O Direito Internacional dos Conflitos Armados e a Guerra Russo-ucraniana
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Soldados! É fácil a missão de comandar homens livres: basta apontar-lhes o caminho do dever. O nosso caminho está ali defronte. Não me é preciso lembrar-vos que o inimigo vencido e o paraguaio inerme ou pacífico devem ser sagrados para um exército composto de homens de honra e de coração. (OSÓRIO, abril de 1866)

General Osório

As ações russas e ucranianas acompanhadas por todos praticamente em tempo real pelas televisões e pela internet suscitam uma série de dúvidas acerca da legitimidade das ações de ambos os lados do conflito. Neste artigo, procuro esclarecer alguns aspectos do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) que podem ajudar na compreensão dos acontecimentos em curso na Ucrânia.

O DICA, como entendido atualmente, surgiu em 1864, ano em que foi celebrada a primeira Convenção de Genebra. Mas, desde a antiguidade, existiam regras sobre os meios e métodos a serem utilizados nos combates.

As leis da guerra nasceram do confronto entre forças armadas no campo de batalha. Até a metade do século XIX, essas regras permaneceram costumeiras por natureza, reconhecidas porque elas existiam desde tempos imemoriais e porque elas correspondiam às demandas da civilização. Todas as civilizações haviam desenvolvido regras com o intuito de minimizar a violência – até essa a forma de violência institucionalizada que chamamos de guerra – já que a limitação da violência faz parte da essência da civilização. (Henckaerts e Doswald-Beck, citados por Silva Gomes (2013)

O DICA é um conjunto de normas que, procura limitar os efeitos de conflitos armados. Protege as pessoas que não participam ou que deixaram de participar nas hostilidades, e restringe os meios e métodos de combate. Ele também designado por “Direito da Guerra” e por “Direito Internacional Humanitário (DIH). Ele faz parte faz parte do Direito Internacional que rege as relações entre Estados e que é constituído por acordos concluídos entre Estados – geralmente designados por tratados ou convenções – assim como pelos princípios gerais e costumes que os Estados aceitam como obrigações legais.

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As fontes do DICA são basicamente três: Os chamados Direito de Genebra, de Haia e de Nova York.

O Direito de Genebra é constituído pelas quatro convenções de Genebra, de 1949, que estabelecem normas de proteção das vítimas dos conflitos: membros das forças armadas fora de combate; feridos; doentes; náufragos; prisioneiros de guerra; população civil e todas as pessoas que não participem ou tenham deixado de participar das hostilidades.

As quatro convenções são complementadas por seus protocolos adicionais I e II que tratam, respectivamente, da proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais e das vítimas dos conflitos armados não internacionais. Tanto Rússia, quanto Ucrânia, são signatários das Convenções de Genebra[1].

O Direito de Haia consubstancia-se nas Convenções de Haia, celebradas em 1889 e revistas em 1907, e em vários acordos internacionais posteriores. Trata da proibição ou regulação da utilização de armas, impondo limitações aos meios utilizados para provocar danos ao inimigo.

As normas originadas no âmbito da ONU ficaram conhecidas como o “Direito de Nova York”. Ele também ficou conhecido como “Direito Misto”, porque buscou complementar e aproximar as normas de Genebra e de Haia.

O DICA é regido por cinco princípios básicos: humanidade, distinção, limitação, proporcionalidade e necessidade militar.

Foi o princípio da humanidade que motivou o General Osório, na Guerra da Tríplice Aliança, a exortar seus homens em 13 de abril de 1866, às vésperas de cruzar o Rio Paraguai e entrar pela primeira vez em território inimigo, a agirem com “honra e com coração”. Uma exortação de claro caráter humanitário.

De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a finalidade do princípio da humanidade é evitar e aliviar, a todo custo, em qualquer situação, o sofrimento humano. Ao final da invasão da Ucrânia pela Rússia, certamente a comunidade internacional vai se debruçar sobre os acontecimentos em território ucraniano e o princípio da humanidade será um dos que mais será verificado, especialmente se se verificarem ações, por parte dos comandantes dos dois partidos, que afrontem esses princípio tão fundamental.

O princípio da distinção, segundo Cinelli (2011) é aquele sobre o qual se assenta todo o edifício do DICA como corpo normativo destinado à proteção de pessoas e bens. Isso se deve à necessidade do combatente de identificar, com clareza, entre aqueles que são considerados “população civil” e aqueles considerados combatentes inimigos. O objetivo desse princípio é, em suma, impedir ataques amplos e indiscriminados sem preocupação com baixas civis e danos à propriedades. Esse princípio suscitará muita discussão no caso da Ucrânia. Convocar os civis para defender o país e armá-los, em tese, na constitui violação deste princípio, desde que esses civis utilizem sinais distintivos claros, como uniformes ou qualquer adereço que os identifique, utilizem as armas de forma ostensiva e entrem em uma organização com uma clara cadeia de comando. Caso contrário, caso escondam o fato de que atuam como combatentes, não atenderão ao princípio da distinção e estarão, em tese, cometerão o crime de perfídia, listado no artigo 37 do Protocolo I das Convenções de Genebra.

O princípio da limitação afirma que o direito das partes beligerantes na escolha dos meios para causar danos ao inimigo não é ilimitado, sendo imperiosa a exclusão de meios e métodos que causem sofrimento desnecessário ou danos supérfluos. De acordo com o artigo 52 do Protocolo I, “os ataques devem se limitar estritamente aos objetivos militares”.  Assim, a população civil, deve sempre ser protegida. A guerra, não é um vale-tudo. No caso da invasão russa à Ucrânia, as cenas de prédios civis destruídos por armas que infligem danos não só ao objetivo militar, mas também a todo o seu entorno, em tese, constituem violação desse princípio, exceto se ficar comprovado que os prédios civis também constituíam alvos legítimos segundo o DICA.

O princípio da proporcionalidade rege que os meios e métodos de combate devem ser proporcionais à vantagem militar concreta e direta. Nenhum alvo, mesmo militar, deve ser atacado se os prejuízos e sofrimento forem desproporcionais aos ganhos militares que se esperam da ação. No caso da ação russa na Ucrânia, chama atenção o caso da utilização da munição cluster, ou de fragmentação, pelos russos. Há muita discussão sobre o uso desse tipo de arma, que espalha submunições explosivas por uma grande área, muitas das vezes redundando em engenhos falhados espalhados por uma grande área, que após a cessação das hostilidades terão que ser desarmadas e poderão provocar danos por um longo período, mesmo após a guerra.

Finalmente, há o princípio da necessidade militar. Em todo o conflito armado, o uso da força deve corresponder à vantagem militar que se pretende obter. As necessidades militares não justificam condutas desumanas, tampouco atividades proibidas pelo DICA. Assim, qualquer ação que não traga uma vantagem militar clara deve ser evitada por ambas as partes em conflito.

Como se vê, o dito popular que afirma que “no amor e na guerra vale tudo”, não representa a verdade. Desde tempos imemoriais, há um esforço em se regular minimamente as ações das partes beligerantes, a fim de se preservar a ética no campo de batalha.

Um exemplo de cumprimento, por ambos os partidos, dos princípios do DICA, foi a Guerra das Malvinas. Tanto argentinos quanto britânicos se comportaram exemplarmente, e, ao fim do conflito os dois lados foram reconhecidos e respeitados em relação ao comportamento ético no campo de batalha.

Finalmente, espero que este artigo proporcione aos leitores algumas ferramentas mínimas para acompanhar com mais profundidade os acontecimentos da guerra que, tristemente, acontece em território ucraniano neste momento.

 

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REFERÊNCIAS

BRASIL, Ministério da Defesa. Manual de Emprego do Direito Internacional dos Conflitos Armados nas Forças Armadas. Disponível em https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/File/legislacao/emcfa/publicacoes/md34a_ma_03a_dicaa_1aed2011.pdf

CINELLI, Carlos Frederico. Direito Internacional Humanitário: ética e legitimidade na aplicação da força em conflitos armados. Editora Juruá. 2011

SILVA GOMES, Túlio Endres da. Impactos do Direito de Guerra para a Campanha do Exército Brasileiro na Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai (1864-1870). Tese de Doutorado. Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Disponível em http://www.eceme.eb.mil.br/images/IMM/producao_cientifica/teses/tulio-endres-da-silva-gomes.pdf

[1] Lista de países signatários aqui – https://ihl-databases.icrc.org/applic/ihl/ihl.nsf/States.xsp?xp_viewStates=XPages_NORMStatesParties&xp_treatySelected=375

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