Na guerra vale tudo?



Todas as guerras são baseadas no logro. Portanto, quando capazes de atacar, devemos parecer incapazes, ao usarmos as nossas forças, devemos parecer inativos, quando estivermos próximos, devemos parecer distantes e quando distantes, devemos parecer próximos.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 1

Quem faz injuria vil e sem razão,

Com forças e poder em que está posto

Não vence, que a vitória verdadeira

É saber ter justiça nua e inteira

 

Camões. Os Lusíadas, Canto X, estrofe LVIII

 

O jornal The New York Times, em sua edição de 03 de fevereiro, publicou uma reportagem citando autoridades norte-americanas que, sem serem identificadas, afirmaram que a Rússia estava planejando divulgar um vídeo falso no qual seria mostrado um ataque ucraniano em território russo ou um ataque contra a comunidade étnica russa das regiões separatistas no leste da Ucrânia.

Esse tipo de operação, já utilizada muitas vezes ao longo da história em guerras passadas, em inglês recebem o nome de false flag operations[1].

Trata-se de atuar militarmente contra um objetivo e atribuir essa operação ao inimigo, com a finalidade de criar um pretexto para a reação – um casus belli[2] – legitimando-a aos olhos da comunidade internacional e perante seu próprio público interno.

É, evidentemente, uma ação realizada muito abaixo da linha da ética. Por essa razão, nos casos já documentados na história, dificilmente o Estado assume sua prática.

A Segunda Guerra Mundial foi iniciada coma invasão da Polônia pela Alemanha. E o pretexto para a invasão foi uma famosa operação de bandeira falsa, a Operação Himmler, que leva esse nome em razão de ter sido criada por Heinrich Himmler.

A Operação Himmler teve vários episódios: assalto à estação de rádio de Gleitwitz (atualmente Gliwice na Polônia); ataque à estação aduaneira de Hochlinden; e ataque à estação de serviço florestal de Pitschen.

O principal foi o assalto à estação de rádio de Gleitwitz (a cerca de 4 Km da então fronteira com a Polônia). Por volta das 20 horas do dia 31 de agosto de 1939, um pequeno grupo de seis agentes alemães das SS, vestidos com uniformes poloneses e liderado por Alfred Naujocks, atacou a estação de rádio de Gleiwitz e transmitiu uma curta mensagem antialemã, em polonês, afirmando que a rádio estava nas mãos dos poloneses. Os alemães deixaram os corpos de alguns poloneses fardados no local ao mesmo tempo em que as emissoras de rádio alemãs noticiaram o incidente na fronteira, relatando a invasão e a reação da polícia alemã, que teria matado os poloneses. Em Londres, a BBC retransmitiu a informação. No dia seguinte, Hitler usou o “incidente” como pretexto para iniciar a invasão da Polônia e a II Guerra Mundial.

Sugestão de leitura – compre na Amazon

A invasão japonesa da Manchúria chinesa, em 1931, também foi uma operação de bandeira falsa. Em setembro de 1931, forças japonesas detonaram uma pequena quantidade de explosivos perto de uma linha férrea de propriedade de uma empresa japonesa, a South Manchuria Railway, nas proximidades de Mukden – atualmente Shenyang. A explosão não causou danos relevantes, e um trem passou pelo local sem problemas, minutos depois. Entretanto, o Exército japonês acusou chineses do ato e desencadeou a invasão que levou à ocupação da Manchúria, na qual o Japão estabeleceu seu estado fantoche de Manchukuo, seis meses depois. A operação foi exposta internacionalmente, levando o Japão ao isolamento diplomático e sua retirada da Liga das Nações em março de 1933.

Em setembro de 2003, o jornal The Guardian divulgou documentos em uma reportagem que mostrava a existência de um plano secreto, elaborado em 1957, de forma conjunta pelos serviços secretos britânico, o MI-6, e norte-americano, a CIA, para criar falsos incidentes na fronteira da Síria, a fim de criar um levante para derrubar o regime sírio. O plano não foi executado, por falta de apoio dos vizinhos árabes da Síria.

Em 26 de novembro de 1939, a União Soviética realizou disparos com sua própria artilharia contra a vila soviética de Mainila, acusando os finlandeses de terem efetuado os tiros. Assim, forjou o casus belli que desencadeou a Guerra do Inverno, contra a Finlândia.

Como disse Platão, somente os mortos verão o fim das guerras. O fenômeno acompanha a história humana desde tempos imemoriais e assim permanecerá por muito tempo. Entretanto, até as guerras, um ato de suprema violência, têm suas regras no Direito Internacional Humanitário (DIH), constantes nas convenções de Genebra e seus protocolos adicionais, além de outros tratados internacionais. Igualmente importantes são as normas não-escritas, consuetudinárias, vigentes por usos, tradições, convenções e costumes de honradez.

As operações de bandeira falsa são condenáveis sob todos os aspectos. Do ponto de vista do DIH, podem configurar crimes de guerra, enquadrados no artigo 8º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional: VII) utilizar indevidamente uma bandeira de trégua, a bandeira nacional, as insígnias militares ou o uniforme do inimigo ou das Nações Unidas, assim como os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, causando deste modo a morte ou ferimentos graves.

Do ponto de vista moral, causam a repulsa de toda a comunidade internacional. Estratagemas para enganar o inimigo, como recomenda Sun Tzu no cabeçalho deste texto, sempre existiram, e sempre existirão. São exemplos notórios o cavalo de troia e o exército fictício comandado por Patton posicionado de modo a enganar os alemães sobre o local de desembarque no dia D, na II Guerra Mundial. Coisa completamente diferente é atuar de forma pérfida, desleal e traiçoeira, criando um casus belli falso.

Conheça a lista de desejos do blog na Amazon

Afinal, as causas que justificam a guerra, como a legítima defesa contra uma agressão, a intenção moralmente correta, o fato de ser o último recurso e de ser travada para evitar um mal maior são os critérios que fazem com que os povos aceitem pagar o altíssimo preço de participar de um conflito armado.

Por tudo isso, a acusação feita à Rússia de que ela estaria preparando uma operação de bandeira falsa para forjar um casus belii é gravíssima. Se concretizada, por qualquer dos lados, certamente causará enorme repulsa internacional.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!

[1] Na falta de uma tradução consagrada para a expressão, neste artigo vou usar “operação de bandeira falsa”.

[2] Na terminologia bélica, casus belli é uma expressão latina para designar um fato considerado suficientemente grave pelo Estado ofendido, para declarar guerra ao Estado supostamente ofensor.




O Irã e o acordo nuclear



Enquanto o mundo está com suas atenções voltadas para a escalada de tensões na Ucrânia, em razão da concentração de tropas russas na fronteira entre os dois países, as negociações para a retomada do acordo nuclear entre o Irã e as potências globais, retomadas em maio de 2021, continuam em andamento.

Reino Unido, China, França, Alemanha e Rússia tentam negociar a retomada de um acordo que limite as atividades nucleares iranianas. Os EUA não participam diretamente das reuniões, mas acompanham os trabalhos de perto. Após oito rodadas de negociações, os países foram incapazes de chegar a um acordo.

Para entender como a situação chegou ao ponto atual, é necessário relembrar o desenrolar dos acontecimentos. Em 14 de julho de 2015, Irã, EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha celebraram um acordo, o Joint Comprehensive Plan of Action (JCPA). O pacto foi ratificado pelo Conselho de Segurança da ONU e suas disposições passaram a ser verificadas pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

O acordo previa que o Irã reduziria em 98% suas reservas de urânio enriquecido, além de limitar o nível de enriquecimento do metal a 3,67%, o suficiente para ser usado nas usinas termonucleares, para geração de energia elétrica. Essa limitação se deve ao fato de que, para ser utilizado para a fabricação da bomba atômica, por exemplo, o Urânio-235 deve ser enriquecido a níveis superiores a 90%, em centrifugas organizadas em série, numa espécie de cascata, especificamente destinadas a esse fim.

O JCPOA impôs ainda diversas outras limitações na área de pesquisa e desenvolvimento nuclear ao Irã. Em contrapartida, foram levantadas todas as sanções econômicas que eram impostam ao país na época, que haviam custado cerca de US$ 160 bilhões ao país, apenas em receitas de petróleo. Assim, todas as sanções foram suspensas e o país pôde retomar a venda de petróleo nos mercados internacionais, reavendo o acesso a ativos no valor de US$ 100 bi, que estavam congelados no exterior.

Entretanto, em 2018, o presidente Trump abandonou o JCPOA, reimpondo todas as sanções norte-americanas ao Irã, em uma estratégia de “pressão máxima”, exigindo que o Irã reduzisse seu programa de mísseis balísticos e sua participação em conflitos regionais.

Mas o Irã se recusou a ceder e sua economia sofreu um duro golpe, com sua moeda atingindo o menor valor em décadas e a inflação subindo a níveis recordes. Em 2019, o Irã passou a violar o acordo, usando o argumento de que, como uma das partes havia violado antes, o país não estava mais obrigado a cumprir suas obrigações.

Além disso, o país adotou uma estratégia de escalar as tensões. Assim, naquele ano o Irã implementou – ou patrocinou – uma série de ações, como a sabotagem de navios petroleiros no Estreito de Ormuz, ataques a oleodutos e empresas petrolíferas na Arábia Saudita, apreensão de um petroleiro britânico e a derrubada de uma Aeronave Remotamente Pilotada norte-americana.

Em janeiro de 2020, foram os EUA que atuaram de forma impactante, eliminando o General Qassim Suleimani, poderoso comandante da Guarda Revolucionária Iraniana, quando este se encontrava em visita ao Iraque.

Sugestão de leitura – compre o livro na Amazon

Autor –  Samy Adghirni

A difícil condição econômica do Irã deu ainda maior impulso à aproximação com a China, que remonta a década de 1980, durante a guerra contra o Iraque. Assim, em 2021 os persas foram aceitos na Organização para Cooperação de Xangai, além de ampliarem a participação do país em investimentos relacionados à Iniciativa Cinturão e Rota , ou nova Rota da Seda. No último dia 14 de janeiro, em uma reunião realizada na China, os ministros das Relações Exteriores da China, Wang Yi e do Irã, Hossein Amirabdollahian afirmaram que um acordo de cooperação nas áreas de energia e infraestrutura, válido por 25 anos, assinado no ano passado, estava sendo oficialmente implementado. Tal aproximação é vista como uma das razões pelas quais a China já não se sente tão pressionada pelas sanções comerciais do ocidente como no passado. Afinal, a China, não aderindo às sanções, serve como uma válvula de escape para a combalida economia iraniana.

Ignorando as limitações impostas pelo JCPOA, o Irã, em novembro de 2021, já havia acumulado um estoque de urânio enriquecido que era muitas vezes maior do que o permitido, estocando pelo menos 17,7 kg de metal enriquecido com 60% de pureza, aproximando-se do nível necessário para a fabricação da bomba. Também havia instalado mais centrífugas, de um tipo mais avançado e produzido uma liga de urânio metálico enriquecido, um material chave para a fabricação de armas nucleares. Além disso, o país também restringiu significativamente o acesso de inspetores internacionais às instalações do país, ao interromper o cumprimento do previsto pelo Protocolo Adicional de seu Acordo de Salvaguardas da AIEA.

Desta forma chegamos à situação atual, na qual as negociações para a retomada de um acordo nuclear se arrastam, com o Ocidente alertando que o prazo final, aquele depois do qual as condições necessárias ao desenvolvimento da arma atômica pelos iranianos já terá sido alcançado, se aproxima rapidamente.

Resta saber qual será a postura a ser adotada por EUA, Israel, Arábia Saudita e demais potências regionais e mundiais caso tal condição se estabeleça. A questão nuclear iraniana está em aberto, e será um dos maiores focos de tensão geopolítica no decorrer de 2022.

Se você gosta do nosso trabalho, considere colaborar com o blog. Acesse www.paulofilho.net.br/apoieoblog

Conheça o curso Guerra na Ucrânia




Para entender a crise na Ucrânia

A crise na Ucrânia está em todos os noticiários internacionais, em razão de sua importância e da possibilidade de a situação se agravar, dando origem a um conflito de grande intensidade em território europeu.

Neste artigo, faço uma compilação de todas as informações que publiquei sobre o assunto, no meu blog e no twitter, de modo a tentar reunir em um único texto todo o desenrolar dos acontecimentos. Na conclusão, arrisco alguns possíveis desdobramentos.

A Ucrânia está no centro de uma crise que ameaça escalar para um confronto militar entre ucranianos e russos, com risco de transbordamento para outros países, o que seria gravíssimo para a estabilidade da Europa e do mundo. Mais do que uma simples disputa entre ucranianos e separatistas na região de Donbas, localizada no leste da Ucrânia e fronteira com a Rússia, os acontecimentos mostram o confronto entre duas visões de mundo. De um lado, europeus ocidentais e norte-americanos, que enxergam na Ucrânia um jovem país soberano que tenta trilhar o caminho apontado pelas democracias liberais europeias, desvencilhando-se da Rússia depois do esfacelamento da União Soviética. De outro, a Rússia, que vê a Ucrânia como um território historicamente ligado à sua própria nacionalidade, um país fundamental para sua visão geopolítica, que deve ser mantido sob sua esfera de influência sob pena de ver os adversários europeus e norte-americanos demasiadamente próximos de Moscou.

Para entender como se chegou à situação atual, é importante recapitular alguns acontecimentos.

O primeiro grande império do leste europeu foi o Principado de Kiev, atual capital da Ucrânia, surgido no século IX. Sua população era constituída por uma mistura de Vikings escandinavos, que chegavam do Norte pelos rios, e pelos eslavos orientais, nativos da própria região. A pobreza do solo logo obrigou essas populações a buscarem novas terras, expandindo o território e delineando um império. Como explica Robert Kaplan, em A Vingança da Geografia, a Rússia, como conceito geográfico e cultural nasceu do Principado de Kiev.

Figura 1 – Principado de Kiev / Fonte Wikipedia

Em permanente luta contra os nômades das estepes, no século XIII o principado foi devastado pelos mongóis comandados por Batu Khan, neto de Gengis Khan. A partir daí, com o passar do tempo, a história russa foi paulatinamente se deslocando para o Norte, até ficar centrada em Moscou, já no final da Idade Média.

Após a invasão mongol, o território onde hoje está a Ucrânia foi dominado por lituanos e poloneses. Em 1648, uma grande rebelião cossaca acabou por levar à partilha do território ucraniano entre russos e poloneses. Com a partilha da Polônia, no final do século XVIII, o território ucraniano é novamente dividido, agora entre russos e austríacos.

Os colapsos dos impérios russo e austríaco, bem como a revolução russa, no início do século 20, deram espaço ao ressurgimento de movimentos nacionalistas ucranianos, que buscavam a independência. Entretanto, em 1919, a Ucrânia foi incorporada à União Soviética.

O colapso da União Soviética, em 1991, permitiu a independência da Ucrânia. No plebiscito realizado naquele ano, 90% dos ucranianos se posicionaram favoravelmente à separação, incluindo-se aí 80% da população da região de Donbass e 54% dos votantes da Crimeia, península com grande população russa, reanexada ao território russo em 2014.

O fim da URSS foi seguido por uma significativa expansão da OTAN em direção às fronteiras russas. Entre 1999 e 2020, a Aliança incorporou vários países da Europa central e de leste, muitos deles antigos estados comunistas: República Tcheca, Hungria, Polônia, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte. A União Europeia seguiu os passos da OTAN, estendendo sua fronteira para o leste para incluir uma série de ex-repúblicas soviéticas e aliados, incluindo os Estados bálticos, República Tcheca, Hungria, Polônia, Eslováquia e Eslovênia.  Essa expansão foi um choque para as lideranças russas, que esperavam que, em troca do apoio dado aos norte-americanos na invasão do Afeganistão após o 11 de Setembro, os EUA se mantivessem fora do que a Rússia considerava ser sua esfera de influência, os antigos Estados integrantes da URSS. O presidente Putin se sentiu pessoalmente afrontado.

Figura 2 – Expansão da OTAN / Fonte Wikipedia

Os ucranianos permaneceram em uma espécie de limbo, entre o ocidente e a Rússia. No final de 2004, multidões saíram às ruas, na chamada Revolução Laranja. Os manifestantes deixavam claro que desejavam que a Ucrânia ingressasse na União Europeia.

Em 2008, a Rússia invadiu a Geórgia, demonstrando que os Russos não estavam dispostos a admitir nenhum passo a mais da União Europeia ou da OTAN em direção às suas fronteiras.

Em 2013, uma nova onda de protestos varreu a Ucrânia, em razão da recusa do então presidente, Viktor Yanukovych, de assinar um acordo de associação do país à União Europeia. A situação se agravou, com o aumento da violência até que, em fevereiro de 2014, o Congresso destituiu o presidente Yanukovych e determinou a realização de eleições, que foram vencidas pelo candidato com uma plataforma pró-europeus.

Em 01 de março de 2014, antes mesmo da realização das eleições, a Rússia invadiu a Crimeia, península estratégica que mantém, em Sebastopol, a sede da armada russa na Mar Negro. Em 6 de março, o parlamento da Crimeia aprovou uma decisão no sentido de entrar para a Federação Russa e, em 18 de março, tal adesão foi ratificada pelas duas partes, apesar da Assembleia Geral das Nações Unidas ter votado uma resolução se opondo a tal adesão.

Em abril, grupos pró-Rússia na região de Donbas, no leste da Ucrânia, iniciaram uma guerra civil. Embora a Rússia não reconheça, é fato hoje incontestável que o país apoiou militarmente os separatistas, em uma ação típica de Guerra Híbrida, com soldados e equipamentos, mas também com Operações de Informação e Cibernéticas, o que impediu a Ucrânia de controlar a situação. Diversos países do ocidente impuseram sanções econômicas à Rússia em razão dessa interferência.

Figura 3 – Regiões da Ucrânia oriental. Note-se, no centro do país, cortando-o de norte a sul, o Rio Dnieper / Fonte Wikipedia

Em 2015 foram celebrados os Acordos de Minsk, proporcionando ao menos uma estrutura de diálogo entre as partes, mas a violência se manteve e mais de 13 mil vidas já foram perdidas nos combates.

Assim, chegamos ao momento atual, no qual os ucranianos e norte-americanos acusam os russos de já terem concentrado na fronteira cerca de 100 mil soldados e estarem planejando uma invasão com um efetivo de cerca de 175 mil militares, com blindados, artilharia e tudo mais necessário para invadir a Ucrânia já nos primeiros meses de 2022.

Os russos negam a intenção ofensiva, afirmando que quem está se preparando para uma ação armada são os ucranianos, que estariam planejando atacar a região de Donbas. O presidente Putin reiterou que há “linhas vermelhas” que não devem ser cruzadas pelo Ocidente, referindo-se claramente à integração da Ucrânia à União Europeia ou à OTAN.

Em meio à crise, os presidentes dos EUA, Joe Biden, e da Rússia, Vladimir Putin, reuniram-se em videoconferência no dia 07 de dezembro de 2021, para tratar do assunto.

Em seguida, no dia 17 de dezembro, os russos divulgaram uma proposta de acordo, com medidas para “garantir a segurança da Federação Russa e dos Estados membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte”[1].

No documento os russos listaram, basicamente, as seguintes exigências:

  1. Que a OTAN não posicione tropas em território de países que não pertenciam à OTAN em 1997, data em que a Aliança e a Rússia celebraram o “Ato de Relações Mútuas, Cooperação e Segurança”;
  2. o compromisso de não instalação de mísseis de curto e médio alcance, que tenham a capacidade de atingir o território russo;
  3. que a OTAN se comprometa a não aceitar nenhum novo membro, especialmente a Ucrânia e;
  4. que a OTAN se comprometa a não conduzir nenhuma atividade militar no território da Ucrânia, bem como em outros Estados da Europa Oriental, do Sul do Cáucaso e da Ásia Central. A Rússia assumiria o mesmo compromisso em faixa territorial correspondente do seu lado da fronteira.

Em seguida, entre 09 e 14 de janeiro de 2022, já conhecendo as exigências russas. EUA, OTAN e demais países europeus realizaram uma série de reuniões com os russos para tratarem da crise. Chama atenção o formato adotado para reunir as potências. Inicialmente, na segunda-feira, apenas russos e norte-americanos se reuniram. Na quarta-feira, foi a vez de os aliados da OTAN e, somente na quinta-feira, os 57 integrantes da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) tiveram a oportunidade de participar. Interessante notar que foi apenas nessa terceira reunião que Ucrânia e Rússia se sentaram à mesma mesa.

O fato das negociações terem sido iniciadas entre russos e norte-americanos, sem a presença de nenhum europeu, para tratar de um problema na Europa, causou muito desconforto no velho continente. Apesar dos representantes dos EUA reafirmarem várias vezes que nada seria decidido sem a participação da Europa e da própria Ucrânia, para os europeus ficou um sentimento de que eles estavam sendo ultrapassados nas tomadas de decisão. A ver, no futuro, se esse episódio deixará marcas nas relações entre norte-americanos e europeus.

O resultado das negociações não apontou para a solução do impasse. Os norte-americanos propuseram aos russos o agendamento de novas conversas. Os russos falaram em “beco sem saída”. Foi um resultado previsível, uma vez que parte das exigências russas são claramente incompatíveis com a própria natureza da aliança militar que congrega os principais países do Ocidente.

Os EUA e a OTAN reiteraram que a política de “portas abertas” da organização é inegociável. A Aliança considera que, como um país soberano, cabe somente à Ucrânia a decisão de solicitar a integração ao grupo e somente aos 30 membros da organização a decisão de aceitar ou não um novo membro. Isso elimina a possibilidade de a Rússia – ou qualquer outro país que não seja membro da Otan – vetar de antemão qualquer expansão da organização em qualquer direção.

O segundo ponto inegociável é a liberdade que a Aliança arroga de posicionar tropas e material de emprego militar no território de qualquer Estado-membro, a qualquer tempo, nas quantidades que julgar necessárias. Isso evidentemente inclui os 14 países, muitos deles ex-repúblicas soviéticas, que aderiram à OTAN entre 1999 e 2020.

Apesar de se posicionar de forma irredutível quanto aos dois aspectos acima, a OTAN deixou alguma margem de manobra em relação às propostas referentes ao posicionamento de mísseis de curto e médio alcance, bem como no que concerne à limitação de exercícios militares na porção leste da Europa, convidando o lado russo a agendar novas rodadas de negociações sobre esses pontos específicos.

Entretanto, os EUA e seus aliados europeus, embora tenham descartado uma atuação militar direta em território ucraniano, ameaçaram a Rússia de sanções econômicas “nunca vistas”, que fariam o país “pagar um alto preço pela invasão”, além de garantir que forneceriam armas, munições e materiais de emprego militar ao exército ucraniano, apoiando-o em uma eventual invasão.

Os russos, por sua vez, mostraram-se descontentes com os resultados das conversas, afirmando que as negociações não tinham avançado e que levavam a “um beco sem saída”. Entretanto, não fecharam as portas para futuras negociações.

Após a rodada de reuniões, os russos se mantiveram no controle dos acontecimentos, com uma série de ações e anúncios que se destinam, claramente, a manter a pressão sobre o Ocidente.

Já no dia seguinte ao fim das conversas, em 14 de janeiro, órgãos do governo e instituições privadas ucranianas foram alvos de um grande ataque cibernético, que tirou do ar inúmeras páginas eletrônicas e interrompeu diversos serviços. Embora a origem do ataque seja encoberta, é obvio que as suspeitas recaíram sobre os russos.

Divulgou-se que a Rússia faria novas manobras militares, sobre as quais não se tinha notícia anteriormente, em território de Belarus, país que faz fronteira com a Ucrânia pelo Norte e que é governado por Aleksandr Lukashenko, governante muito alinhado a Putin.

Outro anúncio foi o de que a marinha russa fará um enorme exercício, que envolverá todas as suas frotas, do Atlântico ao Pacífico, com cerca de 140 navios de guerra e embarcações de apoio, 60 aviões, e 10.000 militares, passando pelo Mar Mediterrâneo, Mar do Norte e Mar de Okhotsk, este último nas proximidades do Japão.

Ao mesmo tempo, Rússia, China e Irã divulgaram a realização de exercícios navais conjuntos, o terceiro da série, chamado “2022 Marine Security Belt”, no norte do Oceano Índico.

Outro fato que chamou atenção foi a grande diminuição do efetivo de diplomatas russos na embaixada do país em Kiev, capital da Ucrânia. A diminuição do corpo diplomático, com o retorno de suas famílias à Rússia, poderia indicar uma escalada da crise e a previsão de um conflito.

Houve ainda pronunciamentos de autoridades russas, dando a entender que poderiam aumentar a aproximação de países nas Américas, inclusive no campo militar, como Cuba e Venezuela. O presidente Putin inclusive divulgou uma conversa telefônica com o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, realizada em 20 de janeiro, expressando seu “apoio inabalável aos esforços das autoridades venezuelanas para fortalecer sua soberania”.

Foi nessas circunstâncias que no dia em que escrevo este artigo, 21 de janeiro, ocorreu novo encontro diplomático, dessa vez entre o Secretário de Estado Antony Blinken, dos EUA, e o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov. Após a reunião, divulgou-se que os EUA responderiam por escrito se aceitavam ou não as condições propostas pelos russos em 17 de dezembro de 2021, e que ambas as partes estariam dispostas a “prosseguir no diálogo”.

Interessante notar que ao longo de toda a crise, foi o lado russo que definiu o ritmo das negociações, impôs a pauta e tomou iniciativas. O lado Ocidental permaneceu o tempo todo na posição daquele que reagia, sem conseguir impor as negociações segundo seus próprios termos ou ritmo.

Assim, pode-se considerar que até este momento, Putin é, do ponto de vista político, o grande vencedor. Conseguiu obrigar os EUA, a OTAN e a Europa a se sentarem em uma mesa para negociar os seus próprios termos, mostrando, para os próprios russos e para a comunidade internacional, uma Rússia poderosa do ponto de vista político/militar. Uma potência que relembra o status soviético, dos tempos de guerra fria.

Tentar antever os próximos acontecimentos não é tarefa fácil. Mas são quatro os cenários que julgo possíveis, um em que não há emprego do poder militar e outros três em que ocorre a invasão:

  1. A Rússia arranca algumas garantias do Ocidente, públicas ou secretas, e desescala a crise, apresentando à sua população razões que demonstrem que ela atingiu seus objetivos e evitou uma guerra. Creio ser esse o cenário de maior probabilidade. Uma ação militar na Ucrânia traria enormes consequencias para os russos, e eles sabem disso.
  2. A Rússia adota ações militares de baixa intensidade e no campo da guerra híbrida, atuando fortemente com guerra cibernética e propaganda, ocupando apenas as regiões de Luhansk e Donetsk (ver figura 3), alegando estar atuando em defesa daquelas populações, majoritariamente russas étnicas.
  3. A Rússia atua militarmente de forma um pouco mais incisiva, também nas regiões de Zaporizhia e Kherson (ver figura 3), no sudeste do país, criando um corredor terrestre que uniria a Rússia até a Crimeia, o que seria um ganho importante do ponto de vista geoestratégico para o país.
  4. A Rússia invadiria a Ucrânia até o corte do rio Dnieper, que separa o país nas porções oriental e ocidental, tentando provocar a criação de um Estado-tampão na porção leste do país.

Ainda no arriscado campo das previsões, passemos a considerar as opções em que a Rússia decide empregar seu poder militar. Creio que, caso a opção escolhida fosse a de número 4, haveria uma forte reação militar da Ucrânia, apoiada decisivamente pela OTAN e alguns outros países europeus, como Suécia e Finlândia. Já as possibilidades de números 2 e 3 seriam apenas o agravamento da crise já em curso na Ucrânia desde 2014. Caso se efetivassem, provocariam as sanções comerciais norte-americanas e europeias, mas não muito mais do que isso.

Assim, na hipótese de emprego do poder militar, creio que as opções 2 e 3 sejam as mais prováveis.

É claro que as avaliações acima estão pautadas nas informações a que tive acesso até o momento em que escrevo este artigo, dia 21 de janeiro de 2022, exclusivamente pela imprensa. Outros fatos, dados e informações podem alterar consideravelmente os rumos dos acontecimentos.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!




As tensões na Ucrânia



Artigo primeiramente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 20/01/2022

Desde novembro do ano passado, o mundo tem assistido ao acirramento das tensões entre a Rússia, a Ucrânia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em razão da concentração de 100 mil soldados russos, com meios blindados, artilharia e helicópteros, nas proximidades da fronteira com a Ucrânia. Dados de inteligência ucraniana e da própria aliança atlântica alertaram que os russos estariam planejando uma invasão, que poderia acontecer a partir de fevereiro deste ano. A Rússia nega a intenção de desencadear a ofensiva militar.

O emprego de forças militares de vulto, em um ataque a um país europeu soberano, mudaria o cenário de segurança da Europa de uma forma ainda não vista desde a Segunda Guerra Mundial, com consequências graves para a própria Europa e para todo o mundo.

Os EUA e seus aliados europeus, embora tenham descartado uma atuação militar direta em território ucraniano, reagiram à concentração de forças, ameaçando a Rússia de sanções econômicas “nunca vistas”, que fariam o país “pagar um alto preço pela invasão”, além de garantir que forneceriam armas, munições e materiais de emprego militar ao exército ucraniano, apoiando-o em uma eventual invasão.

Sugestão de Leitura – Compre na Amazon

Autor – Steven Lee Myers

Em dezembro, os russos apresentaram suas exigências em um documento contendo uma proposta de tratado sobre “garantias de segurança”, entre a Rússia e os EUA. Na sequência, houve um encontro virtual entre os presidentes Putin e Biden e três reuniões foram agendadas para janeiro, as quais acabaram de ocorrer.

A primeira, somente entre os representantes dos EUA e da Rússia, a segunda, entre a Otan e a Rússia e a terceira, reunindo todos os 57 integrantes da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Interessante notar que foi apenas nessa terceira reunião que Ucrânia e Rússia tiveram oportunidade de se sentar à mesma mesa.

O resultado das negociações não apontou para a solução do impasse. Os norte-americanos propuseram aos russos o agendamento de novas conversas. Os russos falaram em “beco sem saída”. Foi um resultado previsível, uma vez que parte das exigências russas são claramente incompatíveis com a própria natureza da aliança militar que congrega os principais países do Ocidente.

As demandas russas são, basicamente, quatro: 1) que a Otan não posicione tropas em território de países que não pertenciam ao grupo em 1997, data em que a Aliança e a Rússia celebraram o “Ato de Relações Mútuas, Cooperação e Segurança”; 2) o compromisso de não instalação, pela Otan, de mísseis de curto e médio alcance em posições que os possibilitem atingir alvos em território russo; 3) que a Otan se comprometa a não se expandir para o leste, não agregando nenhuma ex-república soviética, especialmente a Ucrânia e; 4) que a Otan se comprometa a não conduzir nenhuma atividade militar no território ucraniano, bem como em outros Estados da Europa Oriental, do sul do Cáucaso e da Ásia Central. A Rússia assumiria o mesmo compromisso em faixa territorial correspondente do seu lado da fronteira.

Em resposta, os EUA e a Otan reiteraram que a política de “portas abertas” da Aliança é inegociável. A Aliança considera que, como um país soberano, cabe somente à Ucrânia a decisão de solicitar a integração ao grupo e somente aos 30 membros da organização a decisão de aceitar ou não um novo membro. Isso elimina a possibilidade de a Rússia – ou qualquer outro país que não seja membro da Otan – vetar de antemão qualquer expansão da organização em qualquer direção.

O segundo ponto inegociável é a liberdade que a Aliança arroga de posicionar tropas e material de emprego militar no território de qualquer Estado-membro, a qualquer tempo, nas quantidades que julgar necessárias. Isso evidentemente inclui os 14 países, muitos deles ex-repúblicas soviéticas, que aderiram à Otan entre 1999 e 2020.

Conheça minha lista de livros sugeridos na Amazon

Apesar de se posicionar de forma irredutível quanto aos dois aspectos acima, a Otan deixou alguma margem de manobra em relação às propostas referentes ao posicionamento de mísseis de curto e médio alcance, bem como no que concerne à limitação de exercícios militares na porção leste da Europa, convidando o lado russo a agendar novas rodadas de negociações sobre esses pontos específicos.

Os russos, por sua vez, mostraram-se descontentes com os resultados, afirmando que as negociações não tinham avançado e que levavam a “um beco sem saída”. Entretanto, não fecharam as portas para futuras negociações.

É importante notar que a simples realização das reuniões já pode ser considerada uma vitória para o presidente Putin. Ele conseguiu mostrar ao mundo – e aos próprios cidadãos russos – uma Rússia forte, uma potência militar que obrigou os EUA e a Otan a negociarem em termos escolhidos pelos russos. A iniciativa das ações continua em suas mãos, podendo escalar ou desescalar a crise ao seu bel-prazer, para grande infortúnio dos ucranianos, ameaçados há meses por um poderoso exército postado à porta da antiga Rus Kievana, origem primeira da atual Federação Russa. Um nó górdio para os diplomatas ocidentais desatarem nesse início de 2022.

Se você acha nosso trabalho relevante e quer contribuir com a manutenção do Blog, por favor, considere tornar-se um apoiador. 

Clique aqui e saiba mais




Russos, norte-americanos e europeus debatem o futuro da Ucrânia

Amanhã, 10 de janeiro de 2022, começam as negociações entre os EUA e seus aliados, de um lado, e a Rússia, de outro, sobre a questão ucraniana. As conversas foram propostas pelo lado russo, após concentrarem, ao longo do segundo semestre de 2021, cerca de 100 mil soldados, com artilharia, blindados e meios aéreos, do seu lado da fronteira com a Ucrânia, em uma escalada de tensões sem precedentes na Europa desde o término da Guerra Fria.

A Rússia se considera ameaçada pela existência de laços entre a OTAN e a Ucrânia, mesmo que esses sejam informais. Em razão disso vai exigir que os EUA e seus aliados atendam às chamadas “garantias de segurança”[1], uma lista de exigências que o país divulgou em dezembro como uma proposta de acordo, cujos tópicos principais são os seguintes:

  1. que a OTAN não posicione tropas em território de países que não pertenciam à OTAN em 1997, data em que a Aliança e a Rússia celebraram o “Ato de Relações Mútuas, Cooperação e Segurança”;
  2. o compromisso de não instalação de mísseis de curto e médio alcance, que tenham a capacidade de atingir o território russo;
  3. que a OTAN se comprometa a não aceitar nenhum novo membro, especialmente a Ucrânia e;
  4. que a OTAN se comprometa a não conduzir nenhuma atividade militar no território da Ucrânia, bem como em outros Estados da Europa Oriental, do Sul do Cáucaso e da Ásia Central. A Rússia assumiria o mesmo compromisso em faixa territorial correspondente do seu lado da fronteira.

Conheça a lista de livros que indico na Amazon

Com a possível exceção do tópico que diz respeito aos mísseis e do que veda exercícios militares, trata-se de um acordo inviável para os EUA e a OTAN.

No que diz respeito ao posicionamento de tropas da OTAN, é importante lembrar que, entre 1999 e 2021, a aliança incorporou vários países da Europa central e de leste, muitos deles antigos estados comunistas: República Checa, Hungria, Polônia, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte.

A anexação da Criméia pela Rússia, em 2014, motivou uma forte condenação dos países da OTAN e o envio de 5 000 soldados para bases militares na Estônia, Lituânia, Letônia, Polônia, Romênia e Bulgária.

A possibilidade de se desdobrar pessoal e meios militares em qualquer um dos 30 Estados membros da aliança está no cerne da finalidade da própria existência da OTAN, sendo evidente que abrir mão dessa possibilidade está fora de cogitação.

Embora tal expressão não seja usada pelos russos, o que se está a assistir é uma tentativa do governo do presidente Putin de se estabelecer uma “zona de influência” sobre a qual o ocidente se abstenha de atuar e cuja liderança caberia naturalmente aos russos.

É a isso que o presidente Putin se refere quando fala sobre as “linhas vermelhas” que não devem ser ultrapassadas pelos EUA ou pela OTAN.

Sugestão de leitura – Compre o livro na AmazonAutor – Steven Lee Myers

Os EUA e seus aliados, por sua vez, entram nas negociações já tendo declarado que os termos do acordo, como estão propostos, não podem ser aceitos. Eles parecem estar dispostos a demonstrar ao lado russo que uma eventual invasão da Ucrânia custaria caro. A reação do ocidente não se daria no campo militar, uma vez que os EUA já descartaram a utilização de tropas na defesa da Ucrânia. Entretanto, os ucranianos seriam apoiados militarmente com suprimentos, armas e munições. Além disso, seriam impostos embargos econômicos nunca vistos, que vão desde a proibição de exportação de itens tecnológicos produzidos nos EUA ou cuja tecnologia pertença ao país, até a imposição de barreiras ao fluxo financeiro internacional, como a vedação do acesso dos russos ao sistema SWIFT de transferências financeiras internacionais. Dessa forma, os EUA e a OTAN querem dissuadir os russos, mostrando que o preço de uma eventual invasão seria altíssimo e que a resistência ucraniana, financiada pelo Ocidente, poderia perpetuar-se indefinidamente, em uma guerra altamente desgastante para a Rússia.

Para complicar ainda mais as negociações, elas ocorrerão em pleno desenvolvimento da crise no Cazaquistão, para onde os russos e seus aliados da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) enviaram tropas em socorro do governo aliado à Moscou, no enfrentamento dos violentos protestos que explodiram naquele país.

A crise no Cazaquistão[2], quando somada à que ocorreu em Belarus, em 2020, ambas ex repúblicas soviéticas, fronteiriças à Rússia e de grande importância para o país, pode aumentar nos russos a sensação de que estão sendo pressionados em mais de uma frente, e de que precisam agir na Ucrânia antes que seja tarde.

Semana que vem pode ser uma semana decisiva, não só para a Ucrânia, mas também para a Europa e para o futuro das relações entre as duas maiores potências militares do planeta.

[1] Leia o documento em https://mid.ru/ru/foreign_policy/rso/nato/1790803/?lang=en&clear_cache=Y

[2] Sobre essa crise leia o artigo Crise no Cazaquistão, em https://paulofilho.net.br/2022/01/06/crise-no-cazaquistao/




Crise no Cazaquistão

O Cazaquistão é uma ex república soviética, localizada na Ásia Central que, da mesma forma que as demais repúblicas daquela região, Quirguistão, Tadjiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão, se tornou independente com a implosão da União Soviética, em 1991.

É um país de enorme extensão territorial e pequena população. Seus primeiros habitantes eram nômades que, no século XIII, foram subjugados pelo exército mongol liderado por Gengis Khan, que conquistou toda a região. Com o fim do império mongol, os cazaques surgiram como um grupo étnico distinto. A partir do século XVIII, os russos começaram a avançar pelas estepes do país e, no século XIX, todo o território já integrava o império russo. Com o advento da revolução russa e do surgimento da União Soviética, o Cazaquistão passou a integrar o país comunista.

Desde sua independência, o Cazaquistão teve apenas dois presidentes. O primeiro, Nursultan Nazarbayev, manteve-se no poder de 1991 até 2019, quando foi obrigado a renunciar em razão da pressão popular e das manifestações que mostravam grande descontentamento popular contra seu governo. Assumiu, então, o atual presidente, Kassym-Jomart Tokayev, político alinhado a Nazarbayev.

Conheça os livros que indico, Amazon

O islamismo é a religião de cerca de 75% da população, enquanto o cristianismo é praticado por 21% dos habitantes. A economia é fortemente baseada na exploração dos recursos minerais, em especial o petróleo, o gás natural e os minérios, com destaque para o Urânio.

A grave crise social que o país enfrenta foi deflagrada no dia 02 de janeiro, na cidade de Zhanaozen. Rapidamente os protestos ganharam o país, se espalhando para outras cidades petrolíferas até chegar à maior cidade cazaque, Almaty e à capital, Nur-Sultan. Não por acaso, a atual insatisfação popular explodiu na mesma cidade de Zhanaozen onde uma greve de petroleiros, em 2011, também explodiu em violência, resultando na morte de 14 petroleiros em confrontos com a polícia, além de mais de uma centena de feridos.

A motivação inicial dos protestos em curso foram os altos preços do Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), que é usado como combustível em grande parte dos automóveis do país. Mas rapidamente as reivindicações dos manifestantes se ampliaram, ganhando pautas políticas, que passaram a exigir a queda dos principais governantes do país. Nazarbayev, o presidente que renunciou em 2019, mas que é visto como a grande eminência parda do governo, tornou-se o principal alvo dos manifestantes.

Sugestão de livro – O coração do mundo: Uma nova história universal a partir da rota da seda: o encontro do oriente com o ocidente

Autor – Peter Frankopan

A reação do presidente aos protestos, inicialmente, foi de oferecer concessões, restaurando subsídios ao GLP e demitindo o primeiro-ministro e seu gabinete. Mas em apenas três dias, com os protestos espalhados pelo país e a pauta dos manifestantes passando a exigir a mudança de governo, a reação subiu muito de tom. O presidente decretou Estado de Emergência e passou a acusar “gangues terroristas internacionais” de estarem por trás das manifestações. As forças de segurança passaram a enfrentar os manifestantes com armas de fogo e os mortos e feridos já são contados nas casas das centenas. A internet e as redes sociais foram derrubadas pelo governo e a comunicação com o restante do mundo passou a ser bem mais restrita. Os manifestantes também aumentaram a violência, com depredação e invasão de prédios públicos, incêndios e ataques a integrantes das forças de segurança. Há relatos, inclusive, de que os manifestantes teriam se apossado de armas de fogo e munições encontradas em instalações militares e policiais invadidas.

O governo acionou a Organização para o Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), uma aliança militar que reúne a Rússia e cinco de suas ex repúblicas: o próprio Cazaquistão, Armênia, Belarus, Quirguistão e Tadjiquistão. Baseado no artigo 4 do tratado que regula a Aliança os países decidiram[1] “enviar forças de manutenção da paz coletiva da OTSC para a República do Cazaquistão, por um período limitado de tempo, a fim de estabilizar e normalizar a situação neste país”. A decisão apontou ainda a “ameaça à segurança nacional e à soberania da República do Cazaquistão causada por interferência externa”. Dessa forma, nesse momento a Rússia está enviando um contingente de cerca de 3 mil soldados, aos quais se somarão efetivos de outros países da OTSC.

O desenrolar dos acontecimentos definirá os destinos políticos do Cazaquistão, mas hoje parece ser bastante improvável que os manifestantes alcancem o objetivo de derrubar o governo. O caso de Belarus, também uma ex república soviética, em 2020, guarda semelhanças interessantes. Aquele país foi sacudido por violentos protestos contra o presidente Lukashenko, acusado de fraudar as eleições para se perpetuar no poder. A repressão foi violenta e a Rússia apoiou decisivamente o presidente, ameaçando inclusive mandar tropas em seu socorro. A situação foi controlada e o que se assiste hoje é um alinhamento ainda maior entre Minsk e Moscou. Creio que, no Cazaquistão, o resultado dos acontecimentos em curso será bastante semelhante ao caso de Belarus. É bastante provável que, ao fim de tudo, Tokayev ainda esteja em seu gabinete no Palácio Ark Oda, a imponente sede do governo do Cazaquistão e que seu país esteja ainda mais alinhado aos interesses políticos, econômicos e militares russos na Ásia Central.

[1] Decisão disponível, no idioma russo, na página da Aliança em https://odkb-csto.org/news/news_odkb/zayavlenie-predsedatelya-soveta-kollektivnoy-bezopasnosti-odkb-premer-ministra-respubliki-armeniya-n/#loaded




As mudanças climáticas e a disputa pelo Ártico



As mudanças climáticas causam grande apreensão nos pequenos países insulares que, devido à elevação dos níveis dos oceanos, veem seus territórios diminuírem aceleradamente, ao mesmo tempo em que a água potável se torna cada vez mais escassa[1]. Essa grave realidade por um lado se apresenta como uma ameaça à própria existência daqueles Estados, por outro, não mobiliza as grandes potências globais para além de discursos e declarações de boas intenções, ou ajudas econômicas pontuais.

No Ártico, entretanto, as mudanças climáticas vem ensejando uma série de movimentos das grandes potências, em especial Rússia, China e Estados Unidos, que correm para se posicionar de forma vantajosa na competição pela exploração dos recursos minerais e rotas comerciais que surgem em razão da diminuição do gelo e da neve no Oceano Glacial Ártico.

Oceano Ártico

A Rússia naturalmente parte na frente. O litoral ártico do país é de mais de 24 mil quilômetros. Apenas para que se possa ter uma ideia dessa dimensão, trata-se de uma extensão maior do que o triplo do litoral atlântico do Brasil. Para tentar explorar comercialmente essa vantagem, os russos inauguraram, em 1935, de forma regular, a chamada Rota Norte, em que os navios trafegavam do Oceano Atlântico para o Pacífico, e vice-versa, costeando o litoral ártico russo. A rota encurtava em milhares de milhas náuticas o caminho entre a Europa Ocidental e os portos japoneses e chineses, tradicionalmente feita pelo sul da África e pelo canal de Suez. Mas, o gelo e as condições muito difíceis de navegação aumentavam muito os riscos de transporte e a rota funcionava quase exclusivamente entre os meses de agosto e outubro de cada ano.

O colapso da União Soviética, ao qual se seguiu uma grave crise econômica na Rússia, fez com que a Rota fosse praticamente abandonada. Somente a partir da segunda década deste século, a rota voltou a ser explorada pelos russos. Contribuíram para isso o desenvolvimento de modernas ferramentas de apoio à navegação, que aumentaram em muito a segurança da rota, navios quebra-gelo mais modernos, inclusive com propulsão nuclear e, sobretudo, o aquecimento das águas do Oceano Ártico, que passou a ser navegável em uma área cada vez maior e por um período mais largo a cada ano até que, em fevereiro de 2021, um grande navio comercial de carga completou a rota em pleno inverno. Em 2020, cerca de 33 milhões de toneladas de carga foram transportadas pela Rota Norte, quase seis vezes mais do que em 2015. Os russos pretendem aumentar esse volume para 80 milhões de toneladas até 2024 e 130 milhões até 2035.

Comparação entre a Rota Norte (vermelho) e a Rota por Suez (Azul)

Mas a exploração da Rota Norte não é o único interesse econômico no Ártico. Estima-se que a região contenha reservas de 90 bilhões de barris de petróleo e cerca de 1/5 de todo o gás natural do planeta, além de metais preciosos e terras-raras, essas últimas usadas na produção de equipamentos de alta tecnologia.

No campo militar, os russos têm aumentado significativamente sua presença e os exercícios militares na região. Em março de 2021, três submarinos russos quebraram simultaneamente o gelo perto do Polo Norte.  Os submarinos logo se juntaram a duas aeronaves MiG-31 e tropas terrestres que participavam do Umka-2021[2] , um exercício militar russo.

Tudo isso atrai a atenção não só de russos e canadenses, os dois maiores países árticos, mas também de norte-americanos que, pelo Alaska, também fazem parte do clube, além de dinamarqueses, islandeses, noruegueses, finlandeses, suecos e… chineses.

Em janeiro de 2018, a China divulgou sua “Política para o Ártico”[3]. Nela, a China afirma que a região tem uma importância estratégica e econômica global, tendo uma “influência vital nos interesses de Estados de fora da região e na comunidade internacional como um todo, bem como na sobrevivência, no desenvolvimento e no futuro compartilhado de toda a humanidade”.

No documento, os chineses reconhecem que seu país, por não ser um “Estado Ártico”, não possui soberania territorial na região. Lembram, entretanto, que de acordo com tratados internacionais todos os países têm direitos em relação à pesquisa científica, navegação, sobrevoo, pesca, colocação de cabos submarinos e oleodutos no alto mar e outras áreas marítimas relevantes no Ártico, além de direitos de exploração e aproveitamento de recursos na área.

A China propõe o estabelecimento de uma “Rota da Seda Polar”, que se integraria aos projetos da Iniciativa Belt and Road de financiamento de obras de infraestrutura de transportes, além de manifestar interesse em participar das rotas marítimas, da exploração dos recursos minerais, participar da pesca na região, do turismo e da própria governança do Ártico.

Em 2019, um ano após os chineses divulgarem sua política, foi a vez do Departamento de Defesa dos EUA divulgar sua Estratégia para o Ártico[4]. O documento identifica na crescente competição estratégica com China e Rússia, o principal desafio à segurança e à prosperidade dos EUA. O país demonstra como principais preocupações dissuadir qualquer ataque militar aos EUA vindo da região ártica e impedir que a China ou a Rússia tornem-se hegemônicas na região, impondo suas regras à comunidade internacional no que se refere ao Ártico.

Em complemento ao documento do Departamento de Defesa, Exército[5], Marinha[6] e Força Aérea[7] elaboraram suas próprias estratégias. O exército, por exemplo, divulgou em janeiro de 2021 o documento Regaining Artic Dominance no qual apresenta uma série de medidas para “mobiliar com pessoal, treinar, equipar, e organizar suas forças para vencer no Ártico.” Dentre essas medidas, está o desdobramento de uma “Força Tarefa Multidomínio”, de valor Divisão de Exército, com cerca de 15 mil soldados, no Alaska, como forma de reorganizar suas forças dedicadas especificamente àquela região.

A competição estratégica que tem se intensificado nos últimos anos entre EUA, Rússia e China é travada em diferentes campos, desde o econômico até o militar, mas também no científico/tecnológico, espacial, cibernético ou mesmo no cultural, na busca pela conquista da simpatia e da liderança, tentando atrair os demais membros da comunidade internacional para sua esfera de influência.

Conheça a lista de livros que indico na Amazon

A disputa ocorre com maior ou menor intensidade em diversas regiões do globo, como Ucrânia, Taiwan, Mar do Sul da China ou Oriente Médio. Nesse grande jogo, Rússia e China tem estado normalmente do mesmo lado, quer como parceiros declarados, quer ocupando uma posição de neutralidade que seja benéfica a ambos. Sempre, porém, antagonizando os EUA.

Entretanto, no caso do Ártico, é bastante provável que os interesses russos e chineses sejam divergentes e que esses atores caminhem de forma independente na busca de salvaguardar seus próprios interesses. Nesse caso, as mudanças climáticas responsáveis pelo derretimento da calota polar ártica terão disparado o gatilho de uma acirrada disputa geopolítica entre as três maiores potências militares do planeta.

 

[1] Veja o caso emblemático de Tuvalu, em reportagem da BBC – https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59480079

[2] Saiba mais em https://www.navalnews.com/naval-news/2021/04/arctic-exercise-umka-2021-shows-russian-ssbn-can-deliver-massive-strike/

[3] Disponível em http://english.www.gov.cn/archive/white_paper/2018/01/26/content_281476026660336.htm

[4] Disponível em https://media.defense.gov/2019/Jun/06/2002141657/-1/-1/1/2019-DOD-ARCTIC-STRATEGY.PDF

[5] Disponível em https://api.army.mil/e2/c/downloads/2021/03/15/9944046e/regaining-arctic-dominance-us-army-in-the-arctic-19-january-2021-unclassified.pdf

[6] Disponível em https://media.defense.gov/2021/Jan/05/2002560338/-1/-1/0/ARCTIC%20BLUEPRINT%202021%20FINAL.PDF/ARCTIC%20BLUEPRINT%202021%20FINAL.PDF

[7] Disponível em https://www.af.mil/Portals/1/documents/2020SAF/July/ArcticStrategy.pdf




O Irã e os desafios para a paz mundial em 2022



A julgar pela quantidade de crises já instaladas nos últimos dias de 2021, não faltará assunto nos campos da política internacional, da geopolítica e dos assuntos de Defesa em 2022.

Afinal, 2021 foi o ano em que as tensões entre europeus e russos atingiram níveis só comparáveis aos da Guerra Fria, os EUA protagonizaram uma retirada caótica no Afeganistão, as tensões entre China e EUA cresceram, Iêmen e Etiópia continuaram enfrentando graves guerras em seus territórios. Houve ainda o assassinato do presidente do Haiti, quatro golpes de estado exitosos em países da África (Sudão, Mali, Guiné e Chade), além do golpe em Mianmar e da crise dos refugiados, que continua a afetar todos os continentes, apenas para citar os eventos mais significativos. Isso tudo em meio à continuidade da pandemia da Covid-19.

Sugestão de livro – compre na Amazon

Autor – Samy Adghirni 

Não faltam, portanto, focos de tensão a desafiar as lideranças mundiais a encontrarem soluções que preservem a paz. Neste artigo vou tratar apenas de um caso, em razão da sua potencialidade em se transformar em uma crise de enormes proporções: a questão nuclear no Irã. Em 2015, o Irã e um grupo de países formado por EUA, Rússia, China, França, Alemanha e Reino Unido, além da União Europeia, assinaram um acordo, o Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA).  Naquele momento, em troca de suavizações de sanções que estavam impostas pela comunidade internacional ao país, o Irã concordava em reduzir significativamente suas atividades na área nuclear, dentre outras medidas, pela limitação de sua produção de urânio enriquecido, em quantidades e nível de enriquecimento, além de aceitar submeter-se às inspeções internacionais em suas instalações nucleares. Esta era uma medida fundamental para que a comunidade internacional pudesse se assegurar de que o Irã não desenvolveria tecnologia nuclear para fins militares, uma vez que o urânio é um dos elementos químicos que, quando enriquecido a níveis superiores a 90%, se torna componente fundamental para a fabricação de bombas atômicas.

Em 2018, o presidente Trump retirou os EUA do acordo nuclear e reimpôs uma série de sanções ao Irã. Em 09 de janeiro de 2020, neste Espaço Aberto[1], escrevi sobre as consequências dessa decisão. Mas, ao se analisar os resultados, parece claro que as medidas adotadas pelo presidente Trump, ao reimpor as sanções, não surtiram o efeito que se esperava, pelo contrário, o Irã se sentiu desobrigado a cumprir os termos do acordo e hoje o país está muito mais próximo do desenvolvimento do armamento nuclear do que estava em 2018.

Durante 2021, as negociações entre os países que se mantiveram no JCPOA e o Irã foram retomadas, mas os avanços têm sido bastante limitados. Os europeus exigem velocidade nas negociações, em razão dos rápidos avanços obtidos pelo Irã em seu programa nuclear. De acordo com um relatório de 17 de novembro último, da Agência Internacional de Energia Atômica, o estoque de urânio enriquecido a 20% do Irã é de 114 Kg, acima dos 85 Kg documentados no relatório anterior da agência, publicado em 7 de setembro. Já a 60% de enriquecimento, seriam 17,7 kg, também acima dos 10 kg apontados no relatório anterior. O mesmo documento informa que o país instalou centrífugas mais avançadas, que podem enriquecer urânio de forma mais eficiente.

Os iranianos, acusados de estarem deliberadamente ganhando tempo nas negociações, afirmam que não têm o objetivo de utilizar a tecnologia nuclear para fins bélicos. Mas o fato é que, após alcançar o nível de 60% de enriquecimento, chegar aos 90% que permitiria a fabricação da bomba parece ser apenas uma questão de (cada vez menos) tempo.

Conheça minha lista de livros sugeridos na Amazon

O governo de Israel tem manifestado preocupação com a aceleração do programa nuclear iraniano. Segundo os serviços de inteligência do país, o Irã teria material para construir 3 bombas e, em um mês, terminaria o processo de enriquecimento do urânio. A partir daí, levaria entre 18 e 24 meses para fabricar as bombas. Além disso, se divulgou que o país começou a fabricar placas de urânio, material utilizado na fabricação do armamento nuclear.

Israel não confirma, mas o país é apontado como o autor de diversos ataques cibernéticos a instalações nucleares, e mesmo a cientistas e lideranças iranianas, ao longo dos últimos anos, ações que atrasaram, mas, como se vê, não impediram o progresso do programa nuclear persa.

As autoridades israelenses têm subido o tom das declarações. Durante uma visita aos Estados Unidos, o ministro da Defesa, Benny Gantz, anunciou publicamente que havia ordenado ao Exército israelense que se preparasse para um possível ataque militar ao Irã.

Um eventual ataque israelense provocaria uma resposta iraniana e dos grupos Hezbollah, no Líbano, e Hamas, em Gaza, ambos aliados do Irã, forçando Israel a travar uma guerra em várias frentes simultaneamente. Seria, sem dúvida, um rastilho de pólvora que incendiaria o Oriente Médio. A ameaça cada vez mais real de um conflito de alta intensidade, que poderia envolver outros países, e mesmo as grandes potências, é somente mais um dos fantasmas que ameaçam a paz e o sistema internacional no ano que se inicia na próxima semana.

[1]  https://paulofilho.net.br/2020/01/09/a-crise-ira-x-eua

 

Conheça o curso Guerra na Ucrânia




Ocidente e Rússia se chocam na Ucrânia

A Ucrânia está no centro de uma crise que ameaça escalar para um confronto militar entre ucranianos e russos, com risco de transbordamento para outros países, o que seria gravíssimo para a estabilidade da Europa e do mundo. Mais do que uma simples disputa entre ucranianos e separatistas na região de Donbass, leste da Ucrânia e fronteira com a Rússia, os acontecimentos mostram o confronto entre duas visões de mundo. De um lado, europeus ocidentais e norte-americanos, que enxergam na Ucrânia um jovem país que tenta trilhar o caminho apontado pelas democracias liberais europeias, desvencilhando-se da Rússia depois do esfacelamento da União Soviética. De outro, a Rússia, que vê a Ucrânia como um território historicamente ligado à sua própria nacionalidade, um país fundamental para sua visão geopolítica, que deve ser mantido sob sua esfera de influência sob pena de ver os adversários europeus e norte-americanos demasiadamente próximos de Moscou.

Para entender como se chegou à situação atual, é importante recapitular alguns acontecimentos.

O primeiro grande império do leste europeu foi o Principado de Kiev, atual capital da Ucrânia, surgido no século IX. Sua população era constituída por uma mistura de Vikings escandinavos, que chegavam do Norte pelos rios, e pelos eslavos orientais, nativos da própria região. A pobreza do solo logo obrigou essas populações a buscarem novas terras, expandindo o território e delineando um império. Como explica Robert Kaplan, em A Vingança da Geografia, a Rússia, como conceito geográfico e cultural nasceu do Principado de Kiev.

Em permanente luta contra os nômades das estepes, no século XIII o principado foi devastado pelos mongóis comandados por Batu Khan, neto de Gengis Khan. A partir daí, com o passar do tempo, a história russa foi paulatinamente se deslocando para o Norte, até ficar centrada em Moscou, já no final da Idade Média.

Após a invasão mongol, o território onde hoje está a Ucrânia foi dominado por lituanos e poloneses. Em 1648, uma grande rebelião cossaca acabou por levar à partilha do território ucraniano entre russos e poloneses. Com a partilha da Polônia, no final do século XVIII, o território ucraniano é novamente dividido, agora entre russos e austríacos.

Conheça a lista de Livros que eu preparei e presenteie quem você gosta neste Natal!

Lista de livros do Paulo Filho

Os colapsos dos impérios russo e austríaco, bem como a revolução russa, no início do século 20, deram espaço ao ressurgimento de movimentos nacionalistas ucranianos, que buscavam a independência. Entretanto, em 1919, a Ucrânia foi incorporada à União Soviética.

O colapso da União Soviética, em 1991, permitiu a independência da Ucrânia. No plebiscito realizado naquele ano, 90% dos ucranianos se posicionaram favoravelmente à separação, incluindo-se aí 80% da população da região de Donbass e 54% dos votantes da Crimeia, península com grande população russa.

Em 2004, a OTAN aceitou os três Estados Bálticos – Letônia, Estônia e Lituânia – como membros da Aliança. A União Europeia seguiu os passos da OTAN, estendendo sua fronteira para o leste para incluir uma série de ex-repúblicas soviéticas e aliados, incluindo os mesmos estados bálticos, República Tcheca, Hungria, Polônia, Eslováquia e Eslovênia.  Foi um choque para as lideranças russas, que esperavam que, em troca do apoio dado aos norte-americanos na invasão do Afeganistão após o 11 de Setembro, os EUA se mantivessem fora do que a Rússia considerava ser sua esfera de influência, os antigos Estados integrantes da URSS. O presidente Putin se sentiu pessoalmente afrontado.

Os ucranianos, naquele momento, estavam em um limbo, entre o ocidente e a Rússia. No final de 2004, multidões saíram às ruas, na chamada Revolução Laranja. Os manifestantes deixavam claro que desejavam que a Ucrânia ingressasse na União Europeia.

Em 2008, a Rússia invadiu a Geórgia, demonstrando que os Russos não estavam dispostos a admitir nenhum passo a mais da União Europeia ou da OTAN em direção às suas fronteiras.

Em 2013, uma nova onda de protestos varreu a Ucrânia, em razão da recusa do então presidente, Viktor Yanukovych, de assinar um acordo de associação do país à União Europeia. A situação se agravou, com o aumento da violência até que, em fevereiro de 2014, o Congresso destituiu o presidente Yanukovych e determinou a realização de eleições, que foram vencidas pelo candidato com uma plataforma pró-europeus.

Em 01 de março de 2014, antes mesmo da realização das eleições, a Rússia invadiu a Criméia, península estratégica que mantém, em Sebastopol, a sede da armada russa na Mar Negro. Em 6 de março o parlamento da Crimeia aprovou uma decisão no sentido de entra para a Federação Russa e, em 18 de março, tal adesão foi ratificada pelas duas partes, apesar da Assembleia Geral das Nações Unidas ter votado uma resolução se opondo a tal adesão.

Em abril, grupos pró-Rússia na província de Donbas, no leste da Ucrânia, iniciaram uma guerra civil. Embora a Rússia não reconheça, é fato hoje incontestável que o país apoiou militarmente os separatistas, em uma ação típica de Guerra Híbrida, com soldados e equipamentos, mas também com Operações de Informação e cibernéticas, o que impediu a Ucrânia de controlar a situação. Diversos países do ocidente impuseram sanções econômicas à Rússia em razão dessa interferência.

Em 2015 foram celebrados os Acordos de Minsk, proporcionando ao menos uma estrutura de diálogo entre as partes, mas a violência se manteve e mais de 13 mil vidas já foram perdidas nos combates.

Assim chegamos ao momento atual, no qual os ucranianos e norte-americanos acusam os russos de já terem concentrado na fronteira cerca de 90 mil soldados e estarem planejando uma invasão com um efetivo de cerca de 175 mil militares, com blindados, artilharia e tudo mais necessário para invadir a Ucrânia já nos primeiros meses do ano que vem.

Os russos negam a intenção ofensiva, afirmando que quem está se preparando para uma ação armada são os ucranianos, que estariam planejando atacar a região de Donbass. O presidente Putin reiterou que há “linhas vermelhas” que não devem ser cruzadas pelo Ocidente, referindo-se claramente à integração da Ucrânia à União Europeia ou à OTAN.

Em meio à crise, os presidentes dos EUA, Joe Biden, e da Rússia, Vladimir Putin, marcaram uma videoconferência para a próxima terça-feira, dia 07 de dezembro, para tratar do assunto. Vamos aguardar o desenrolar dos acontecimentos, para ver se eles conseguirão amenizar a crise e arrefecer as tensões.




Xi Jinping pavimenta o caminho para se perpetuar no poder na China



O evento de política doméstica mais relevante nos últimos tempos na China foi a reunião do 19º Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCC), ocorrida entre 8 e 11 de novembro. No evento, realizado a portas fechadas, foi aprovada uma “resolução histórica”, elevando Xi Jinping ao patamar ocupado apenas por Mao Zedong, o líder da revolução que fundou a República Popular da China, e Deng Xiaoping, o artífice da modernização econômica do país.

É apenas a terceira vez na centenária história do PCC que a denominação “resolução histórica” é utilizada. Nas duas primeiras, elas marcaram importantes viradas políticas. A primeira foi em 1945, antes mesmo da fundação da República Popular da China, quando o partido consolidou a autoridade de Mao Zedong e estabeleceu seu pensamento como um conjunto de crenças que guiou o partido e a própria China a partir da vitória dos comunistas em 1949.

A segunda vez foi em 1981, quando Deng Xiaoping liderou a modernização da economia do país, condenando o extremismo ocorrido durante a Revolução Cultural e os erros na condução da economia durante a política do “Grande Salto Adiante”, responsáveis pelo caos econômico que levou milhões de chineses à morte por fome, na década de 1960.

Agora, a liderança do PCC reavalia a história centenária do partido, assegurando a Xi Jinping um lugar entre as maiores lideranças da China comunista.

O movimento ocorre em um momento muito adequado às ambições do líder chinês. No próximo ano, haverá o Congresso do Partido Comunista que, muito provavelmente, consagrará o terceiro mandato de Xi, garantindo-lhe mais um período consecutivo à frente dos chineses. Um acontecimento sem precedentes desde Deng Xiaoping, e que exigiu uma mudança na constituição chinesa, feita em 2018, pelo próprio Xi Jinping.

Conheça os cursos da Casa dos Tres Lowais

A reunião trouxe, no mínimo, dois fortes indícios de que Xi Jinping não pensa em deixar o poder. Normalmente, novos líderes são promovidos a posições de destaque nesses encontros, de forma a testá-los e a indicar que eles poderão ser alçados a posições ainda maiores, em substituição aos líderes que encerram seus mandatos. Foi o que aconteceu em 2010, quando o próprio Xi Jinping foi promovido a vice-presidente do Comitê Militar Permanente. Dois anos depois, em 2012, ele substituiria Hu Jintao na presidência. Nessa reunião, bem como nas anteriores, não houve nenhuma promoção digna de nota. Nenhuma nova liderança capaz de fazer sombra a Xi Jinping surgiu na China nos últimos anos. O segundo indício foi a própria divulgação de uma “resolução histórica”. Dificilmente Xi Jinping prepararia algo tão importante para ser implementado por outra pessoa, que não ele próprio.

No comunicado oficial da reunião[1], se destaca que “o pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era é o marxismo chinês contemporâneo, o marxismo do século 21 e a essência da cultura e do espírito chineses. Ele deu um novo salto na sinicização do marxismo. O partido estabeleceu o camarada Xi Jinping como o núcleo do Comitê Central do Partido e a posição central de todo o partido, e estabeleceu a posição de liderança de Xi Jinping na nova era do socialismo com características chinesas.”

Como se vê, o culto à personalidade de Xi Jinping, que é alçado a uma condição de liderança inconteste, ganha enorme força. A mensagem a ser transmitida ao povo chinês e ao mundo é a de que ele é a única pessoa capaz de conduzir a China à condição de superpotência.

Conheça a lista de livros que recomendo na Amazon!

Mesmo com seu poder praticamente absoluto, Xi Jinping precisa lidar com as lideranças do PCC. Ele vem fazendo isso desde que iniciou sua campanha anticorrupção, logo no início do primeiro mandato, afastando corruptos, mas também, segundo seus desafetos, potenciais adversários dentro do partido. E o movimento da semana passada parece ter sido o seu “xeque-mate”. Se nenhum evento imprevisível ocorrer, o mundo terá que se acostumar com a presença de Xi Jinping na liderança da China ainda por muitos anos.

 

Não deixe de nos seguir nas redes sociais:

Twitter – https://twitter.com/PauloFilho_90

Linkedin – https://www.linkedin.com/in/paulo-filho-a5122218/

Instagram – https://www.instagram.com/blogdopaulofilho/

Youtube – https://www.youtube.com/paulofil

Conheça os livros que indico na minha lista de desejos da Amazon – https://www.amazon.com.br/hz/wishlist/ls/3LYKSFOTMKITS?ref_=wl_share

Se você acha nosso trabalho relevante e reconhece as horas dedicadas à pesquisa e formulação de todo o conteúdo, você pode se tornar apoiador do blog. Veja como em https://paulofilho.net.br/apoieoblog/

[1] Disponível em http://www.news.cn/politics/2021-11/11/c_1128055386.htm