Crise no Cazaquistão

O Cazaquistão é uma ex república soviética, localizada na Ásia Central que, da mesma forma que as demais repúblicas daquela região, Quirguistão, Tadjiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão, se tornou independente com a implosão da União Soviética, em 1991.

É um país de enorme extensão territorial e pequena população. Seus primeiros habitantes eram nômades que, no século XIII, foram subjugados pelo exército mongol liderado por Gengis Khan, que conquistou toda a região. Com o fim do império mongol, os cazaques surgiram como um grupo étnico distinto. A partir do século XVIII, os russos começaram a avançar pelas estepes do país e, no século XIX, todo o território já integrava o império russo. Com o advento da revolução russa e do surgimento da União Soviética, o Cazaquistão passou a integrar o país comunista.

Desde sua independência, o Cazaquistão teve apenas dois presidentes. O primeiro, Nursultan Nazarbayev, manteve-se no poder de 1991 até 2019, quando foi obrigado a renunciar em razão da pressão popular e das manifestações que mostravam grande descontentamento popular contra seu governo. Assumiu, então, o atual presidente, Kassym-Jomart Tokayev, político alinhado a Nazarbayev.

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O islamismo é a religião de cerca de 75% da população, enquanto o cristianismo é praticado por 21% dos habitantes. A economia é fortemente baseada na exploração dos recursos minerais, em especial o petróleo, o gás natural e os minérios, com destaque para o Urânio.

A grave crise social que o país enfrenta foi deflagrada no dia 02 de janeiro, na cidade de Zhanaozen. Rapidamente os protestos ganharam o país, se espalhando para outras cidades petrolíferas até chegar à maior cidade cazaque, Almaty e à capital, Nur-Sultan. Não por acaso, a atual insatisfação popular explodiu na mesma cidade de Zhanaozen onde uma greve de petroleiros, em 2011, também explodiu em violência, resultando na morte de 14 petroleiros em confrontos com a polícia, além de mais de uma centena de feridos.

A motivação inicial dos protestos em curso foram os altos preços do Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), que é usado como combustível em grande parte dos automóveis do país. Mas rapidamente as reivindicações dos manifestantes se ampliaram, ganhando pautas políticas, que passaram a exigir a queda dos principais governantes do país. Nazarbayev, o presidente que renunciou em 2019, mas que é visto como a grande eminência parda do governo, tornou-se o principal alvo dos manifestantes.

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A reação do presidente aos protestos, inicialmente, foi de oferecer concessões, restaurando subsídios ao GLP e demitindo o primeiro-ministro e seu gabinete. Mas em apenas três dias, com os protestos espalhados pelo país e a pauta dos manifestantes passando a exigir a mudança de governo, a reação subiu muito de tom. O presidente decretou Estado de Emergência e passou a acusar “gangues terroristas internacionais” de estarem por trás das manifestações. As forças de segurança passaram a enfrentar os manifestantes com armas de fogo e os mortos e feridos já são contados nas casas das centenas. A internet e as redes sociais foram derrubadas pelo governo e a comunicação com o restante do mundo passou a ser bem mais restrita. Os manifestantes também aumentaram a violência, com depredação e invasão de prédios públicos, incêndios e ataques a integrantes das forças de segurança. Há relatos, inclusive, de que os manifestantes teriam se apossado de armas de fogo e munições encontradas em instalações militares e policiais invadidas.

O governo acionou a Organização para o Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), uma aliança militar que reúne a Rússia e cinco de suas ex repúblicas: o próprio Cazaquistão, Armênia, Belarus, Quirguistão e Tadjiquistão. Baseado no artigo 4 do tratado que regula a Aliança os países decidiram[1] “enviar forças de manutenção da paz coletiva da OTSC para a República do Cazaquistão, por um período limitado de tempo, a fim de estabilizar e normalizar a situação neste país”. A decisão apontou ainda a “ameaça à segurança nacional e à soberania da República do Cazaquistão causada por interferência externa”. Dessa forma, nesse momento a Rússia está enviando um contingente de cerca de 3 mil soldados, aos quais se somarão efetivos de outros países da OTSC.

O desenrolar dos acontecimentos definirá os destinos políticos do Cazaquistão, mas hoje parece ser bastante improvável que os manifestantes alcancem o objetivo de derrubar o governo. O caso de Belarus, também uma ex república soviética, em 2020, guarda semelhanças interessantes. Aquele país foi sacudido por violentos protestos contra o presidente Lukashenko, acusado de fraudar as eleições para se perpetuar no poder. A repressão foi violenta e a Rússia apoiou decisivamente o presidente, ameaçando inclusive mandar tropas em seu socorro. A situação foi controlada e o que se assiste hoje é um alinhamento ainda maior entre Minsk e Moscou. Creio que, no Cazaquistão, o resultado dos acontecimentos em curso será bastante semelhante ao caso de Belarus. É bastante provável que, ao fim de tudo, Tokayev ainda esteja em seu gabinete no Palácio Ark Oda, a imponente sede do governo do Cazaquistão e que seu país esteja ainda mais alinhado aos interesses políticos, econômicos e militares russos na Ásia Central.

[1] Decisão disponível, no idioma russo, na página da Aliança em https://odkb-csto.org/news/news_odkb/zayavlenie-predsedatelya-soveta-kollektivnoy-bezopasnosti-odkb-premer-ministra-respubliki-armeniya-n/#loaded




As mudanças climáticas e a disputa pelo Ártico



As mudanças climáticas causam grande apreensão nos pequenos países insulares que, devido à elevação dos níveis dos oceanos, veem seus territórios diminuírem aceleradamente, ao mesmo tempo em que a água potável se torna cada vez mais escassa[1]. Essa grave realidade por um lado se apresenta como uma ameaça à própria existência daqueles Estados, por outro, não mobiliza as grandes potências globais para além de discursos e declarações de boas intenções, ou ajudas econômicas pontuais.

No Ártico, entretanto, as mudanças climáticas vem ensejando uma série de movimentos das grandes potências, em especial Rússia, China e Estados Unidos, que correm para se posicionar de forma vantajosa na competição pela exploração dos recursos minerais e rotas comerciais que surgem em razão da diminuição do gelo e da neve no Oceano Glacial Ártico.

Oceano Ártico

A Rússia naturalmente parte na frente. O litoral ártico do país é de mais de 24 mil quilômetros. Apenas para que se possa ter uma ideia dessa dimensão, trata-se de uma extensão maior do que o triplo do litoral atlântico do Brasil. Para tentar explorar comercialmente essa vantagem, os russos inauguraram, em 1935, de forma regular, a chamada Rota Norte, em que os navios trafegavam do Oceano Atlântico para o Pacífico, e vice-versa, costeando o litoral ártico russo. A rota encurtava em milhares de milhas náuticas o caminho entre a Europa Ocidental e os portos japoneses e chineses, tradicionalmente feita pelo sul da África e pelo canal de Suez. Mas, o gelo e as condições muito difíceis de navegação aumentavam muito os riscos de transporte e a rota funcionava quase exclusivamente entre os meses de agosto e outubro de cada ano.

O colapso da União Soviética, ao qual se seguiu uma grave crise econômica na Rússia, fez com que a Rota fosse praticamente abandonada. Somente a partir da segunda década deste século, a rota voltou a ser explorada pelos russos. Contribuíram para isso o desenvolvimento de modernas ferramentas de apoio à navegação, que aumentaram em muito a segurança da rota, navios quebra-gelo mais modernos, inclusive com propulsão nuclear e, sobretudo, o aquecimento das águas do Oceano Ártico, que passou a ser navegável em uma área cada vez maior e por um período mais largo a cada ano até que, em fevereiro de 2021, um grande navio comercial de carga completou a rota em pleno inverno. Em 2020, cerca de 33 milhões de toneladas de carga foram transportadas pela Rota Norte, quase seis vezes mais do que em 2015. Os russos pretendem aumentar esse volume para 80 milhões de toneladas até 2024 e 130 milhões até 2035.

Comparação entre a Rota Norte (vermelho) e a Rota por Suez (Azul)

Mas a exploração da Rota Norte não é o único interesse econômico no Ártico. Estima-se que a região contenha reservas de 90 bilhões de barris de petróleo e cerca de 1/5 de todo o gás natural do planeta, além de metais preciosos e terras-raras, essas últimas usadas na produção de equipamentos de alta tecnologia.

No campo militar, os russos têm aumentado significativamente sua presença e os exercícios militares na região. Em março de 2021, três submarinos russos quebraram simultaneamente o gelo perto do Polo Norte.  Os submarinos logo se juntaram a duas aeronaves MiG-31 e tropas terrestres que participavam do Umka-2021[2] , um exercício militar russo.

Tudo isso atrai a atenção não só de russos e canadenses, os dois maiores países árticos, mas também de norte-americanos que, pelo Alaska, também fazem parte do clube, além de dinamarqueses, islandeses, noruegueses, finlandeses, suecos e… chineses.

Em janeiro de 2018, a China divulgou sua “Política para o Ártico”[3]. Nela, a China afirma que a região tem uma importância estratégica e econômica global, tendo uma “influência vital nos interesses de Estados de fora da região e na comunidade internacional como um todo, bem como na sobrevivência, no desenvolvimento e no futuro compartilhado de toda a humanidade”.

No documento, os chineses reconhecem que seu país, por não ser um “Estado Ártico”, não possui soberania territorial na região. Lembram, entretanto, que de acordo com tratados internacionais todos os países têm direitos em relação à pesquisa científica, navegação, sobrevoo, pesca, colocação de cabos submarinos e oleodutos no alto mar e outras áreas marítimas relevantes no Ártico, além de direitos de exploração e aproveitamento de recursos na área.

A China propõe o estabelecimento de uma “Rota da Seda Polar”, que se integraria aos projetos da Iniciativa Belt and Road de financiamento de obras de infraestrutura de transportes, além de manifestar interesse em participar das rotas marítimas, da exploração dos recursos minerais, participar da pesca na região, do turismo e da própria governança do Ártico.

Em 2019, um ano após os chineses divulgarem sua política, foi a vez do Departamento de Defesa dos EUA divulgar sua Estratégia para o Ártico[4]. O documento identifica na crescente competição estratégica com China e Rússia, o principal desafio à segurança e à prosperidade dos EUA. O país demonstra como principais preocupações dissuadir qualquer ataque militar aos EUA vindo da região ártica e impedir que a China ou a Rússia tornem-se hegemônicas na região, impondo suas regras à comunidade internacional no que se refere ao Ártico.

Em complemento ao documento do Departamento de Defesa, Exército[5], Marinha[6] e Força Aérea[7] elaboraram suas próprias estratégias. O exército, por exemplo, divulgou em janeiro de 2021 o documento Regaining Artic Dominance no qual apresenta uma série de medidas para “mobiliar com pessoal, treinar, equipar, e organizar suas forças para vencer no Ártico.” Dentre essas medidas, está o desdobramento de uma “Força Tarefa Multidomínio”, de valor Divisão de Exército, com cerca de 15 mil soldados, no Alaska, como forma de reorganizar suas forças dedicadas especificamente àquela região.

A competição estratégica que tem se intensificado nos últimos anos entre EUA, Rússia e China é travada em diferentes campos, desde o econômico até o militar, mas também no científico/tecnológico, espacial, cibernético ou mesmo no cultural, na busca pela conquista da simpatia e da liderança, tentando atrair os demais membros da comunidade internacional para sua esfera de influência.

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A disputa ocorre com maior ou menor intensidade em diversas regiões do globo, como Ucrânia, Taiwan, Mar do Sul da China ou Oriente Médio. Nesse grande jogo, Rússia e China tem estado normalmente do mesmo lado, quer como parceiros declarados, quer ocupando uma posição de neutralidade que seja benéfica a ambos. Sempre, porém, antagonizando os EUA.

Entretanto, no caso do Ártico, é bastante provável que os interesses russos e chineses sejam divergentes e que esses atores caminhem de forma independente na busca de salvaguardar seus próprios interesses. Nesse caso, as mudanças climáticas responsáveis pelo derretimento da calota polar ártica terão disparado o gatilho de uma acirrada disputa geopolítica entre as três maiores potências militares do planeta.

 

[1] Veja o caso emblemático de Tuvalu, em reportagem da BBC – https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59480079

[2] Saiba mais em https://www.navalnews.com/naval-news/2021/04/arctic-exercise-umka-2021-shows-russian-ssbn-can-deliver-massive-strike/

[3] Disponível em http://english.www.gov.cn/archive/white_paper/2018/01/26/content_281476026660336.htm

[4] Disponível em https://media.defense.gov/2019/Jun/06/2002141657/-1/-1/1/2019-DOD-ARCTIC-STRATEGY.PDF

[5] Disponível em https://api.army.mil/e2/c/downloads/2021/03/15/9944046e/regaining-arctic-dominance-us-army-in-the-arctic-19-january-2021-unclassified.pdf

[6] Disponível em https://media.defense.gov/2021/Jan/05/2002560338/-1/-1/0/ARCTIC%20BLUEPRINT%202021%20FINAL.PDF/ARCTIC%20BLUEPRINT%202021%20FINAL.PDF

[7] Disponível em https://www.af.mil/Portals/1/documents/2020SAF/July/ArcticStrategy.pdf




O Irã e os desafios para a paz mundial em 2022



A julgar pela quantidade de crises já instaladas nos últimos dias de 2021, não faltará assunto nos campos da política internacional, da geopolítica e dos assuntos de Defesa em 2022.

Afinal, 2021 foi o ano em que as tensões entre europeus e russos atingiram níveis só comparáveis aos da Guerra Fria, os EUA protagonizaram uma retirada caótica no Afeganistão, as tensões entre China e EUA cresceram, Iêmen e Etiópia continuaram enfrentando graves guerras em seus territórios. Houve ainda o assassinato do presidente do Haiti, quatro golpes de estado exitosos em países da África (Sudão, Mali, Guiné e Chade), além do golpe em Mianmar e da crise dos refugiados, que continua a afetar todos os continentes, apenas para citar os eventos mais significativos. Isso tudo em meio à continuidade da pandemia da Covid-19.

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Não faltam, portanto, focos de tensão a desafiar as lideranças mundiais a encontrarem soluções que preservem a paz. Neste artigo vou tratar apenas de um caso, em razão da sua potencialidade em se transformar em uma crise de enormes proporções: a questão nuclear no Irã. Em 2015, o Irã e um grupo de países formado por EUA, Rússia, China, França, Alemanha e Reino Unido, além da União Europeia, assinaram um acordo, o Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA).  Naquele momento, em troca de suavizações de sanções que estavam impostas pela comunidade internacional ao país, o Irã concordava em reduzir significativamente suas atividades na área nuclear, dentre outras medidas, pela limitação de sua produção de urânio enriquecido, em quantidades e nível de enriquecimento, além de aceitar submeter-se às inspeções internacionais em suas instalações nucleares. Esta era uma medida fundamental para que a comunidade internacional pudesse se assegurar de que o Irã não desenvolveria tecnologia nuclear para fins militares, uma vez que o urânio é um dos elementos químicos que, quando enriquecido a níveis superiores a 90%, se torna componente fundamental para a fabricação de bombas atômicas.

Em 2018, o presidente Trump retirou os EUA do acordo nuclear e reimpôs uma série de sanções ao Irã. Em 09 de janeiro de 2020, neste Espaço Aberto[1], escrevi sobre as consequências dessa decisão. Mas, ao se analisar os resultados, parece claro que as medidas adotadas pelo presidente Trump, ao reimpor as sanções, não surtiram o efeito que se esperava, pelo contrário, o Irã se sentiu desobrigado a cumprir os termos do acordo e hoje o país está muito mais próximo do desenvolvimento do armamento nuclear do que estava em 2018.

Durante 2021, as negociações entre os países que se mantiveram no JCPOA e o Irã foram retomadas, mas os avanços têm sido bastante limitados. Os europeus exigem velocidade nas negociações, em razão dos rápidos avanços obtidos pelo Irã em seu programa nuclear. De acordo com um relatório de 17 de novembro último, da Agência Internacional de Energia Atômica, o estoque de urânio enriquecido a 20% do Irã é de 114 Kg, acima dos 85 Kg documentados no relatório anterior da agência, publicado em 7 de setembro. Já a 60% de enriquecimento, seriam 17,7 kg, também acima dos 10 kg apontados no relatório anterior. O mesmo documento informa que o país instalou centrífugas mais avançadas, que podem enriquecer urânio de forma mais eficiente.

Os iranianos, acusados de estarem deliberadamente ganhando tempo nas negociações, afirmam que não têm o objetivo de utilizar a tecnologia nuclear para fins bélicos. Mas o fato é que, após alcançar o nível de 60% de enriquecimento, chegar aos 90% que permitiria a fabricação da bomba parece ser apenas uma questão de (cada vez menos) tempo.

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O governo de Israel tem manifestado preocupação com a aceleração do programa nuclear iraniano. Segundo os serviços de inteligência do país, o Irã teria material para construir 3 bombas e, em um mês, terminaria o processo de enriquecimento do urânio. A partir daí, levaria entre 18 e 24 meses para fabricar as bombas. Além disso, se divulgou que o país começou a fabricar placas de urânio, material utilizado na fabricação do armamento nuclear.

Israel não confirma, mas o país é apontado como o autor de diversos ataques cibernéticos a instalações nucleares, e mesmo a cientistas e lideranças iranianas, ao longo dos últimos anos, ações que atrasaram, mas, como se vê, não impediram o progresso do programa nuclear persa.

As autoridades israelenses têm subido o tom das declarações. Durante uma visita aos Estados Unidos, o ministro da Defesa, Benny Gantz, anunciou publicamente que havia ordenado ao Exército israelense que se preparasse para um possível ataque militar ao Irã.

Um eventual ataque israelense provocaria uma resposta iraniana e dos grupos Hezbollah, no Líbano, e Hamas, em Gaza, ambos aliados do Irã, forçando Israel a travar uma guerra em várias frentes simultaneamente. Seria, sem dúvida, um rastilho de pólvora que incendiaria o Oriente Médio. A ameaça cada vez mais real de um conflito de alta intensidade, que poderia envolver outros países, e mesmo as grandes potências, é somente mais um dos fantasmas que ameaçam a paz e o sistema internacional no ano que se inicia na próxima semana.

[1]  https://paulofilho.net.br/2020/01/09/a-crise-ira-x-eua

 

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Ocidente e Rússia se chocam na Ucrânia

A Ucrânia está no centro de uma crise que ameaça escalar para um confronto militar entre ucranianos e russos, com risco de transbordamento para outros países, o que seria gravíssimo para a estabilidade da Europa e do mundo. Mais do que uma simples disputa entre ucranianos e separatistas na região de Donbass, leste da Ucrânia e fronteira com a Rússia, os acontecimentos mostram o confronto entre duas visões de mundo. De um lado, europeus ocidentais e norte-americanos, que enxergam na Ucrânia um jovem país que tenta trilhar o caminho apontado pelas democracias liberais europeias, desvencilhando-se da Rússia depois do esfacelamento da União Soviética. De outro, a Rússia, que vê a Ucrânia como um território historicamente ligado à sua própria nacionalidade, um país fundamental para sua visão geopolítica, que deve ser mantido sob sua esfera de influência sob pena de ver os adversários europeus e norte-americanos demasiadamente próximos de Moscou.

Para entender como se chegou à situação atual, é importante recapitular alguns acontecimentos.

O primeiro grande império do leste europeu foi o Principado de Kiev, atual capital da Ucrânia, surgido no século IX. Sua população era constituída por uma mistura de Vikings escandinavos, que chegavam do Norte pelos rios, e pelos eslavos orientais, nativos da própria região. A pobreza do solo logo obrigou essas populações a buscarem novas terras, expandindo o território e delineando um império. Como explica Robert Kaplan, em A Vingança da Geografia, a Rússia, como conceito geográfico e cultural nasceu do Principado de Kiev.

Em permanente luta contra os nômades das estepes, no século XIII o principado foi devastado pelos mongóis comandados por Batu Khan, neto de Gengis Khan. A partir daí, com o passar do tempo, a história russa foi paulatinamente se deslocando para o Norte, até ficar centrada em Moscou, já no final da Idade Média.

Após a invasão mongol, o território onde hoje está a Ucrânia foi dominado por lituanos e poloneses. Em 1648, uma grande rebelião cossaca acabou por levar à partilha do território ucraniano entre russos e poloneses. Com a partilha da Polônia, no final do século XVIII, o território ucraniano é novamente dividido, agora entre russos e austríacos.

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Os colapsos dos impérios russo e austríaco, bem como a revolução russa, no início do século 20, deram espaço ao ressurgimento de movimentos nacionalistas ucranianos, que buscavam a independência. Entretanto, em 1919, a Ucrânia foi incorporada à União Soviética.

O colapso da União Soviética, em 1991, permitiu a independência da Ucrânia. No plebiscito realizado naquele ano, 90% dos ucranianos se posicionaram favoravelmente à separação, incluindo-se aí 80% da população da região de Donbass e 54% dos votantes da Crimeia, península com grande população russa.

Em 2004, a OTAN aceitou os três Estados Bálticos – Letônia, Estônia e Lituânia – como membros da Aliança. A União Europeia seguiu os passos da OTAN, estendendo sua fronteira para o leste para incluir uma série de ex-repúblicas soviéticas e aliados, incluindo os mesmos estados bálticos, República Tcheca, Hungria, Polônia, Eslováquia e Eslovênia.  Foi um choque para as lideranças russas, que esperavam que, em troca do apoio dado aos norte-americanos na invasão do Afeganistão após o 11 de Setembro, os EUA se mantivessem fora do que a Rússia considerava ser sua esfera de influência, os antigos Estados integrantes da URSS. O presidente Putin se sentiu pessoalmente afrontado.

Os ucranianos, naquele momento, estavam em um limbo, entre o ocidente e a Rússia. No final de 2004, multidões saíram às ruas, na chamada Revolução Laranja. Os manifestantes deixavam claro que desejavam que a Ucrânia ingressasse na União Europeia.

Em 2008, a Rússia invadiu a Geórgia, demonstrando que os Russos não estavam dispostos a admitir nenhum passo a mais da União Europeia ou da OTAN em direção às suas fronteiras.

Em 2013, uma nova onda de protestos varreu a Ucrânia, em razão da recusa do então presidente, Viktor Yanukovych, de assinar um acordo de associação do país à União Europeia. A situação se agravou, com o aumento da violência até que, em fevereiro de 2014, o Congresso destituiu o presidente Yanukovych e determinou a realização de eleições, que foram vencidas pelo candidato com uma plataforma pró-europeus.

Em 01 de março de 2014, antes mesmo da realização das eleições, a Rússia invadiu a Criméia, península estratégica que mantém, em Sebastopol, a sede da armada russa na Mar Negro. Em 6 de março o parlamento da Crimeia aprovou uma decisão no sentido de entra para a Federação Russa e, em 18 de março, tal adesão foi ratificada pelas duas partes, apesar da Assembleia Geral das Nações Unidas ter votado uma resolução se opondo a tal adesão.

Em abril, grupos pró-Rússia na província de Donbas, no leste da Ucrânia, iniciaram uma guerra civil. Embora a Rússia não reconheça, é fato hoje incontestável que o país apoiou militarmente os separatistas, em uma ação típica de Guerra Híbrida, com soldados e equipamentos, mas também com Operações de Informação e cibernéticas, o que impediu a Ucrânia de controlar a situação. Diversos países do ocidente impuseram sanções econômicas à Rússia em razão dessa interferência.

Em 2015 foram celebrados os Acordos de Minsk, proporcionando ao menos uma estrutura de diálogo entre as partes, mas a violência se manteve e mais de 13 mil vidas já foram perdidas nos combates.

Assim chegamos ao momento atual, no qual os ucranianos e norte-americanos acusam os russos de já terem concentrado na fronteira cerca de 90 mil soldados e estarem planejando uma invasão com um efetivo de cerca de 175 mil militares, com blindados, artilharia e tudo mais necessário para invadir a Ucrânia já nos primeiros meses do ano que vem.

Os russos negam a intenção ofensiva, afirmando que quem está se preparando para uma ação armada são os ucranianos, que estariam planejando atacar a região de Donbass. O presidente Putin reiterou que há “linhas vermelhas” que não devem ser cruzadas pelo Ocidente, referindo-se claramente à integração da Ucrânia à União Europeia ou à OTAN.

Em meio à crise, os presidentes dos EUA, Joe Biden, e da Rússia, Vladimir Putin, marcaram uma videoconferência para a próxima terça-feira, dia 07 de dezembro, para tratar do assunto. Vamos aguardar o desenrolar dos acontecimentos, para ver se eles conseguirão amenizar a crise e arrefecer as tensões.




Xi Jinping pavimenta o caminho para se perpetuar no poder na China



O evento de política doméstica mais relevante nos últimos tempos na China foi a reunião do 19º Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCC), ocorrida entre 8 e 11 de novembro. No evento, realizado a portas fechadas, foi aprovada uma “resolução histórica”, elevando Xi Jinping ao patamar ocupado apenas por Mao Zedong, o líder da revolução que fundou a República Popular da China, e Deng Xiaoping, o artífice da modernização econômica do país.

É apenas a terceira vez na centenária história do PCC que a denominação “resolução histórica” é utilizada. Nas duas primeiras, elas marcaram importantes viradas políticas. A primeira foi em 1945, antes mesmo da fundação da República Popular da China, quando o partido consolidou a autoridade de Mao Zedong e estabeleceu seu pensamento como um conjunto de crenças que guiou o partido e a própria China a partir da vitória dos comunistas em 1949.

A segunda vez foi em 1981, quando Deng Xiaoping liderou a modernização da economia do país, condenando o extremismo ocorrido durante a Revolução Cultural e os erros na condução da economia durante a política do “Grande Salto Adiante”, responsáveis pelo caos econômico que levou milhões de chineses à morte por fome, na década de 1960.

Agora, a liderança do PCC reavalia a história centenária do partido, assegurando a Xi Jinping um lugar entre as maiores lideranças da China comunista.

O movimento ocorre em um momento muito adequado às ambições do líder chinês. No próximo ano, haverá o Congresso do Partido Comunista que, muito provavelmente, consagrará o terceiro mandato de Xi, garantindo-lhe mais um período consecutivo à frente dos chineses. Um acontecimento sem precedentes desde Deng Xiaoping, e que exigiu uma mudança na constituição chinesa, feita em 2018, pelo próprio Xi Jinping.

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A reunião trouxe, no mínimo, dois fortes indícios de que Xi Jinping não pensa em deixar o poder. Normalmente, novos líderes são promovidos a posições de destaque nesses encontros, de forma a testá-los e a indicar que eles poderão ser alçados a posições ainda maiores, em substituição aos líderes que encerram seus mandatos. Foi o que aconteceu em 2010, quando o próprio Xi Jinping foi promovido a vice-presidente do Comitê Militar Permanente. Dois anos depois, em 2012, ele substituiria Hu Jintao na presidência. Nessa reunião, bem como nas anteriores, não houve nenhuma promoção digna de nota. Nenhuma nova liderança capaz de fazer sombra a Xi Jinping surgiu na China nos últimos anos. O segundo indício foi a própria divulgação de uma “resolução histórica”. Dificilmente Xi Jinping prepararia algo tão importante para ser implementado por outra pessoa, que não ele próprio.

No comunicado oficial da reunião[1], se destaca que “o pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era é o marxismo chinês contemporâneo, o marxismo do século 21 e a essência da cultura e do espírito chineses. Ele deu um novo salto na sinicização do marxismo. O partido estabeleceu o camarada Xi Jinping como o núcleo do Comitê Central do Partido e a posição central de todo o partido, e estabeleceu a posição de liderança de Xi Jinping na nova era do socialismo com características chinesas.”

Como se vê, o culto à personalidade de Xi Jinping, que é alçado a uma condição de liderança inconteste, ganha enorme força. A mensagem a ser transmitida ao povo chinês e ao mundo é a de que ele é a única pessoa capaz de conduzir a China à condição de superpotência.

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Mesmo com seu poder praticamente absoluto, Xi Jinping precisa lidar com as lideranças do PCC. Ele vem fazendo isso desde que iniciou sua campanha anticorrupção, logo no início do primeiro mandato, afastando corruptos, mas também, segundo seus desafetos, potenciais adversários dentro do partido. E o movimento da semana passada parece ter sido o seu “xeque-mate”. Se nenhum evento imprevisível ocorrer, o mundo terá que se acostumar com a presença de Xi Jinping na liderança da China ainda por muitos anos.

 

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[1] Disponível em http://www.news.cn/politics/2021-11/11/c_1128055386.htm




Mudanças climáticas e soberania

As mudanças climáticas e o aquecimento global já são percebidos como ameaças à segurança dos seres humanos há algumas décadas. A inclusão do tema nos documentos e estratégias que tratam de segurança e defesa dos principais atores políticos mundiais, entretanto, é acontecimento relativamente recente, mas de grande importância por incluir a temática na “grande estratégia” desses países.

Para além das missões clássicas dos exércitos nacionais na defesa da pátria contra ameaças externas representadas por forças militares inimigas, normalmente incluídas em um amplo espectro de atividades militares abrangido pelas “operações de guerra”, em praticamente todos os países as forças armadas têm também um papel na mitigação dos efeitos de desastres naturais, de controle de fronteiras em situações de crises de refugiados, e de manutenção da ordem e da segurança públicas em situações excepcionais, especialmente quando as forças policiais não tenham mais condições de atuar. Esse último grupo de situações congrega as chamadas “operações de não-guerra”.

É nesse contexto que as consequências das mudanças climáticas são tratadas, em razão de seu potencial para afetar a segurança das pessoas e, em consequência, as relações entre os Estados e outros atores internacionais relevantes.

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No documento NATO 2030 – United for a New Era, tornado público em novembro de 2020, a OTAN cita a expressão “mudança climática” dezenove vezes. A questão é apresentada como um dos “desafios definidores” dos tempos atuais, representando sérias implicações para a segurança e para os interesses econômicos dos 30 países que integram a aliança militar. As mudanças climáticas são identificadas como um multiplicador de ameaças, responsável pela crescente escassez de recursos – em especial a escassez de água – e pela insegurança alimentar. A aliança militar também aponta o fenômeno como gatilho para o aumento de tensões geopolíticas, para disputas sobre a liberdade de navegação no Oceano Ártico e para a intensificação do fluxo de refugiados em direção aos seus países-membros.

A Rússia, principal rival da OTAN, também incluiu o tema em sua mais recente Estratégia Nacional de Segurança. A “proteção do meio ambiente, a conservação dos recursos naturais, o gerenciamento ambiental e a adaptação às mudanças climáticas” são interesses nacionais listados no documento. A Estratégia também afirma que o intenso crescimento da produção e do consumo no mundo tem sido acompanhado por um aumento da taxa de degradação causada pelo homem sobre o meio ambiente, o que acarretaria uma mudança significativa nas condições de vida na Terra. Assim, o uso predatório de recursos naturais levaria à degradação do solo e redução de sua fertilidade, escassez de água, deterioração do meio marinho e dos ecossistemas, além de redução da diversidade biológica. A poluição ambiental estaria se intensificando, resultando em um declínio na qualidade da vida humana. Muitos países estariam, sempre segundo o documento, enfrentando uma escassez de recursos naturais. A mudança climática teria um impacto cada vez mais negativo sobre as condições da atividade econômica e do meio ambiente.

O documento russo prossegue afirmando que o desenvolvimento de uma economia verde e de baixo carbono estaria se tornando um dos principais temas da agenda internacional. O aumento da competição por recursos naturais seria um dos fatores que amplificariam as tensões internacionais e conflitos entre Estados. Após esse diagnóstico, os russos afirmam que a preservação ambiental é fundamental para a melhoria da qualidade de vida dos seus cidadãos e listam uma série de objetivos para que essa condição seja alcançada.

Mas é interessante notar que o documento russo também aponta a ameaça de instrumentalização da questão ambiental por países adversários: “a crescente atenção dada pela comunidade internacional à questão das mudanças climáticas e à manutenção do meio-ambiente é usada como pretexto para limitar o acesso de empresas russas ao mercado exportador, restringir o desenvolvimento da indústria russa, estabelecer o controle sobre rotas de transporte e impedir o desenvolvimento da Rússia no Ártico”.

Ao se ler os documentos da OTAN e da Rússia, fica claro que tanto a Aliança Atlântica quanto seu maior adversário reconhecem na questão ambiental e nas mudanças climáticas um desafio à segurança de seus povos, além de um estopim para o agravamento de tensões geopolíticas de outras naturezas. Além desses dois exemplos, diversos outros documentos da mesma natureza, de outros países, também dedicam ao assunto a mesma importância.

A questão ambiental e as mudanças climáticas são, sem dúvida, uma questão fundamental do nosso tempo, que afeta a segurança de todos, inclusive dos brasileiros. Ela pode e deve ser abordada desde diferentes pontos de vista, inclusive, como se vê, pelo olhar da segurança e da defesa.




A compra dos carros de combate M1A2 Abrams pela Polônia



O ministro da defesa da Polônia, Mariusz Błaszczak, após reunião com o Secretário de Defesa norte-americano Lloyd Austin, confirmou a aquisição, pelo exército polonês, de 250 carros de combate principais Abrams M1A2 SEP v3, a mais moderna versão do veículo de combate norte-americano.

Os primeiros carros, que vão mobiliar 4 Unidades da 1ª Brigada Blindada, da cidade de Wesola, devem chegar à Polônia já no ano que vem. O valor do contrato gira em torno de 5,8 bilhões de dólares e prevê a aquisição de suprimentos, simuladores e carros de apoio, além de munição.

A aquisição dos Abrams representa a modernização da frota blindada polonesa, primeira linha de defesa da Europa Ocidental face aos russos, identificados nos mais recentes documentos estratégicos da Aliança como principal ameaça à OTAN. Essa sensação de ameaça é ainda mais palpável para os poloneses em razão da posição geográfica do país, vizinho à Ucrânia e à Belarus, em razão da anexação da Crimeia pela Rússia e da atuação do país no leste da Ucrânia e em Belarus.

Carros de combate são as armas que melhor caracterizaram o combate terrestre convencional. Conferem proteção blindada, potência de fogo, mobilidade e ação de choque às tropas. Essas características ainda são – e continuarão sendo no horizonte previsível – fundamentais para que os exércitos lutem e vençam suas batalhas. A aquisição os modernos Abrams pela Polônia é apenas mais uma confirmação dessa verdade.

Em 2019 publiquei um artigo na revista Ação de Choque, do Centro de Instrução de Blindados do Exército. Acho oportuno republicar aqui, para que aqueles que desejem possam se aprofundar no assunto.

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A ATUAL CONFIGURAÇÃO GEOPOLÍTICA GLOBAL, SUAS TENDÊNCIAS DE FUTURO E POSSÍVEIS REFLEXOS PARA O DESENHO DE NOSSAS FORÇAS BLINDADAS E MECANIZADAS

Artigo originalmente publicado na revista AÇÃO DE CHOQUE Nº 17, de 2019

A Configuração geopolítica atual

A configuração geopolítica atual desafia os pesquisadores e estudiosos, uma vez que a ordem unipolar, baseada na existência de uma única superpotência global – Os Estados Unidos da América – estabelecida após a queda do muro de Berlim e a do desmantelamento da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), está aparentemente esgotada. Uma nova ordem parece surgir, multipolar, com potências emergentes cada vez mais dispostas a alcançar seus próprios objetivos, mesmo que isto signifique desafiar os antigos detentores do poder mundial.

Assim, despontam uma série de incertezas, trazidas pelo rearranjo geopolítico que se vive. Algumas das perguntas para as quais se buscam as respostas são: Quais serão os principais polos de poder desta nova configuração da ordem mundial? A China conseguirá se firmar como uma potência militar capaz de ameaçar os interesses dos Estados Unidos, inicialmente na Ásia e depois em todo o mundo? Como o Japão reagirá ao novo status chinês? A Rússia será capaz de voltar a se impor política, econômica e militarmente sobre o leste europeu? Como os países europeus irão reagir à essa ameaça russa, e à crescente crise migratória? O Irã atingirá seu objetivo de contrapor-se à Arábia Saudita, firmando-se como maior potência do Oriente Médio e desafiando os interesses norte-americanos na Região? Como o novo status de potência nuclear da Coréia do Norte afetará o equilíbrio geopolítico da Península Coreana? Como Índia e Paquistão se comportarão face à cada vez maior influência chinesa sobre suas áreas de interesse? Será a Venezuela palco de uma disputa entre os EUA, de um lado, e China e Rússia, de outro? Os países do norte da África e do Oriente Médio conseguirão se estabilizar política e economicamente? Como os Estados Unidos se comportarão face a todas essas ameaças ao seu status de única superpotência do planeta?

Para nós, aqui no Brasil, a pergunta é: Estamos preparados para enfrentar os reflexos das crises, das instabilidades e desequilíbrios que esses rearranjos na configuração da ordem global certamente trarão?

Evidentemente, a situação acima descrita trará profundas consequências para a área de defesa. Neste artigo, tratarei dos possíveis reflexos desses novos ventos globais para as tropas blindadas brasileiras, integrantes do Exército da 8ª potência econômica do mundo.

Para qual guerra os exércitos devem se preparar?

Antes dos acontecimentos que ensejaram essa nova configuração geopolítica, ainda na primeira década do século 21, quando ainda se acreditava que o mundo poderia estar vivendo o chamado “fim da história” e também impactados pelo atentado às Torres Gêmeas do World Trade Center de 11 Set 2001 e a subsequente Guerra ao Terror travada pelos EUA e seus principais aliados, exércitos de todo o mundo começaram a discutir se ainda eram necessárias forças blindadas como as que existiam até então.

Afinal, a guerra passaria a ser travada não mais contra Estados Nacionais. Grupos terroristas não-estatais passariam a ser o inimigo. A “guerra no meio do povo” seria o novo paradigma. O livro do General britânico Rupert Smith, “A utilidade da força: A arte da Guerra no mundo moderno”, de 2008, passou a ser leitura obrigatória nas Escolas de Estado-Maior do mundo todo. A frase inicial do seu livro: “Já não existem guerras”, sintetizava o novo e surpreendente paradigma. Nessa realidade a potência de fogo, o poder de choque e a proteção blindada não pareciam ser mais tão necessárias…

A realidade brasileira acrescentava um aspecto importante àquela conjuntura. O crescente engajamento do Exército nas operações de GLO, além das missões de combate aos ilícitos trasnfronteiriços, nosso problema mais palpável e imediato, naturalmente atraíram a atenção convencendo inclusive uma porção da oficialidade – minoritária, felizmente – de que aquela era a “nossa guerra”.

Entretanto, acontecimentos da segunda década do século 21, tais como a ação russa na Criméia, a crescente assertividade militar chinesa no Mar do Sul da China e no sudeste asiático, a ascensão da Coreia do Norte ao status de potência nuclear, os novos enfrentamentos entre Paquistão e Índia na Caxemira, a crise na Venezuela, todos são fatos que relembram que a possibilidade do envolvimento dos Estados Nacionais em conflitos de alta intensidade ainda devem ser considerados por governos responsáveis como possibilidades reais. A realidade se impôs e recordou aos estrategistas que a natureza das relações humanas e das interações de poder não mudaram, e consequentemente, as disputas estatais permanecerão existindo por muitos anos ainda.

Em outras palavras, Clausewitz ainda não foi superado. A guerra, como fenômeno político, econômico e social continua uma constante, ao longo da história.

Este fato nos traz uma pergunta: se a guerra permanece um acontecimento humano e como ela ainda poderá ser manifestar como um fenômeno interestatal e de alta intensidade, em que todos os componentes do poder nacional serão empregados de forma exaustiva, como os exércitos devem se preparar? Qual o papel das Forças Blindadas nessa realidade?

Essas perguntas têm sido respondidas pelos exércitos das maiores potências militares com a readequação, dentre outros aspectos, de suas forças blindadas.

A modernização das Forças Blindadas pelo mundo

Nos Estados Unidos, o “Próxima Geração de Veículos de Combate” é uma das seis prioridades de modernização estabelecidas pela Estratégia de Modernização do Exército Norte-Americano, de 03 Out 2017. Para melhor responder às necessidades estabelecidas pela estratégia, o Exército dos EUA criou uma estrutura, o “Comando do Futuro”[2]. Espera-se que o protótipo de um novo e inovador blindado esteja pronto em 2022, para que se inicie a avaliação operacional em 2023. Assim, planeja-se que em 2035 essa nova geração de blindados e substitua tanto o Carro de Combate Principal M1 Abrams quanto as Viaturas de Combate M2/M3 Bradley e as da família M-113.

Não se trata de produzir viaturas novas baseadas nos atuais conceitos. Essa nova geração de blindados deverá agregar inovações disruptivas, ou seja, se prevê a inclusão de soluções que provoquem uma ruptura com as tecnologias, padrões ou modelos hoje estabelecidos no mercado. Busca-se blindados que possam ser pilotados remotamente, ou seja, dispensem a presença da tripulação, que possuam boa capacidade para operar em áreas urbanas, excelente proteção blindada, capacidade de agregar novas tecnologias, novas armas, novos equipamentos de comunicações que venham a ser desenvolvidos. Uma verdadeira revolução.

O Exército Francês, por sua vez, apresentou, em 2015, um Programa Estratégico denominado “Au contact” (Contato), que tem a finalidade de reestruturar e prover aquela Força de meios para fazer face às ameaças e aos desafios da primeira metade deste século. Dentre outras ações desse programa, destaque-se o Projeto Scorpion. Trata-se de proporcionar àquele Exército uma mudança geracional no que concerne às suas Forças Blindadas.

O Projeto Scorpion tem por objetivos, dentre outros:

– Otimizar a capacidade de combate da Força-Tarefa (FT) nível Batalhão (Btl) (interarmas) no contato com o oponente, por meio da melhoria da proteção blindada, mobilidade, autonomia e agilidade tática, as quais contribuirão para a eficácia operacional e otimização da preparação operacional;

– Renovar as principais plataformas da FT Btl, que passarão a ser a Viatura Blindada Multitarefa (VBMR) – GRIFFON, o Carro Blindado de Reconhecimento e Combate (EBRC) – JAGUAR e o Carro de combate pesado – LECLERC (modernizado);

– Alinhar as capacidades da FT Btl (interarmas), integrando, por meio de um Sistema de Informação e Combate SCORPION (SICS), as plataformas de combate e os combatentes, mediante o intercâmbio imediato de informações, combate colaborativo e, ainda, preparação operacional com uso da simulação embarcada; e

– Proporcionar um sistema otimizado de apoio, desenvolvendo subsistemas modulares que contribuirão para reduzir a cauda e as digitais logísticas no teatro de operações.

A Rússia também providenciou seu programa de modernização. Assinado em 2018 pelo Presidente Vladimir Puttin, o Programa Estatal de Armamento define as prioridades dos investimentos de defesa do país até 2027. Embora a revitalização das forças nucleares de emprego estratégico seja a prioridade anunciada no documento, as Forças Blindadas também receberam atenção, com a destinação de recursos para a modernização dos Carros de Combate T-72, T-80 e T-90 e das Viaturas Blindadas de Combate de Infantaria BMP-2 e BMD-2.

Além disso, o carro de combate principal de nova geração T-14 Armata, e as novas as Viaturas Blindadas de Combate de Infantaria Kurganets25, além das de transporte de tropa VPK- 7829 Boomerang já estão em testes e espera-se que, apesar de sucessivos atrasos, até 2027, uma parcela dos lotes iniciais já tenha sido incorporada ao acervo do Exército Russo.

Reflexos para o Exército Brasileiro

A conjuntura geopolítica que obrigou diversos países a adotarem medidas para retomarem o desenvolvimento de suas forças blindadas evidentemente também afetou o Brasil.

O país, que devido à sua estatura político-estratégica desempenha um papel de liderança no subcontinente e participa ativamente do cenário global, não pode abster-se de possuir capacidades militares e operativas decisivas e de difícil construção.

O Conceito Operativo do Exército de condução de operações militares no Amplo Espectro, caracterizado pela combinação simultânea ou sucessiva de operações de diversas naturezas, estabelece como premissas a necessidade de enfrentamento de novas ameaças e a aquisição e manutenção das capacidades requeridas pelos conflitos modernos.

O Catálogo de Capacidades do Exército lista tais capacidades militares terrestres e operativas, todas necessárias para que a Força Terrestre se mantenha em permanente estado de prontidão para o atendimento das demandas de segurança e defesa do país.

Dentre estas, a Superioridade do Enfrentamento, a Ação Terrestre, a Manobra Tática e o Apoio de Fogo são capacidades fundamentais e em grande parte oferecidas por Forças Blindadas eficientes e eficazes. Assim, não pode haver a menor dúvida dentre profissionais conhecedores da atual realidade da guerra, de que forças blindadas são, e continuarão sendo em um futuro previsível, a espinha dorsal de um exército moderno, preparado e em constante estado de prontidão.

Entretanto, a realidade nacional, segundo a qual os limitados recursos disponíveis devem ser judiciosamente empregados, torna desafiadora a tarefa de renovar as forças blindadas do país. Mas este não pode ser um desafio intransponível. Certamente o invicto Exército de Caxias saberá superar as dificuldades orçamentárias e continuará a possuir uma Força Blindada a altura de suas responsabilidades, capaz de fornecer as capacidades requeridas ao combate no amplo espectro, realidade neste século XXI.

BRASIL. EXÉRCITO BRASILEIRO. Catálogo de Capacidades do Exército. EB20-C-07.001. Brasília. 2015

__________. Lista de Tarefas Funcionais. EB70-MC-10.341. Brasília, 2016.

CARVALHO, Marcelo Pereira Lima. Oficial de Ligação do Exército Brasileiro junto à República Francesa (2017/2018). Entrevista, em 15 Abr 2019.

CONNOLLY, Richard e BOULÈGUE, Mathieu.  Russia’s New State Armament Programme Implications for the Russian Armed Forces and Military Capabilities to 2027. Chatam House. Disponível em https://www.chathamhouse.org/sites/default/files/publications/research/2018-05-10-russia-state-armament-programme-connolly-boulegue-final.pdf. Acesso em 14 Abr 2019

Information from the Parliamentary Commissioner for the Armed Forces. Parlamento Alemão. Disponível em https://www.bundestag.de/resource/blob/554772/e70a53c4708baed83f7ceba9e2e954f4/annual_report_2017_59th_report-data.pdf

PURTIMAN. BOB, Preparing for future battlefields: The Next Generation Combat Vehicle. Set 2018. disponível em https://www.army.mil/article/211236/preparing_for_future_battlefields_the_next_generation_combat_vehicle. Acesso em 12 Abr 19

SERRANO, Marcelo de Oliveira. Guerra: no meio do povo ou simplesmente irregular?  Coleção Meira Mattos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 31, p. 19-28, jan./abr. 2014

TERRE INFORMATION MAGAZINE, N°276 Jun/Ago 2016. Exército da França. Disponível em http://fr.1001mags.com/parution/terre-information-magazine/numero-276-jui-aou-2016 Acesso em 15 Abr 2019

[2] O “Comando do Futuro – Army Futures Command” foi um comando criado pelo Exército dos Estados Unidos da América para assegurar que os programas de modernização caminhem na velocidade apropriada. Tem como foco garantir que as vantagens militares que hoje separam o Exército dos EUA de seus principais adversários sejam mantidas no futuro.




A nova aliança militar entre EUA, Reino Unido e Austrália

No dia 15 de setembro, um pronunciamento feito pelo presidente Joe Biden, com a participação virtual dos primeiros-ministros britânico, Boris Johnson, e australiano, Scott Morrison, causou protestos da China e indignação na França: EUA e Reino Unido acordavam em repassar para Austrália a tecnologia necessária para a produção local de submarinos de propulsão nuclear.

Os protestos chineses são compreensíveis. Afinal, embora o nome da China não tenha sido citado em nenhum momento, é óbvio que a posse de submarinos nucleares pela Austrália tem a finalidade de conter a emergente potência asiática, detentora da maior Marinha do mundo em quantidade de meios navais e cada vez mais assertiva em suas ações no Mar do Sul da China. Aquela porção do Oceano Pacífico, que vai de Cingapura a Taiwan, é o palco da disputa entre a China e os países da região, envolvendo a exploração econômica dos recursos marinhos, a posse de centenas de pequenas ilhas e o acesso ao Oceano Índico via Estreito de Málaca.

Submarinos de propulsão nuclear são armas poderosíssimas. Enquanto um submarino convencional tem sua permanência submersa limitada, necessitando subir à superfície para recarregar suas baterias, um submarino nuclear pode ficar muito mais tempo submerso. Na prática, este tempo é limitado pela capacidade física e psicológica das tripulações e pelo estoque de víveres disponível. É muito mais rápido que o convencional e incomparavelmente mais furtivo, ou seja, de detecção muito mais difícil pelo inimigo. Uma flotilha de submarinos nucleares australianos navegando sob as águas do Mar do Sul da China seria um pesadelo para os militares chineses.

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Autor – Tim Marshall

Mas, se a reação chinesa podia ser esperada, a reação da França talvez tenha surpreendido norte-americanos, australianos e britânicos. O ministro das Relações Exteriores francês, Jean-Yves Le Drian, qualificou o acordo como “brutal” e uma “facada nas costas”. O presidente francês, Emmanuel Macron, determinou que os embaixadores franceses nos EUA e na Austrália fossem à França, “para consultas”. Como se sabe, essa é uma forma de expressar um profundo descontentamento. As razões francesas são predominantemente comerciais. O país havia firmado um acordo com os australianos para a venda de submarinos convencionais, no valor de US$ 66 bilhões. Agora, o acordo foi desfeito. Um enorme prejuízo. Mas esta não é a única causa de descontentamento. A França é uma aliada histórica dos EUA. Aliás, foi o primeiro país com quem os norte-americanos firmaram uma aliança militar, em 1778, quando os franceses com eles ombrearam contra os ingleses na guerra pela independência. Hoje, é um importante membro da Otan. Ao serem surpreendidos pelo acordo, os franceses se sentiram traídos.

O movimento de norte-americanos e britânicos, ocorrido imediatamente depois da completa e traumática retirada dos EUA e aliados do Afeganistão, emite sinais claros para toda a comunidade internacional. Os EUA mostram que o seu foco prioritário passa a ser a China e que o país não medirá esforços para conter aquele que considera ser o seu maior adversário geopolítico neste século 21. O Reino Unido, por sua vez, depois do Brexit, demonstra seu alinhamento prioritário com os EUA e reforça sua intenção de se manter relevante do ponto de vista geopolítico. Trata-se de uma ação dentro da Estratégia Global Britain, lançada por Boris Johnson, que vê o Reino Unido desvencilhado da Europa, como uma das mais influentes nações do planeta.

É interessante notar que a aliança entre EUA, Reino Unido e Austrália foi anunciada ao mesmo tempo que o Japão faz seu maior exercício militar em 30 anos, empregando cerca de 100 mil militares, em meio a um aumento das tensões com a China em torno da posse das ilhas Senkaku, que os chineses consideram suas e chamam de Diaoyu Dao. Note-se, também, que o Japão acaba de anunciar um acordo militar com o Vietnã, que envolve a realização de exercícios militares conjuntos entre os dois países e exportações de materiais de emprego militar dos japoneses para os vietnamitas.

Ao mesmo tempo que os EUA e seus maiores aliados no Indo-pacífico adotam atitudes cada vez mais assertivas no sentido de conter a China, esta se movimenta na direção contrária, projetando seu poder em direção ao Ocidente. Isso fica claro, por exemplo, quando China e Rússia aceitam o Irã como membro pleno da Organização para Cooperação de Xangai ou na assertividade com que o país se comporta em relação ao Afeganistão, ocupando o vácuo deixado por EUA e seus aliados.

“Na briga entre o mar e o rochedo, é o marisco que apanha”, diz o dito popular. O sistema internacional passa por um momento de reacomodação, no qual os movimentos de chineses e norte-americanos exigirão muita atenção dos demais países, que devem estar atentos para não verem comprometidos seus próprios interesses estratégicos. Ninguém está a salvo deste embate, nem mesmo o Brasil, na (distante) América do Sul.

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Autor – Robert Kaplan




Vinte anos dos ataques de Onze de Setembro de 2001 aos Estados Unidos da América

Para quem tem mais de trinta anos, 11 de setembro de 2001 é um dia inesquecível. Poucos são os eventos não relacionados às nossas vidas pessoais que ficam gravados na nossa memória de tal forma que nos lembramos exatamente do que estávamos fazendo quando recebemos a notícia. No meu caso há pessoal, apenas dois eventos desse tipo: a morte de Ayrton Senna e os atentados que hoje completam vinte anos.

O impacto foi tamanho em razão dos 2.977 mortos, de 77 nacionalidades diferentes (inclusive 5 brasileiros) e cerca de 6 mil feridos, dos gigantescos prejuízos financeiros, da surpresa, do ineditismo, e porque, mesmo intuitivamente, as pessoas sabiam que a partir daquele momento, o mundo seria outro.

Afinal, os Estados Unidos da América eram, à época, a única superpotência do planeta. Vivia-se a época da unipolaridade. A guerra fria havia terminado, e o vencedor, os EUA, eram indiscutivelmente a maior potência econômica, militar, cultural e tecnológica do planeta. E, apesar disso, os EUA tinham sofrido um ataque em seu próprio território apenas pela segunda vez na história. O primeiro, em 7 de dezembro de 1941, à Base de Pearl Harbor, tinha levado o país à 2ª Guerra Mundial. O segundo, levou o país à “Guerra ao Terror”.

A máquina militar norte-americana, que sempre teve a chamada guerra convencional, ou conflito de alta intensidade, como sua primeira prioridade de emprego, a partir daquele momento passava a se dedicar a outro tipo de conflito, de baixa intensidade, prolongado, de resultados muito mais dificilmente mensuráveis: o combate ao terrorismo, muito especialmente à Rede Al Qaeda de Osama bin Laden, responsável pelos ataques de 11 de setembro.

Assim, quase imediatamente, os EUA invadiam o Afeganistão. O grupo extremista Talibã, que governava o país e permitia que a Al Qaeda operasse a partir do seu território, foi deposto. Osama fugiu de seu complexo de Comando e Controle localizado nas montanhas de Tora Bora, fronteira com o Paquistão, para ser encontrado e morto por um grupo de Forças Especiais norte-americano somente em maio de 2011, no Paquistão.

Após a invasão do Afeganistão, que recebeu o apoio da comunidade internacional e da ONU, os EUA decidiram, também no contexto da Guerra ao Terror, invadir o Iraque e derrubar o ditador Saddam Hussein, sob o pretexto de que o país produzia armas químicas de “destruição em massa”. A comunidade internacional, neste caso, não apoiou a invasão, mas os EUA a efetivaram mesmo assim, derrubando o regime iraquiano.

Nos dois casos, Afeganistão e Iraque, a queda dos governos inimigos não significou o fim da guerra e o retorno dos soldados norte-americanos ao seu país. Seguiu-se a tentativa de implantação de regimes democráticos, de modelo ocidental. Essa tentativa de state building[1] encontra amparo em um pensamento ocidental de característica missionária, descrito, dentre muitos outros, da seguinte forma por Samuel Huntington.

O Ocidente – e em especial os EUA, que sempre foram uma nação missionária – está convencido de que os povos não-ocidentais deviam se dedicar aos valores Ocidentais de democracia, mercados livres, governos limitados, direitos humanos, individualismo e império da lei, e que deveriam incorporar esses valores às suas Instituições.[2]

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Autor – Samuel Huntington

Neste aniversário de vinte anos dos atentados é desnecessário lembrar que, tanto no Iraque quanto no Afeganistão, os EUA fracassaram em sua tentativa de implementar regimes de corte ocidental. No primeiro, que assistiu no pós-guerra o nascimento do grupo terrorista Estado Islâmico, o governo se equilibra precariamente entre as tensões entre grupos sunitas, xiitas e curdos. No segundo, o Talibã está exatamente no mesmo lugar em que estava em 11 de setembro de 2001.

As falhas de segurança que permitiram a ação da Al Qaeda foram esquadrinhadas, e os EUA modificaram suas leis e ampliaram significativamente a estrutura de inteligência. A Agência Nacional de Segurança (NSA), a CIA e as demais agências de inteligência passaram a contar com ampla liberdade de ação. Qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, poderia ser alvo das agências e ter sua vida monitorada. A relativização da privacidade é uma das consequências do 11 de Setembro. As prisões arbitrárias de pessoas acusadas de terrorismo, mantidas encarceradas sem julgamento, e a divulgação das imagens do tratamento desumano dispensado aos presos da prisão de Abu Ghraib, no Iraque, abalaram a imagem dos EUA, tanto no exterior quanto junto à sua própria opinião pública, tornando a guerra impopular e contribuindo significativamente para o fim das operações em ambos os países.

Ao chegar ao aniversário de 20 anos dos atentados tendo se retirado completamente do Afeganistão, os EUA viram uma página dolorosa de sua história e, dessa forma, podem se concentrar nos desafios que não existiam à época, mas que hoje conformam o tabuleiro geopolítico mundial.

A China, que em 2001 ainda era a 7ª economia do mundo, passou a ser um desafiante de muito peso, capaz de rivalizar com os EUA em todos os campos do poder e de ameaçar os interesses norte-americanos, especialmente no Pacífico. A Rússia, que em 2001 ensaiava uma aproximação do Ocidente, após a invasão da Ucrânia e da anexação da Crimeia, voltou a ser o principal antagonista da OTAN e a almejar um protagonismo em sua esfera de influência.

Assim, creio que se os EUA forem capazes de evitar um novo atentado de proporções semelhantes ao 11 de setembro, dificilmente veremos aquele país voltar a se engajar em guerras como a do Afeganistão e a do Iraque. Eles agora têm outras ameaças, talvez ainda maiores, com que se preocupar.

[1] Construção de Estado

[2] Huntington, Samuel. O Choque das Civilizações. p.228. Ed Objetiva. 1996

Vídeo deste texto disponível no Youtube




As repercussões do fim da guerra no Afeganistão

As cenas das aeronaves civis e militares sendo cercadas por pessoas desesperadas para fugir do Afeganistão ficará gravada na memória dos milhões de espectadores que acompanharam pela televisão e pela internet a reconquista de Cabul pelo Talibã. Trata-se de um daqueles eventos marcantes que, por seu simbolismo, será utilizado por historiadores no futuro para explicar os acontecimentos marcantes desta segunda década do século 21.

Os custos da guerra para os Estados Unidos foram enormes. Morreram aproximadamente 2,5 mil militares norte-americanos; 1,1 mil militares dos países da coalizão e cerca de 70 mil militares afegãos. A esses números somem-se cerca de 50 mil baixas civis. Estima-se ainda que o esforço de guerra tenha custado cerca de 2 trilhões de dólares aos contribuintes norte-americanos.

Apesar desse esforço gigantesco em recursos humanos e materiais, os resultados não foram os esperados. E, ao final, os Estados Unidos da América, maior potência militar do planeta, e seus aliados da OTAN foram surpreendidos pela velocidade com que o Talibã executou sua ofensiva final, obrigando-os a uma humilhante retirada. Em meio ao caos das pessoas tentando chegar ao aeroporto para conseguir uma vaga em uma aeronave para fugir do país, atentados terroristas mataram cerca de 180 pessoas, dentre elas 13 militares norte-americanos.

Neste artigo, procurarei delinear o histórico dos acontecimentos, mostrando como  caminharam para esse desenlace e apresentarei possíveis repercussões da nova situação política do Afeganistão para o chamado “Grande Oriente Médio” e para as potências do entorno, especialmente China, Rússia, Paquistão e Irã.

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Autora – Adriana Carranca

As intervenções norte-americanas no Afeganistão e no Iraque

Em 1990, reagindo à invasão do Iraque ao Kuwait, os EUA, autorizados pela ONU, lideraram uma coalizão militar internacional que derrotou o exército iraquiano e restabeleceu a soberania do Kuwait sem, entretanto, derrubar o regime liderado por Saddam Hussein no Iraque. Naquele episódio, um fato revoltou os grupos islâmicos radicais: as tropas ocidentais empregadas na Guerra do Golfo ficaram sediadas na Arábia Saudita, país islâmico sunita e wahabista, onde se encontram duas das mais importantes cidades sagradas do Islã: Meca e Medina.

É neste contexto que radicais islâmicos – em especial a rede Al Qaeda – planejaram e executaram uma série de atentados, contra o World Trade Center, em Nova York, em 1993, contra a base militar norte-americana em Kobhar, Arábia Saudita, em 1996, contra embaixadas dos EUA no Quênia e na Tanzânia, em 1998 e, finalmente, novamente contra as Torres Gêmeas do World Trade Center e ao Pentágono, em 11 de Setembro de 2001.

Esse último ataque, por suas inéditas proporções, vitimando mais de 3 mil pessoas em solo norte-americano, ganhou imediata repercussão mundial. A rede terrorista Al Qaeda, chefiada pelo saudita Osama bin Laden, foi imediatamente acusada de ser a autora dos atentados. Abrigada no Afeganistão pelo governo do grupo islâmico Talibã, que controlava cerca de 90% do território do país naquela época e era, de facto, o governo em Cabul, a Al Qaeda contava com ampla liberdade de ação nas montanhas ao sul do país, na porosa fronteira com o Paquistão.

Os EUA exigiram que o Talibã entregasse Bin Laden, o que não aconteceu. Em consequência, os norte-americanos iniciaram sua campanha militar no Afeganistão, novamente com o beneplácito da ONU, com o objetivo de retirar o Talibã do poder, desmantelar a rede terrorista Al Qaeda e eliminar Osama bin Laden.

As operações começaram em outubro de 2001 e, em dezembro do mesmo ano, o Talibã já havia sido retirado do poder. Osama bin Laden, entretanto, conseguiu fugir do seu complexo de comando e controle, escavado nas montanhas de Tora Bora, no sul do Afeganistão, próximo à fronteira com o Paquistão. O líder terrorista que havia planejado os atentados de 11 de setembro só viria a ser morto quase uma década depois, em maio de 2011, em uma ação norte-americana que encontrou seu esconderijo no Paquistão.

Mas as ações dos EUA não ficaram restritas ao Afeganistão. Em março de 2003, o país invadiu o Iraque, ainda governado por Saddam Hussein, alegando que o regime estava produzindo e estocando armas químicas de destruição em massa. Naquela oportunidade, diferentemente das anteriores, a ação militar norte-americana foi decidida unilateralmente, sem o respaldo das Nações Unidas.

Assim, os EUA mantinham, no contexto da estratégia de “guerra ao terror” que o país adotava naquele momento, duas intervenções militares ao mesmo tempo, no Afeganistão e no Iraque. Ambas as intervenções tinham por objetivos declarados a construção de regimes democráticos naqueles países, com instituições que fossem suficientemente sólidas para impedir que eles se transformassem em santuários para o planejamento de atentados terroristas sobre o território norte-americano ou europeu.

Nenhuma das ações obteve o êxito esperado. No Iraque, as tensões entre os grupos xiitas, curdos e sunitas se intensificaram, com os dois primeiros, que assumiram o poder no país, vingando-se dos anos de repressão promovida pelo partido de Saddam Hussein, o Baath, sunita. Este ambiente propiciou o surgimento da insurgência terrorista sunita, em especial o chamado Estado Islâmico do Iraque, que recrutou inclusive ex-integrantes das forças armadas iraquianas, que haviam sido desmanteladas com a queda do regime imposta militarmente pelos EUA.

A retirada das tropas norte-americanas do Iraque em 2011 deu espaço para o início de uma verdadeira guerra civil no país. Em junho de 2014, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), grupo terrorista resultado da integração do já mencionado Estado Islâmico do Iraque a facções terroristas sunitas da Síria, proclamou o chamado “Califado Islâmico”, que chegou a manter o domínio do território em importantes porções dos dois países[1]. A reação ao grupo, no Iraque, foi feita pelo governo com apoio de milícias curdas e do Ocidente. Na Síria, o governo contou com forte apoio russo. No final de 2017, o ISIS finalmente foi derrotado.

Já as tratativas formais entre o governo dos EUA e o grupo Talibã no Afeganistão remontam ao ano de 2018. As conversas estavam baseadas em quatro premissas: os EUA retirariam todas as suas tropas; em contrapartida, os afegãos assumiriam o compromisso de que o país não se tornaria um santuário para grupos terroristas; deveria haver um amplo cessar fogo e um diálogo dentre todos os grupos afegãos na busca de um governo de consenso. Para que esse plano desse certo, o governo afegão, presidido por Ashraf Ghani, e o grupo Talibã, além das outras facções existentes no país deveriam conseguir chegar a um mínimo grau de entendimento. Ou, pelo menos, o governo afegão deveria ter condições de conter o grupo Talibã por tempo suficiente, após a retirada das tropas norte-americanas, para forçar o grupo Talibã a negociar. Nada disso aconteceu. Em uma ofensiva fulminante de cerca de dez dias, praticamente sem enfrentar resistências, o Talibã tomou para si o poder e o Presidente Ashraf Ghani fugiu do país.

A constatação inescapável é a de que as tentativas norte-americanas de instalar governos democráticos no Iraque e no Afeganistão não alcançaram o êxito esperado. O Afeganistão hoje é governado pelo Talibã, o mesmo grupo que estava no poder no início da guerra em 2001, e o Iraque vive grande instabilidade política.

Por outro lado, houve êxitos no nível tático. Osama bin Laden foi morto e o terrorismo da rede Al Qaeda e do ISIS foram muito enfraquecidos. Além disso, nesses últimos vinte anos, nenhum grande atentado terrorista ocorreu em território norte-americano.

O que pode acontecer no Afeganistão a partir de agora?

O desenrolar dos acontecimentos no Afeganistão, a partir de agora, deverá ser observado com atenção, para que se possa tentar antever os desdobramentos para o próprio país e para seu entorno.

Um primeiro ponto a se observar é se o país mergulhará em uma guerra civil ou se o Talibã será capaz de derrotar os demais grupos que tentarão disputar o poder, em especial a chamada “Aliança do Norte”, grupo que ainda controla do Vale do Panjshir, única área do país que não foi conquistada pelo Talibã em sua ofensiva final, e que é liderado por Ahmad Massoud, filho de Ahmad Shah Massoud, um comandante veterano da campanha contra os soviéticos na década de 1980.

Outro aspecto a ser acompanhado é a produção de papoula, base para a fabricação do ópio. O Talibã já se comprometeu publicamente a acabar com a produção da planta. Ocorre que ela é a principal fonte de financiamento do grupo. De acordo com um relatório do Escritório das Nações Unidas para as Drogas e o Crime (UNDOC), em 2020, houve um aumento de 37% da área de cultivo da papoula no Afeganistão, se comparada com 2019. Nesse mesmo estudo, o UNDOC afirma que mais de um terço dos fazendeiros entrevistados informaram que pagam impostos da ordem de 6% das vendas do ópio, principalmente, para o Talibã[2]. A transformação do território afegão em uma espécie de “zona livre” para a produção de drogas seria fator altamente desestabilizador para a região.

Um terceiro foco da atenção deve ser a possibilidade de aumento do terrorismo. Há um grande temor na comunidade internacional de que o território afegão volte a ser uma área livre para homizio, concentração e planejamento de ações terroristas. Embora o Talibã afirme que não permitirá que tais ações se desenvolvam, o atentado terrorista perpetrado pelo Estado Islâmico Khorasan, conhecido como ISIS-K, na região do aeroporto de Cabul, no momento em que os EUA e demais países do Ocidente faziam a retirada de suas tropas, serviu como um alerta de que o Talibã, mesmo que (e se) realmente quiser combater o terrorismo, talvez não tenha essa capacidade. É interessante notar que, em suas bases, o Talibã também possui militantes fanatizados, que podem muito bem servir de fonte de terroristas para o ISIS-K e outros grupos, caso acreditem que o governo Talibã tenha deixado de ser suficientemente rígido na sua interpretação dos valores pelos quais lutaram. E isso não é difícil de ocorrer, visto que as atuais lideranças do grupo, no governo, certamente terão que fazer concessões em favor da governabilidade, naturais do processo político e das relações internacionais.

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Autor – Patrick Cockburn

Repercussões da retirada norte-americana do Afeganistão

Vistos alguns possíveis rumos dos acontecimentos no Afeganistão, vejamos as possíveis repercussões para os principais atores internacionais envolvidos.

Os ecos da retirada serão fortemente sentidos nos Estados Unidos, tanto no campo interno quanto no campo externo. A sociedade norte-americana cobrará, especialmente por intermédio de seus congressistas e da imprensa, as razões para o fracasso da intervenção. A palavra “fracasso” aqui é usada propositalmente, porque essa será a percepção dominante na sociedade, mesmo que os eventuais sucessos táticos sejam apresentados ao grande público. E tal cobrança será grandemente potencializada caso ocorra algum atentado terrorista contra alvos norte-americanos em um futuro próximo. O atual governo, do presidente Joe Biden, sofrerá grande pressão e tenderá a responder com ações pontuais contra alvos identificados com o terrorismo no Oriente Médio e no norte da África.

No campo militar, os EUA fecham definitivamente a página da “Guerra ao Terror” e passam a se concentrar em uma nova era de competição estatal, conforme inclusive já preconiza a Estratégia de Defesa dos EUA[3], de 2018. O foco sai definitivamente do Oriente Médio e vai para a Ásia. Se no curto prazo, como se vê, a saída do Afeganistão é traumática para os EUA pelo inegável gosto de derrota, por outro lado, nos médio e longo prazos, os recursos economizados com o fim da guerra estarão disponíveis para serem empregados na Ásia, na contenção à China, e mesmo na Europa, na contenção à Rússia.

No campo externo, os EUA sofrerão um abalo em sua reputação. Adversários explorarão a narrativa de que o país abandona seus aliados, como teria feito com o governo afegão, deixado à mercê do Talibã. Esta é, inclusive, a narrativa que a China propagandeia, com o foco nos taiwaneses, indicando que estes igualmente seriam deixados sós contra a própria China em caso de um conflito entre chineses e separatistas taiwaneses.

Isso nos traz para as repercussões para a China. A potência asiática, vale a pena lembrar, faz fronteira com o Afeganistão através do Corredor Wakhan, em uma estreita faixa de terra de cerca de 70 quilômetros de largura. Do lado chinês da fronteira está Xinjiang, região autônoma habitada principalmente pela etnia uigur, um grupo majoritariamente islâmico. Xinjiang também é a base do grupo terrorista Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, grupo separatista responsável, segundo o governo chinês, por mais de 200 ataques, com mais de uma centena de vítimas no país.

A China teme que o vizinho Afeganistão se torne um santuário para os terroristas, fortalecendo o movimento que atualmente se encontra enfraquecido.

A instabilidade no Afeganistão, caso o país entre em guerra civil, por exemplo, também seria muito ruim para a China, que possui uma série de interesses econômicos nos vizinhos Paquistão e países da Ásia Central. Os investimentos da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative) são fundamentais na estratégia de desenvolvimento econômico chinês e qualquer instabilidade que os ameace seria frontalmente contra os interesses chineses.

Assim, se à primeira vista o fracasso dos EUA no Afeganistão pode ser compreendido como vantajoso para a China, por outro lado a nova situação obrigará o país a assumir um protagonismo na segurança da região que antes era exercido pelos EUA, com todos os possíveis ônus que isso pode causar.

O governo chinês já está atuando para estreitar os laços com o governo talibã. A embaixada do país em Cabul foi mantida em funcionamento e espera-se que a China ofereça suporte financeiro ao país em troca da garantia de que não haverá nenhum tipo de apoio aos separatistas uigures.

Russos também têm motivos para se preocupar com o novo status afegão. A onda de refugiados afegãos em direção aos países fronteiriços de norte – Turcomenistão, Uzbequistão e Tadjiquistão – é uma grande preocupação para aquelas frágeis economias, e uma eventual instabilidade nesses países afeta diretamente os grandes interesses russos na Ásia Central. O Tadjiquistão já acionou a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, aliança militar regional liderada pela Rússia, para auxiliar em uma eventual crise provocada por um grande afluxo de refugiados.

Para o Irã, as primeiras consequências podem ser econômicas. Em razão do isolamento imposto pelo ocidente, o Irã e o Afeganistão aumentaram suas relações econômicas nos últimos anos. Atualmente, o Afeganistão é um dos maiores destinos das exportações iranianas de não derivados do petróleo, em um volume de cerca de 2 bilhões de dólares ao ano. Uma crise econômica no Afeganistão traria, portanto, consequências bastante negativas para o Irã. Outra causa de preocupação é o afluxo de refugiados, que já são contados na casa das centenas de milhares de pessoas.

O Paquistão, vizinho de sul que compartilha com o Afeganistão uma fronteira porosa habitada pelos Pachtuns, etnia de origem do Talibã, certamente sentirá rapidamente os reflexos dos acontecimentos no Afeganistão. O país era, formalmente, um aliado norte-americano na guerra. Suas forças armadas, em razão disso, receberam bilhões de dólares dos EUA nos últimos vinte anos. Acontece que o Talibã, que muitos analistas afirmam ter sido uma criação do próprio serviço secreto paquistanês, encontra um grande apoio dentro do Paquistão. O país pretende evitar a todo custo que o Afeganistão caia na esfera de influência de seus arqui-inimigos, os indianos. Para os paquistaneses, o Afeganistão provê profundidade estratégica para um eventual conflito contra a Índia. Além disso, a proximidade do governo de Ashraf Ghani com os indianos era vista com muita desconfiança pelo governo de Islamabad. Assim, quando os diplomatas indianos foram um dos primeiros a abandonar Cabul quando da chegada do Talibã, isso foi comemorado como uma vitória pela imprensa paquistanesa.

Conclusão

O fim da guerra do Afeganistão pode ser considerado um marco nas disputas geopolíticas globais. Os EUA, por ora, se retiram da Ásia Central, como já tinham feito no Oriente Médio e no norte da África, caracterizando um provável pivô em direção à Ásia, na contenção da China, e mesmo um retorno de sua atenção à Europa, com o fortalecimento da OTAN na contenção da Rússia. Em consequência, o país perderá influência no Oriente Médio e na Ásia Central, o que alimentará certa narrativa de que vive momentos de declínio e perda de poder em sua disputa com a China.

A saída dos EUA dessas regiões abre espeço para uma atuação mais incisiva de Rússia e China, com as vantagens e desvantagens que acompanham este fato. A China passa a ter uma preocupação maior na sua fronteira oeste, somada às preocupações que ela já tinha em Xinjiang. Em compensação, se conseguir trazer o Afeganistão para sua área de influência, poderá fortalecer sua presença na Ásia Central e no Oriente Médio.

O Paquistão, embora comemore secretamente a vitória do Talibã, talvez perca muito apoio dos EUA, que poderão acabar cada vez mais alinhados com a Índia na busca da contenção da China.

Finalmente, o Afeganistão, transformado em “Emirado Islâmico do Afeganistão”, estará sob escrutínio da opinião pública internacional. O tratamento que dispensar às mulheres e às minorias, sua atitude face ao terrorismo internacional e ao tráfico de drogas e a sua capacidade de unificar o país evitando uma guerra civil serão os fatores que definirão se o país se integrará à comunidade internacional ou se será um pária, mais uma vez sujeito a intervenção das grandes potências. De qualquer forma, a retirada dos Estados Unidos permanecerá reforçando o mito da invencibilidade do Afeganistão em seu próprio território.

 

[1] Importante recordar que a Síria estava em guerra civil, com o Presidente Bashar al-Assad enfrentando diversos grupos, dentre eles, o ISIS.

[2] Disponível em https://www.unodc.org/unodc/en/frontpage/2021/May/afghanistan_-37-per-cent-increase-in-opium-poppy-cultivation-in-2020–while-researchers-explore-novel-ways-to-collect-data-due-to-covid-19.html

[3] Saiba mais em https://paulofilho.net.br/2018/04/18/nova-estrategia-de-defesa-dos-eua-e-ataque-a-siria/ e https://paulofilho.net.br/2021/06/27/a-otan-e-as-mudancas-no-equilibrio-do-poder-mundial/

 

REFERÊNCIAS

BARMAK, Pazhwak; ASMA, Ebadi; BELQUIS, Ahmadi. After Afghanistan Withdrawal: A Return to ‘Warlordism? United States Institute for Peace.  Disponível em https://www.usip.org/publications/2021/06/after-afghanistan-withdrawal-return-warlordism . Acesso em 30 de agosto de 2021.

CASTRO VIEIRA, Danilo. Política Externa norte-americana no Oriente Médio e o Jihadismo. Editora Appris. Curitiba, PR. 2019.

__________. Irmandade Muçulmana. Editora Appris. Curitiba, PR. 2021.

GOMES FILHO, Paulo. Vinte anos de Guerra no Afeganistão. Blog do Paulo Filho. Brasília, DF. 2021. Disponível em https://paulofilho.net.br/2021/08/09/vinte-anos-de-guerra-no-afeganistao/. Acesso em 28 de agosto de 2021.

__________.  Cemitério de Impérios. Blog do Paulo Filho. Brasília, DF. Disponível em https://paulofilho.net.br/2021/08/21/cemiterio-de-imperios/ . Acesso em 26 de agosto de 2021.

HELF, Gavin e BARMAK Pazhwak. Central Asia prepares for Taliban takeover. United States Institute for Peace.  Disponível em https://www.usip.org/publications/2021/07/central-asia-prepares-taliban-takeover . Acesso em 30 de agosto de 2021.

UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Afghanistan Opium Survey 2020 Cultivation and Production ‒ Executive Summary. Disponível em https://www.unodc.org/unodc/en/frontpage/2021/May/afghanistan_-37-per-cent-increase-in-opium-poppy-cultivation-in-2020–while-researchers-explore-novel-ways-to-collect-data-due-to-covid-19.html