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A crise entre Venezuela e Guiana está longe de ser um assunto encerrado

Em dezembro passado, a população venezuelana compareceu às urnas, para votar em um referendo promovido pelo governo de Nicolás Maduro. Como era esperado, votou de forma massiva na opção “Sim”, respondendo às perguntas sobre a incorporação da região da Guiana Essequiba à soberania da Venezuela.

A pretensão venezuelana sobre a região que se estende de sua atual fronteira com a Guiana para o leste, até o corte do rio Essequibo, remonta as origens coloniais dos dois países, havendo um consenso entre os venezuelanos acerca da legitimidade da pretensão do país de incorporar à sua soberania uma área que corresponde a cerca de 2/3 do território guianense – uma área comparável ao estado brasileiro do Ceará – rica em minérios, petróleo e diamantes.

Figura 1 – Região da Guiana Essequiba / Fonte – Stratfor (2015)

Não se trata, apenas, da porção terrestre do território. É do trecho do Mar do Caribe que defronta a região do Essequibo que a Guiana retira as riquezas petrolíferas que levaram o país a ter atualmente a economia que mais cresce no mundo, com uma taxa de aumento do PIB, em 2023, de cerca de 38%. Para se ter uma ideia do tamanho das riquezas, estima-se que a Guiana possa se tornar o quarto maior país produtor offshore do mundo em 2035, com uma média de 1,7 milhão de barris/dia – ultrapassando EUA, México e Noruega.

Essa riqueza toda, que vem sendo explorada por mais de uma dezena de companhias petrolíferas internacionais de grande porte, de norte-americanas a chinesas, certamente está entre as razões que levaram o regime autoritário venezuelano a reacender o debate sobre a posse da região do Essequibo.

Mas essa não parece ser a principal razão, ou mesmo a única. O presidente Maduro está pressionado pelas eleições presidenciais previstas para acontecer no segundo semestre de 2024, em um momento em que a oposição conseguiu se reunir em torno de uma candidata única, a liberal Maria Corina Machado que, entretanto, está impossibilitada de participar por decisão da mais ata corte judicial venezuelana. Ao propor o referendo, o governo conseguiu mudar de assunto, retirando o tema eleitoral da pauta de discussões e inserindo uma questão que unifica os venezuelanos em torno de uma causa nacionalista. Uma estratégia clássica, utilizada muitas vezes ao longo da história, por governantes em apuros.

A campanha do governo pelo voto “sim” encontrou nos militares venezuelanos um forte ponto de apoio. O General Vladimir Padrino Lopes, Vice-Presidente e Ministro da Defesa, esteve onipresente nas mídias sociais e na imprensa defendendo a causa. Às vésperas do referendo, tropas foram acionadas para participar de operações militares e adestramentos, entoando gritos de guerra e músicas que reafirmam a posse venezuelana da região contestada, tudo com o claro propósito de transmitir à população venezuelana e à opinião pública internacional a mensagem de que o país possui capacidade militar para empurrar, manu militari, a linha de fronteira até o rio Essequibo.

Desde o conflito entre Equador e Peru, na década de 1990, a América do Sul tem se mantido livre de confrontos militares entre Estados nacionais. Assim, uma operação militar de conquista de território, em plena América do Sul, parece impensável. Mas, a irrazoabilidade de uma aventura militar se assenta em premissas de respeito ao direito internacional que talvez não estejam em alta conta em Caracas.

Passada a votação, a governo venezuelano diminuiu a intensidade do discurso nacionalista. Em uma reunião na ilha de São Vicente e Granadina, pequeno país insular do Caribe que desempenha a função de presidente temporário da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe (CELAC), os presidentes Nicolás Maduro e Irfaan Ali se comprometeram a não usar a força um contra o outro, acordando em resolver as disputas territoriais entre Venezuela e Guiana com base no direito internacional. Não houve nenhum acordo acerca da disputa propriamente dita, mas uma nova reunião entre os dois ficou agendada para ocorrer em três meses, no Brasil.

A disputa atrai para a América do Sul a atenção de potências extrarregionais, por motivos geopolíticos e econômicos.

Estados Unidos e Reino Unido fizeram movimentos militares discretos, mas suficientes para transmitir uma mensagem clara à Venezuela de que estão atentos à questão. No dia 7 de dezembro, poucos dias após o referendo, o Comando Sul das forças armadas norte-americanas divulgou a realização de “exercícios aéreos conjuntos” com a Guiana. O Reino Unido, por sua vez, enviou um de seus navios de patrulha oceânica, o HMS Trent, para a região do litoral da Guiana. O navio inclusive recebeu a bordo, no dia 29 de dezembro o Chefe do Estado-Maior de Defesa das forças armadas da Guiana, brigadeiro Omar Khan[1]. A presença do navio britânico no mar que a Venezuela considera estar em litígio reacendeu a retórica nacionalista venezuelana e provocou uma reação do presidente Maduro, que determinou que cerca de 5.600 militares fossem mobilizados em exercícios conjuntos de suas forças armadas, na região de seu litoral.

Figura 2 – Brigadeiro Omar Khan sendo recebido no HMS Trent / Fonte – Conta @HMSTrent na rede social “X”

A Rússia, um importante fornecedor de materiais e sistemas de Defesa para a Venezuela, vem mantendo um perfil discreto em relação à questão. O Ministério das Relações Exteriores do país se pronunciou por intermédio de uma nota curta[2], instando os dois países a resolverem a questão por vias pacíficas e se opondo à intervenção de terceiros países. Uma viagem do presidente Maduro à Rússia, que estava prevista para acontecer em dezembro, acabou por ser adiada.

No que concerne aos interesses econômicos envolvidos, é bom lembrar que há companhias petrolíferas norte-americanas, canadenses, catari, chinesa, inglesa, francesa e espanhola explorando os recursos energéticos no litoral guianense. Certamente as potências envolvidas estão atentas aos acontecimentos, e atuarão, se necessário, na defesa das empresas de seus países.

Assim, fica claro que referendo deu ao presidente Maduro a oportunidade de reacender a questão. O território já foi acrescentado aos mapas oficiais do país o general Alexis José Rodríguez Cabello foi designado pelo presidente venezuelano como “governante único” da Guiana Essequiba. É de se esperar que o regime venezuelano reacenda a questão de forma artificial, criando incidentes esporádicos, de forma a manter o assunto em pauta, especialmente quando as eleições presidenciais – que ainda não possuem data marcada – se aproximarem.

Figura 3 – Mapa venezuelano incorporando a região do Essequibo / Fonte – Governo da Venezuela

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[1] https://x.com/HMSTrent/status/1740870713219715281?s=20

[2] https://mid.ru/en/foreign_policy/news/1919851/




A QUESTÃO FRONTEIRIÇA ENTRE VENEZUELA E GUIANA

A tensão na fronteira entre a Venezuela e a Guiana voltou a ser notícia no último fim de semana, em razão da apreensão, pela marinha venezuelana, dos navios pesqueiros guianenses “Nady Nayera” e “Sea Wolf”. As chancelarias dos dois países trocaram notas de protesto. A Guiana acusa a Venezuela de ter cometido um “ato de agressão” ao apreender os navios em águas guianenses. Os venezuelanos responderam que a apreensão foi legítima, por ter sido realizada em águas sob jurisdição do seu país.

A disputa é anterior à independência dos dois países. Desde o início do século 19, espanhóis e britânicos já disputavam o posicionamento da fronteira entre suas colônias no norte da América do Sul. Em 1835, com a Venezuela já independente, o governo britânico contratou o alemão Robert Schomburgk para mapear a Guiana e definir suas fronteiras. Ao terminar o trabalho, a fronteira havia sido definida nas alturas da foz do Rio Orinoco. Os venezuelanos protestaram afirmando que o local legítimo para a delimitação da fronteira era o Rio Essequibo. Iniciaram-se negociações entre os dois lados, que não foram capazes de criar um consenso. Em 1850, os dois lados concordaram em não ocupar a área contestada.

A descoberta de ouro na região reascendeu a disputa. Colonos britânicos penetraram na área e foi criada uma companhia mineradora britânica, para explorar as minas de ouro. A Venezuela protestou seguidas vezes, propondo aos ingleses uma arbitragem, mas estes nunca se mostraram interessados. Até que, em 1887, a Venezuela rompeu as relações diplomáticas com a Inglaterra e pediu ajuda diplomática aos EUA. Assim, em 1897, sob pressão norte-americana, finalmente os ingleses concordaram em submeter a disputa à arbitragem internacional.

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Por dois anos a comissão arbitral, formada por dois britânicos, dois norte-americanos (indicados pelo lado venezuelano) e um russo, se debruçou sobre o assunto e decidiu, em 1899, por conceder 94% do território em disputa à Guiana. Aos venezuelanos foi cedida uma área na foz do Rio Orinoco e uma pequena área junto ao Atlântico. Apesar da insatisfação venezuelana com o resultado, os dois lados aceitaram o acordo em 1905. Por sessenta anos, a situação permaneceu pacificada.

Em 1962 os venezuelanos apresentaram uma série de argumentos para colocar em xeque a imparcialidade da comissão arbitral de 1889, declarando junto à ONU que considerava nula aquela resolução, colocando toda a região a oeste do Rio Essequibo como “Zona em Reclamação” do território venezuelano, assim fazendo constar nos mapas oficiais do país. Trata-se de uma área de cerca de 159.500 Km2, ou 5/8 do atual território guianense.

Guiana Essequiba
Fonte – Gutemberg V Silva, 2015

 

A tentativa de revisão venezuelana ocorreu em um momento em que a Guiana ainda era uma colônia inglesa, mas já se antevia sua independência. Os venezuelanos calcularam à época, com razão, que seria mais fácil obter um acordo com os ingleses, afinal se tratava de uma área em uma colônia distante, do que com uma nação independente que, caso a aspiração venezuelana fosse atendida, perderia mais da metade de seu território.

Ainda assim, uma nova comissão para tentar resolver o problema só foi instalada em 1966, por meio do chamado Acordo de Genebra. A comissão mista teria um prazo de quatro anos para resolver a questão. Apenas três meses depois, a Guiana se tornou independente. Mas uma série de incidentes fronteiriços impediram o avanço dos trabalhos. Em 1970, terminou o prazo para os ofícios da comissão, e nenhum acordo foi possível. Os dois países, então, assinaram um novo protocolo, congelando a situação vigente em mais doze anos.

A partir de então, já na década de 1980, a ONU passou a intermediar a disputa e, embora não se tenha chegado a uma solução para a questão, as relações entre os dois países se normalizaram, com incidentes ocorrendo esporadicamente. As sucessivas mudanças de governo, tanto na Venezuela quanto na Guiana, proporcionaram momentos de maior ou menor tensão nas relações entre os dois países.

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Em 2015, a descoberta de grandes reservas de petróleo pela empresa Exxon acrescentou um novo e importante atrativo à região, reacendendo a disputa.

Em janeiro de 2018, o Secretário Geral da ONU deu por esgotadas as possibilidades de intermediação e indicou que a Corte Internacional de Justiça (CIJ) seria o foro competente para solucionar a questão. Assim, em março de 2018, a Guiana solicitou a jurisdição da CIJ para que validasse o acordo de 1899. O país alegou que se esgotaram as possibilidades de conciliação por intermédio do Acordo de Genebra. A Venezuela se manifestou contrariamente à posição guianense, mas, em dezembro de 2020, a Corte declarou que possuía jurisdição para deliberar sobre o assunto[1].

Em reação, no dia 8 de janeiro deste ano, a Venezuela estabeleceu a chamada “Zona de Desenvolvimento Estratégico da Fachada Atlântica” que “protegerá e salvaguardará a jurisdição de seus espaços continentais, interiores, limítrofes, áreas marinhas históricas e vitais do país.” Trata-se de uma medida unilateral, que cria um território marítimo, como uma medida para reafirmar a soberania sobre as águas territoriais contíguas à área reclamada.

No dia seguinte, em 9 de janeiro, os EUA e a Guiana realizaram um exercício naval combinado na costa guianense. Um navio patrulha da Guarda Costeira norte-americana adestrou-se junto a outros navios-patrulha do país sul-americano. Dois dias depois, o Almirante Craig S. Faller, Comandante do Comando Sul dos EUA, esteve na Guiana para firmar um acordo de cooperação militar com as Forças de Defesa do país. Recentemente, os EUA já haviam doado motores e peças de reposição para navios guianenses de patrulha.

General Bess e Almirante Faller
Fonte – Jornal Guyana Chronicle

 

A Venezuela protestou pela presença de navio armado norte-americano nas proximidades de seu território, bem como pela presença de Faller na Guiana.

Neste cenário, ocorreram as últimas apreensões dos navios pesqueiros e tripulantes guianenses pela marinha venezuelana. O governo Maduro sabe que a CIJ dificilmente chegará a uma decisão que lhe seja favorável, pois isso significaria para a Guiana a perda de 5/8 de seu território, o que lhe inviabilizaria como nação soberana. Além disso, a perda territorial ocorreria no momento em que as descobertas petrolíferas recentes representam uma esperança de mudança de patamar econômico para uma nação tão pobre como a Guiana.

Os próximos acontecimentos dependem da decisão da Corte Internacional de Justiça. Se a Corte decidir pela validade do acordo de 1899, o assunto estará encerrado no campo diplomático – pelo menos por enquanto – e a liberdade de ação da Venezuela neste assunto estará muito mais restrita.

Mas, no momento em que a Venezuela enfrenta uma crise política, econômica e social sem precedentes, o antigo recurso dos governos, de recorrer a uma questão externa que una a população em torno de uma causa nacionalista, tirando o foco dos problemas internos, é sempre tentador.

[1] https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/171/171-20201218-PRE-01-00-EN.pdf




A CRISE NA VENEZUELA E A CONFRONTAÇÃO GEOPOLÍTICA

Como se sabe, a Venezuela tem hoje um governo de facto, do presidente Nicolás Maduro, não reconhecido por grande parte da comunidade internacional, e um presidente autoproclamado, Juan Guaidó, aceito pela maioria dos países das Américas, o Brasil incluído, e por grande parte dos países europeus. Isso em meio a uma crise política, econômica e social gravíssima, com milhares de pessoas fugindo do país, num fluxo migratório inédito na América do Sul. Os venezuelanos convivem ainda com hiperinflação, escassez de alimentos, denúncias de fraudes eleitorais, de censura à imprensa e de uso de força desproporcional pelas tropas do governo contra os manifestantes oposicionistas.

Esta crise pode ser analisada de vários pontos de vista. Há o viés humanitário, decorrente do grave sofrimento imposto à população, em que o acesso aos itens mais básicos de alimentação e aos serviços de saúde, sem contar inúmeros outros aspectos fundamentais para o bom funcionamento de uma sociedade, simplesmente não estão mais disponíveis para os cidadãos. E há o aspecto político, pela confrontação ideológica entre os que ainda defendem o regime chavista de Maduro e os que mostram a falência do modelo político-ideológico que se aplicou por lá. O aspecto econômico também pode ser analisado: como o país chegou ao caos econômico? Que efeitos podem advir das sanções econômicas aplicadas pelos EUA? Enfim, há espaço para discussão nos campos político, econômico, psicossocial e militar.

Este texto abordará o campo da confrontação geopolítica entre as grandes potências – EUA, Rússia e China -, tendo a Venezuela como pano de fundo. Como estão se posicionando? Como isso afeta o desenrolar dos acontecimentos?

Os EUA foram o primeiro país a reconhecer Guaidó como presidente da Venezuela, acusando o governo Maduro de ilegitimidade pelas fraudes eleitorais no processo de reeleição que o reconduziu à presidência. Além da crise humanitária e econômica, aspectos criadores de instabilidade que podem trazer graves consequências para a América do Sul e o Caribe, os EUA veem com preocupação a crescente influência chinesa e russa na área.

Dessa forma, os EUA atuaram com muita firmeza. O presidente Donald Trump declarou que “todas as opções estão sobre a mesa”, afirmação que, obviamente, mostra que não se descartaria uma intervenção militar. Além disso, impôs duras sanções econômicas que afetam diretamente o coração da economia venezuelana: a exportação de petróleo.

A China, por sua vez, há muito advoga que as relações entre os países devem respeitar o princípio da não intervenção. Esse princípio é fundamental para o país, que considera inadmissível a interferência estrangeira em seus próprios problemas, como a questão da Ilha de Taiwan e o separatismo dos uigures na província de Xinjiang.

Além disso, a Venezuela é uma grande parceira comercial e destino de investimentos e empréstimos chineses na América do Sul. Somente entre 2007 e 2012, o Banco de Desenvolvimento da China emprestou a Caracas a impressionante quantia de US$ 42,5 bilhões. Grande parte dos pagamentos desses empréstimos foi feita diretamente em petróleo venezuelano.

Assim, a posição da China, até o momento, é de apoio ao governo Maduro, defendendo uma solução pacífica e interna para o imbróglio político.

Já o presidente russo, Vladimir Putin, e seu primeiro-ministro, Dmitry Medvedev, elevaram o tom da retórica e acusaram os EUA de hipocrisia e de apoiarem um golpe. Medvedev chegou a perguntar como os americanos reagiriam se a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, deputada oposicionista a Trump, se autoproclamasse presidente dos EUA.

A Rússia, que trava uma batalha para manter ou reassumir a influência sobre os países do Leste Europeu, sua área de influência, como as ações na Ucrânia demonstram claramente, dá uma espécie de troco nos EUA ao atuar contra seus interesses na Venezuela. Não se pode descartar que esse tipo de ação possa ser útil como uma espécie de moeda de troca em relação à posição dos EUA em alguma questão no Leste Europeu no futuro.

Os países europeus, inicialmente hesitantes, exigindo que Maduro convocasse novas eleições, após a negativa deste passaram, em sua maioria, a reconhecer Guaidó, liderados por Reino Unido, França, Espanha e Alemanha.

O Brasil, que sofre os efeitos da crise venezuelana ao receber grandes contingentes de refugiados, ficou fortemente contra o governo Maduro, reconhecendo Guaidó como presidente interino. Alinhou-se à posição norte-americana, dispondo-se até a prestar ajuda humanitária, se necessário.

O mundo já assistiu a esse tipo de confrontação. Parece que estamos de volta à guerra fria. Mas a História, que nos dá valiosas pistas sobre o desenrolar futuro dos acontecimentos, não se repete sob as mesmas circunstâncias. Trata-se, desta vez, de uma confrontação num mundo globalizado, com interesses econômicos entrelaçados como nunca antes.

Os militares são o centro de gravidade que mantém Maduro no poder. E a pressão está cada vez maior. No momento em que os comandantes perceberem que o presidente corre o risco de perder o apoio chinês e russo, desembarcarão do governo. Se isso se concretizar de forma que se salvem as aparências de uma “solução interna”, em que não tenha havido “interferência externa nos problemas de uma nação soberana”, China e Rússia poderão alegar que o povo venezuelano encontrou sua saída, apoiando o novo governo. Assim, não se descarte a possibilidade de um “autogolpe” para o qual se encontrará um verniz legal, que “mudaria sem mudar”, mantendo o establishment e tentando reduzir a pressão internacional, com o apoio russo e chinês. Caso isso se confirme, será o prenúncio de nova crise.




O DRAMA DOS REFUGIADOS

A crise política e econômica na Venezuela já provocou, segundo dados da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), desde 2015, a fuga de cerca de 3 milhões de cidadãos. Atualmente, estima-se que cerca de 5 mil pessoas deixem o país a cada dia.

O principal destino dos venezuelanos é a Colômbia, que já recebeu cerca de 1 milhão de pessoas. Para o Peru já foram cerca de 500 mil. Equador, Chile, Argentina e Panamá também são destinos bastante procurados, bem como o Brasil.

Aliás, os reflexos imediatos da crise para o Brasil já se fazem sentir há mais de um ano. Em 16 de junho do ano passado este jornal publicava editorial alertando para a gravidade do problema. Atualmente, segundo dados do governo federal, mais de 54 mil venezuelanos já solicitaram refúgio no Brasil. Outros 18 mil solicitaram residência temporária e 12 mil haviam agendado atendimento na Polícia Federal até setembro.

O Brasil começa a lidar com uma situação que não é novidade no planeta. Estima-se que existam hoje mais de 25 milhões de refugiados em todo o mundo. A Europa convive com as tristes cenas de barcos à deriva, com centenas de pessoas amontoadas tentando cruzar o Mediterrâneo, vindas do Norte da África. Hoje, na Turquia há quase 3 milhões de refugiados sírios. Em 2016 o Paquistão recebeu cerca de 1,4 milhão de refugiados afegãos. Uganda abriga quase 1 milhão de refugiados do Sudão do Sul.

Enquanto isso, a coluna de cerca de 5 mil migrantes, em sua maioria hondurenhos, que cruza o México com destino à fronteira com os EUA foi tema importante das recentes discussões eleitorais naquele país. O presidente Trump assinou decreto proibindo por 90 dias que imigrantes ilegais solicitem refúgio e determinou o deslocamento de militares do Exército para a fronteira, mostrando-se firme na decisão de impedir a entrada da massa de migrantes.

O problema dos refugiados alcança proporções alarmantes. Mas estamos falando de refugiados ou de migrantes? Ao tratar desse assunto, é muito importante que a distinção entre essas duas categorias fique clara. Migrante é a pessoa que muda seu lugar de residência por tempo indeterminado. Essas pessoas estão sujeitas às normas e políticas migratórias de cada nação, que permitem ou não a entrada e permanência no país. Segundo a Organização Internacional para Migração, organismo da ONU que trata do tema, existiam em 2015 cerca de 243 milhões de migrantes internacionais no mundo, ou seja, uma em cada 30 pessoas vivia num país diferente de onde nasceu.

Se os migrantes estão sujeitos às normas de cada país para terem seu acesso pela fronteira aceito, os refugiados contam com situação diferente. Estes são “pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido a grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados”. E por esse status, de acordo com a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, da qual o Brasil e a maior parte dos países do mundo são signatários, “nenhum país expulsará ou rechaçará, de maneira nenhuma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas”.

Assim, fica claro que o tratamento a ser dado a um refugiado é completamente diferente daquele a ser dispensado a um migrante. No Brasil, de acordo com o Estatuto do Refugiado, lei promulgada em 1997, qualquer estrangeiro que chegue ao País, mesmo irregularmente, e se apresente a uma autoridade migratória na fronteira expressando sua vontade de ser reconhecido como refugiado não poderá ser deportado até que lhe seja concedido ou não o refúgio. Caso o migrante não expresse essa condição, será tratado normalmente e de acordo com as normas migratórias.

Os milhares de venezuelanos que chegam ao Brasil vêm causando grande impacto econômico e social ao Estado de Roraima – problemas na rede hospitalar, aumento da violência urbana e impacto na oferta de empregos, entre muitos outros problemas. O governo local, pressionado, cobrou do governo federal a ampliação da ajuda econômica e chegou a solicitar ao Supremo Tribunal Federal o fechamento temporário da fronteira. Como se viu acima, tal decisão seria polêmica, em razão do status de refugiados que os venezuelanos almejam alcançar, o que impediria o seu rechaço na fronteira. Por outro lado, o Ministério da Defesa determinou o estabelecimento da Operação Acolhida, de modo que as Forças Armadas, num ambiente interagências, dessem uma resposta mais eficiente às demandas de toda ordem que surgem em razão desse enorme afluxo de pessoas.

Outro aspecto a ser considerado é que a crise humanitária sem precedentes na América do Sul poderá causar tensões ainda maiores entre a Venezuela e os seus vizinhos sul-americanos, em especial a Colômbia, país mais fortemente afetado por ser o principal destino dos venezuelanos. Qualquer tensão entre vizinhos afetaria o Brasil, que por sua importância no subcontinente não se poderia manter indiferente.

A Organização dos Estados Americanos (OEA), por ser o foro por excelência para tratar dos assuntos de segurança hemisférica, deveria patrocinar os maiores esforços na busca de soluções para a crise migratória venezuelana. Nesse sentido foi criado um grupo de trabalho para estudar o problema (www.oas.org/legal/spanish/gensec/EXOR1803.pdf). Espera-se que, ao final dos trabalhos, o grupo chegue a recomendações que mitiguem o sofrimento dos venezuelanos que deixaram sua pátria e, ao mesmo tempo, auxiliem os governos sul-americanos a encontrar as melhores soluções para lidar com a situação.