Por que os homens lutam?
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Os gregos lançavam-se contra o inimigo com inteiro desprezo pela vida, mas vendendo-a a alto preço […] Mas os bárbaros, atacando-os sem trégua uns de frente, depois de haverem posto abaixo a muralha, e os outros por todos os lados, depois de os terem envolvido, aniquilaram a todos.[1]
Heródoto

A cena, narrada por Heródoto, retrata a Batalha das Termópilas, na qual os “Trezentos de Esparta”, liderados por Leônidas, resistiram até a morte ante a invasão persa, no ano de 480 AC. A história, recontada muitas vezes, chegou ao grande público no filme “300”, de Zack Snyder, em 2006.

A imagem de um grupo de guerreiros lutando até a morte, renunciando às possibilidades de fuga e permanecendo em combate até a morte certa, intrigou e intriga a muitos pensadores que se debruçaram sobre o assunto. Militares, estrategistas, psicólogos, etnólogos e antropólogos, políticos e cidadãos comuns se perguntam desde a antiguidade até os dias atuais quais são as causas e as motivações que levam os homens a lutar. Em 401 AC, o grego Xenofonte já aludia à “força da alma” como condição para combater e vencer. Aproximadamente na mesma época, na China, Sun Tzu ressaltava a importância da “lei moral” que motivava os soldados a lutarem por seus exércitos. Napoleão Bonaparte comparava a “força moral” e a “força física” de um exército na proporção de três para um em importância para o sucesso na batalha.[2]

A partir dos séculos 19 e 20, com o desenvolvimento das ciências sociais, estudos e experimentos melhor sistematizados passaram a se debruçar sobre as motivações (ou a “força da alma”, “lei moral” ou “força moral”, referidas anteriormente) dos seres humanos, incluindo-se aí os motivos para a guerra, os elementos culturais dos conflitos e as dinâmicas que envolvem a violência. As próprias circunstâncias históricas contribuíram para esse interesse. O mundo era sacudido por revoluções e guerras, incluindo-se as duas guerras mundiais que vitimaram dezenas de milhões de pessoas e afetaram praticamente todo o planeta.

Duas figuram icônicas do século 20 chegaram a se corresponder[3] sobre o assunto: Albert Einstein e Sigmund Freud. “Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra?”, perguntou o físico ao psicanalista, em 1932, apenas seis anos antes da invasão nazista à Áustria.

Em sua resposta, Freud afirma que a violência humana é inerente à condição biológica do homem, manifesta-se em todos os conflitos de relação a partir do processo mais remoto de socialização.

Além disso, recorre à sua teoria, na qual assevera que o homem é mobilizado por dois instintos ou pulsões, cujas atividades são opostas entre si: a pulsão construtiva, erótica ou Eros e a pulsão destrutiva, de morte ou Tanatos.

Assim, por serem as pulsões inerentes ao ser humano, seriam inúteis as tentativas de se eliminar as tendências agressivas do homem. Como se vê, Freud tem uma noção naturalista da violência, por conseguinte, da guerra. Lembra Leroi-Gourhan[4], segundo quem a agressão como comportamento, isto é, o uso da violência, relaciona-se à humanidade como espécie.

Na resposta à Einstein, Freud prossegue afirmando que uma comunidade humana só se mantém unida graças a duas coisas: a coação da violência e o estabelecimento de vínculos afetivos, tecnicamente chamados de “identificações”, que unem seus membros.

Dessa forma, ele concorda com o físico (que em sua missiva já havia sugerido a ideia) de que somente uma espécie de “governo mundial” que ao mesmo tempo criasse tais identificações e tivesse suficiente poder de coação, ao qual se conferiria a solução de todos os conflitos de interesses, poderia preservar a paz entre as nações.

Como observador atual, é impossível deixar de notar que a ONU, criada no pós-guerra para abolir a guerra entre as nações, falhou miseravelmente em seu intento. Talvez justamente por não conseguir criar as chamadas “identificações” e, por isso mesmo, nem de longe se colocar como uma autoridade supranacional capaz de mediar conflitos com êxito.

Outra pensadora que se dedicou ao estudo dos conflitos e da violência foi Hannah Arendt. Sua posição acerca da permanência do fenômeno da guerra descarta um desejo secreto de morte da espécie humana, ou um instinto de agressão irreprimível, ou os sérios perigos econômicos e sociais do desarmamento. Segundo a pensadora, a razão seria o simples fato de que não teria aparecido na cena política esse “árbitro final”. Ou seja, embora discorde da teoria freudiana acerca da existência, nos seres humanos, de um impulso inato à violência, Arendt concorda que a ausência de uma instância arbitral externa é a causa principal para a permanência dos conflitos armados.

Ela prossegue, exemplificando. Diz que a destruição mútua assegurada, situação de impossibilidade de existência de um vencedor em uma guerra nuclear entre as superpotências, retirou a atratividade da atividade bélica, e que a partir daquele momento, ela previa, as guerras seriam restritas aos países subdesenvolvidos, incapazes de desenvolver armamentos nucleares ou biológicos.

Neste ponto é importante destacar o momento histórico em que Arendt escreve. Era o final da década de 1960. Na França, na Tchecoslováquia, nos EUA e em outros lugares havia um clima de revolta estudantil, muitas vezes violenta. Os EUA estavam mergulhados no atoleiro da Guerra do Vietnã e vivia-se o auge da Guerra Fria, acontecimentos que, evidentemente, influenciaram sobremaneira as ideias da pensadora.

Mas, retornando à reflexão de Arendt, ela concorda com Fanon[5] e Gray[6], quando estes afirmam que em uma ação militar, como na revolucionária, o individualismo é o primeiro valor que desaparece. Em seu lugar passa a existir um tipo de coerência de grupo, de nexo mais intensamente sentido e muito mais forte, ainda que menos duradouro, que todas as variedades de amizade civis ou particulares. Está a se tratar da irmandade no campo de batalha. De todos os niveladores, a morte é o mais potente. Mas, no enfrentamento coletivo e em ação, a morte troca sua personalidade; nada parece ser mais capaz de intensificar a vitalidade dos sujeitos como sua proximidade. De alguma forma, esses passam a crer que a própria morte é acompanhada da imortalidade potencial do grupo a que eles pertencem. Essa compreensão passa a ser o centro de suas experiências.

Passados 2500 anos da Batalha das Termópilas e mais de meio século desde as reflexões de Freud e Arendt, e apesar de toda a experiência acumulada pela humanidade, o mundo permanece um lugar conflitivo. Como James Hillman[7] apontou, “a guerra é normal”, afinal é constante e universal. Na verdade, as soluções apresentadas por Einstein e Freud para o fim das guerras não se mostraram eficazes. A ONU, uma tentativa de esboçar uma “autoridade mundial”, que arbitrasse as relações interestatais e impedisse a guerra, como se vê diariamente, fracassou nesse sentido. A “mútua destruição assegurada”, descrita por Arendt, embora tenha servido de dissuasão para que a guerra final entre as superpotências nucleares não ocorresse, não impediu essas mesmas superpotências de travarem diversas outras guerras regionais.

A resposta à pergunta do título parece estar na complexidade das relações humanas, nos sentimentos de perda e de justiça, de honra e de frustração; na lealdade atávica que os seres humanos, profundamente gregários, devotam às suas comunidades, suas cidades, suas nações, suas civilizações.

Ao fim e ao cabo, somos os mesmos, seja nas Termópilas, nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial ou nas comunidades Nuer investigadas por Evans-Pritchard[8]. Consideramos estrangeiros todos os que não pertencem às nossas comunidades. E, como tais, potenciais inimigos.

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[1] Heródoto. História. Livro VII
[2] Exemplos reunidos pelo General Fernando Goulart no livro “Ação sob fogo!”
[3] Leia a carta aqui (em inglês)
[4] Citado por Pierre Clastres, em Arqueologia da violência (2004)
[5] Frantz Fanon, The wretched of the Earth (1961)
[6] J. Glenn Gray, The Warriors (Nova York, 1959)
[7] James Hillman, A terrible love of War (Nova York, 2004)
[8] Edward Evans-Pritchard, (2008). Os Nuer.

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