu, um General chinês que teria vivido na cidade de Lean (hoje Huimin, província de Shandong, China), por volta de 550 AC. Sun Wu seria seu nome. Tzu (ou Zi, como os chineses preferem) significa “Mestre”. Logo, Sun Tzu significa “Mestre Sun. Ele teria nascido no Estado de Qi, entretanto, viria a tornar-se General do Estado de Wu.

China à época de Sun Tzu

O Estado de Wu estava em guerra contra o Estado de Chu. Sun Tzu assumiu o comando das tropas após impressionar o Rei He Lu com o conhecimento militar exposto em seu tratado sobre a arte da guerra.

A Arte da Guerra é uma obra-prima do pensamento militar. Sua importância transcendeu o tempo, tornando-se um clássico obrigatório, não só para militares, mas para todos que se interessam por estratégia, no Ocidente e no Oriente.

E, em razão da incrível atualidade de seus ensinamentos, resolvi apresentar alguns fatos conhecidos sobre a invasão russa da Ucrânia, comentando-os à luz de alguns dos preceitos contidos em A Arte da Guerra.

A grande importância dos Estados se manterem preparados para a guerra

A primeira frase da obra é

Não há nenhum exemplo de um país que tenha se beneficiado de uma guerra prolongada.

Sun Tzu alerta que serão muitos os problemas se a guerra se prolongar excessivamente no tempo. Haverá problemas para financiar a campanha, as armas se desgastarão e o moral das tropas ficará abalado. E, depois disso, “quando suas forças estiverem desgastadas, suas provisões insuficientes, suas tropas desmoralizadas e seus recursos exauridos, governantes vizinhos tirarão proveito da situação para atacá-lo”.

Muitos analistas têm alertado para os grandes problemas que o exército russo enfrentará caso a campanha se estenda por muito tempo. Além de problemas logísticos e do aumento exponencial de gastos, não se pode afastar, apesar do total controle que o presidente Putin exerce sobre seu governo, que a insatisfação popular na própria Rússia cresça, ameaçando, de alguma forma, a estabilidade do governo.

Vencer sem lutar

Na arte prática da guerra, o melhor de tudo é tomar o país do inimigo inteiro e intacto; despedaçá-lo e destruí-lo não é tão bom. Portanto, lutar e vencer em todas as suas batalhas não é excelência suprema; excelência suprema consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar.

Sun Tzu reconhecia a complexidade da guerra, seus muitos fatores intervenientes, as inúmeras possibilidades de ocorrência de revezes, os enormes gastos e as perdas. Assim, ele recomendava que a vitória fosse alcançada no campo da política, sem se recorrer ao campo militar. Esse é um ensinamento ao qual, suspeito, os russos não deram a devida importância nesta ação na Ucrânia, recorrendo ao campo militar antes de esgotar outros meios para alcançar seus objetivos. O andamento da campanha, até o momento, indica que este pode ter sido um grave erro.

A importância da inteligência

Aquele que conhece o inimigo e a si mesmo, lutará cem batalhas sem perigo de ser derrotado. Aquele que não conhece ao inimigo, mas conhece a si mesmo, para cada vitória terá uma derrota. Aquele que não conhece nem a si mesmo, nem ao inimigo, será derrotado em todas as batalhas.

Uma das mais famosas frases do livro A Arte da Guerra relembra a centralidade da inteligência no planejamento e na execução das operações militares. Não poderia ser diferente no conflito em curso. E, em razão do enorme acesso às informações dos tempos atuais, mesmo cidadãos comuns têm tido acesso a fotografias satelitais com a posição das forças, imagens em tempo real de ataques, análises psicológicas das lideranças etc. É claro que esse esforço de inteligência está sendo feito de forma muito intensa pelas duas partes em conflito.

Travar a batalha somente com a certeza da vitória

O que os antigos diziam que um general inteligente é aquele que não apenas vence, mas se destaca em vencer com facilidade. […]

Assim, um exército vitorioso não lutará com o inimigo até que esteja seguro das condições de vitória.

Sun Tzu destaca nesses trechos a importância de uma preparação completa para a guerra. Assim, um exército só pode se lançar à guerra quando tem a convicção de que obterá a vitória. Pelas informações até agora existentes, os russos parecem estar enfrentando dificuldades inesperadas em sua invasão. Ao fim da guerra, será possível fazer uma avaliação mais completa para se entender se essas máximas foram realmente seguidas pelo lado russo.

“Na guerra, o caminho é evitar o que é forte e atacar o que é fraco”. Esta é outra máxima de Sun Tzu acerca do cuidado que o general deve ter para se assegurar da vitória. Na invasão russa, claramente as defesas ucranianas estão centradas na defesa das cidades. A decisão de atacar a cidade, ocupando-a, muitas vezes será inescapável. Mas um planejamento adequado evitará as cidades ao máximo, restringindo-se apenas àquelas indispensáveis.1201.

Como se vê, o livro A Arte da Guerra, 2500 anos após ter sido escrito, continua incrivelmente atual, auxiliando planejadores, mas também a todos os estudiosos da guerra, a compreenderem com mais clareza os terríveis acontecimentos em curso na Ucrânia.

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Este artigo foi originalmente publicado no site Hoje no Mundo Militar