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A nova (e inédita) Estratégia de Segurança da Alemanha

A Alemanha divulgou sua Estratégia de Segurança. Trata-se de um documento inédito no pós-guerra, no qual o governo alemão divulga as bases de uma segurança que se quer integrada e voltada para o cidadão alemão, para que este possa “continuar vivendo em paz, com liberdade e segurança”.

O documento é assinado pelo chanceler Olaf Scholz e pela ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock e afirma que o ambiente de segurança no qual a Alemanha está inserida vive um momento de virada, de “divisão de águas”: na expressão em alemão, um Zeitenwende. É uma obvia referência à situação internacional, de guerra na Europa e de acirramento da competição sistêmica entre EUA e China.

Porém, trata-se também de um Zeitenwende no que se refere ao pensamento estratégico alemão. O fato desse documento ser o primeiro do gênero é sintomático do trauma que a sociedade alemã carrega desde o fim da 2ª guerra mundial, que se refletiu na dificuldade de desenvolvimento de um pensamento estratégico voltado para o fortalecimento de seu aparato de defesa. Agora, os alemães correm atrás do prejuízo, anunciando que “o governo federal fará da Bundeswehr uma das forças armadas convencionais mais eficazes da Europa nos próximos anos, capaz de responder e agir rapidamente em todos os momentos”.

Esse anúncio é feito com muito cuidado, quase se desculpando. O texto esclarece que a Alemanha tem consciência de sua história e por isso é grata pela reconciliação com os países vizinhos, em especial com a França, e que continua a assumir responsabilidade pelo direito de Israel de existir.

O documento aponta a Rússia como a mais significativa ameaça para a segurança Euro-Atlântica. Os estrategistas alemães apontam para um mundo crescentemente multipolar, em que alguns países estariam tentando mudar a ordem internacional, motivados por suas percepções acerca de uma rivalidade sistêmica. Nesse contexto, a China é apresentada como um parceiro, um competidor e um rival.

Ainda na apresentação da conjuntura mundial, o texto identifica que guerras, crises e conflitos nas vizinhanças da Europa têm um efeito adverso na segurança da Alemanha e da própria Europa. Estados frágeis nesse entorno estariam se tornando paraísos para grupos terroristas, enquanto conflitos internacionais se ampliariam para Estados vizinhos. Em acréscimo a essa realidade, os estrategistas alemães apontam para outras ameaças complexas: terrorismo, extremismo, crime organizado, ataques cibernéticos, todos com capacidade de causar graves danos à segurança alemã.

A crise climática também é definida como uma grave ameaça à própria subsistência das pessoas e aos fundamentos da economia. Ela ameaça milhões de pessoas no mundo, pela destruição do meio-ambiente e consequentes fome, pobreza e doenças.

Para fazer face a tudo isso, a estratégia tem seu foco no conceito de Segurança Integrada. Esta é definida como sendo aquela que reúne todos os instrumentos à disposição do Estado que, sendo afetos às questões de segurança, sirvam para proteger o cidadão alemão de ameaças externas. Essa abordagem parte da premissa de que a segurança é parte e objetivo de todas as políticas, de forma que, se ela se deteriorar, cada política, em todos os setores governamentais, será afetada.

O foco da segurança, de acordo com a Estratégia, seria o indivíduo, a garantia de seus direitos democráticos e de suas liberdades. Na medida que isso tudo seja garantido, a estabilidade do Estado e da sociedade estariam garantidas. Essa ênfase no indivíduo é ainda mais salientada quando a Estratégia se afirma alinhada com uma política externa feminista, que defende os direitos e a representatividade de mulheres e de grupos marginalizados.

 

Os alemães desejam que sua segurança integrada seja defensiva, resiliente e sustentável. Ao ser defensiva, ela deverá possuir uma capacidade dissuasória crível, no âmbito da OTAN, que garanta que eventuais inimigos se abstenham de agir contra a Aliança. Para isso, o governo alemão informa que vai fortalecer suas forças armadas, consideradas “o pilar da dissuasão convencional na Europa”. Assim, se informa que a Alemanha perseguirá o objetivo de garantir investimentos de 2% do PIB em defesa, aumentará seus investimentos em proteção a infraestruturas críticas, diplomacia efetiva, prevenção e atuação em desastres e engajamentos em assistência humanitária. Tudo isso com o objetivo de tornar as forças armadas alemãs “uma das mais efetivas forças convencionais da Europa”.

A resiliência é o segundo aspecto destacado. Trata-se de uma qualidade necessária em caso de conflito. Ela depende do Estado, da sociedade civil e do setor privado, que deverão assegurar que, na crise, o governo continue funcionando, que a população tenha suas necessidades básicas atendidas e que as forças armadas sejam supridas com toda a logística necessária. Defender a sociedade alemã da espionagem, sabotagem, e interferência estrangeira ilegítima, bem como da desinformação, também é uma forma de se fortalecer a resiliência, e por essa razão ações nesse sentido também são destacadas na Estratégia.

Quando destaca o aspecto da sustentabilidade, a Estratégia aponta para o combate à crise climática, apontada como uma ameaça à própria subsistência da humanidade, com impactos para a estabilidade entre países e regiões. Assim, os alemães se impõem o objetivo de “reduzir drasticamente as emissões, que atualmente ainda estão em ascensão e alcançar resultados urgentemente. Ao mesmo tempo, perseguir estratégias de adaptação que limitem os impactos da crise climática, de modo a proteger tanto pessoas quanto espaços naturais”. Nesse sentido é interessante destacar que os alemães afirmam no documento que “onde os governos minem a segurança e o estado de direito, iremos centrar a nossa cooperação em maior medida em atores não estatais, no nível local e em abordagens multilaterais.” Interessante notar que essa afirmação reforça temores recorrentes em países em desenvolvimento, de que a pauta ambiental possa ser instrumentalizada para o atingimento de interesses geopolíticos inconfessáveis, uma vez que quem julgaria que os governos estariam “minando a segurança climática” seria o próprio Estado alemão.

O documento alemão, de 73 páginas, cujo espírito tentei captar na análise acima, é bastante abrangente ao tratar de ameaças não-tradicionais à segurança. Mas, se comparado aos documentos congêneres das grandes potências, falha ao tratar das ameaças mais tradicionais, de cunho geopolítico, que saltam aos olhos no atual momento da história. Mas, é um primeiro passo, que mostra uma Alemanha que volta ao jogo geopolítico, praticamente empurrada pela invasão russa à Ucrânia. Os alemães ainda estão cruzando seu Zeitenwende. E todo mundo certamente vai prestar muita atenção.

Leia a Estratégia de Segurança aqui:

Estrategia nacional de segurança Alemanha

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O Exército com os olhos no futuro

“Não importa quão claramente se pense, é impossível prever com precisão o caráter do conflito futuro. A chave é não estar tão longe do alvo que se torne impossível ajustar uma vez que o personagem seja revelado”.

Sir Michael Howard

Tentar prever os acontecimentos futuros é uma tarefa arriscada. Mas, identificar tendências e possíveis cenários vindouros é uma atividade fundamental para os planejadores das mais variadas atividades humanas, na iniciativa privada ou no setor público. Somente dessa forma as organizações poderão se preparar para os desafios que o futuro lhes reserva.

No campo militar, não poderia ser diferente. Pelo contrário, é famosa a máxima que critica os exércitos que se preparam para lutar sua última guerra, em vez da próxima guerra. Winston Churchill disse certa vez que era “uma piada na Grã-Bretanha dizer que o War Office está sempre se preparando para a última guerra. Mas isso provavelmente é verdade para outros departamentos e outros países, e certamente foi verdade para o Exército francês.” O primeiro-ministro britânico se referia à invasão da França pelo exército nazista, em 1940. Os estrategistas franceses estavam preparados pala lutar a guerra de 1919, mas os alemães inovaram com a blitzkrieg e venceram os franceses em poucos dias.

A guerra de alta intensidade em curso na Ucrânia relembrou aos militares de todo o mundo que um longo período de paz não é uma garantia de que não haverá mais conflitos armados. E que, para estarem em condições de cumprir suas destinações, as Forças devem estar preparadas para as próximas guerras.

Com esse objetivo, o Exército Brasileiro acaba de publicar o manual de fundamentos Conceito Operacional do Exército Brasileiro – Operações de Convergência 2040. Trata-se de uma antevisão da forma como se espera que a Força Terrestre cumpra sua missão no horizonte temporal do ano de 2040.

No documento, os estrategistas do Exército Brasileiro delineiam o contexto operacional futuro, no horizonte temporal de 2040. Trata-se de um esforço em caracterizar as possibilidades de futuro e suas consequentes implicações para a Defesa Nacional e para a Força Terrestre.

Assim, visualiza-se um ambiente de acirramento da competitividade interestatal, de centralidade do setor científico-tecnológico e de rearranjos de balanças de poder regionais. Além disso, diversas questões relacionadas às mudanças climáticas potencializarão tensões geopolíticas, enquanto o espaço cibernético se tornará cada vez mais um palco de atuação, muitas vezes desestabilizadora, de Estados, grupos e indivíduos. Tudo isso com profundas implicações na forma como a Força Terrestre deverá se preparar para ser empregada no cumprimento de suas missões.

As operações militares em 2040 serão realizadas em um ambiente preponderantemente urbano, de hiperconectividade, no qual a informação e a percepção que a opinião pública terá dos acontecimentos será de extrema relevância. O combate será crescentemente digitalizado e automatizado, o que imporá uma aceleração no ritmo das ações. Os ciclos decisórios serão encurtados e os responsáveis pelas tomadas de decisão terão cada vez menos tempo à sua disposição. A letalidade será mais seletiva, e as ações no campo de batalha serão muito mais monitoradas por plataformas remotas e autônomas. Isso contribuirá para uma crescente judicialização dos conflitos, uma vez que as ações dos contendores nos campos de batalha serão expostas à opinião pública mundial com muito maior facilidade.

Para cumprir suas missões nesse ambiente, o Exército deverá estar preparado para, atuando de forma conjunta com as outras forças armadas, na presença de diversas agências, das mais distintas áreas de atuação, governamentais ou não, garantir a soberania nacional negando a eventuais oponentes o acesso e a liberdade de ação em áreas de interesse nacional.

O conceito operacional, ou seja, a maneira como o Exército aplicará suas capacidades para cumprir suas missões, deverá garantir a derrota do inimigo por meio da convergência de efeitos letais e não letais, de forma sincronizada, nos diversos domínios (terrestre, marítimo, aéreo, espacial, cibernético e eletromagnético) e nas três dimensões do combate (física, humana e informacional).

Para poder atuar desta forma em 2040, o Exército planeja e age de forma a aperfeiçoar as capacidades já existentes e a criar outras ainda não disponíveis, em um processo de contínuo aperfeiçoamento. A ferramenta para isso é o Sistema de Planejamento do Exército (SIPLEX). Ele contém, dentre outras coisas, o Plano Estratégico do Exército que, em ciclos de quatro anos, planeja as ações e iniciativas estratégicas que vão proporcionar ao Exército as condições de fazer face aos desafios atuais e futuros. Dessa forma, os próximos quatro ciclos, que se iniciam em 2024, delineiam a trajetória do Exército até atingir o estado que se deseja alcançar em 2040.

Algumas dessas ações demonstram o acima descrito.  No que concerne aos Sistemas de Aeronaves Remotamente Pilotadas (SARP), os conhecidos drones, há um projeto em andamento, inclusive com o recebimento do primeiro sistema de categoria 2[1], o Nauru 1000C. Trata-se de um sistema de fabricação nacional, composto por três aeronaves remotamente pilotadas, uma base móvel com três estações de controle de solo, duas câmeras estabilizadas, radares GMTI e SAR, scanners 3D, dois terminais de transmissão de dados de 60km e um terminal de enlace de dados de 100km. Esse equipamento adiciona importante capacidade de vigilância e sensoriamento do campo de batalha, fundamental ao combate moderno, como se comprova diariamente no conflito em curso na Ucrânia.

O programa estratégico Forças Blindadas é fundamental para a necessária transformação do Exército, especialmente na mecanização das brigadas de infantaria motorizadas[2], e na modernização das brigadas de cavalaria, ações absolutamente necessárias para a construção de um instrumento militar compatível com os desafios atuais e futuros. Contempla as diversas famílias de blindados. É no escopo desse projeto que estão o desenvolvimento e a aquisição dos blindados Guarani em suas múltiplas versões, das Viaturas Blindadas Leves Multirarefas e das modernas Viaturas Blindadas de Combate de Cavalaria Centauro 2.

O programa Astros abrange a aquisição de plataformas móveis de lançamento de foguetes e mísseis. Esses armamentos, como a guerra na Ucrânia comprova mais uma vez, são muito importantes para o combate de alta intensidade na atualidade, e permanecerão relevantes no horizonte temporal de 2040. Uma iniciativa considerável no âmbito do projeto é o desenvolvimento, pela indústria nacional, de mísseis com a capacidade de atingir, com precisão, alvos à distância de 300km, o que aumentará a capacidade dissuasória nacional.

Evidentemente, a execução de todos os programas, seus projetos, ações e iniciativas são condicionados pelas disponibilidades orçamentárias. Nesse sentido, o Exército tem aprimorado sua governança, de modo utilizar de modo ótimo os recursos que lhe são disponibilizados.

Os exemplos acima ilustram apenas alguns aspectos mais visíveis dos projetos em curso. O Plano Estratégico do Exército (2024-2027) lista cerca de 400 ações e iniciativas estratégicas que levam ao atingimento dos objetivos estratégicos do Exército.

Dessa forma, fica claro que o Exército Brasileiro está atento às grandes questões geopolíticas e às conjunturas nacional e internacional, que naturalmente condicionarão seu emprego em atendimento à suas missões constitucionais. Tudo isso para atender à máxima de “estar preparado para a próxima guerra”, e não para “as guerras já travadas”, proporcionando à nação brasileira as ferramentas militares terrestres necessárias ao enfrentamento dos complexos desafios atuais e futuros.

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[1] Equipamentos de até 150 Kg

[2] Até o momento, duas Brigadas de Infantaria Motorizadas já foram mecanizadas pelo projeto: A 15ª Bda Inf Mec, de Cascavel/PR e a 11ª Bda Inf Mec, de Campinas/SP. A 9ª Bda Inf Mtz, do Rio de Janeiro/RJ e a 3ª Bda Inf Mtz, de Cristalina/GO já começaram a receber as viaturas Guarani e as Viaturas Blindadas Leves Multitarefas.




Coreia do Sul lança Estratégia para região do Indo-Pacífico

A Coreia do Sul acaba de lançar sua Estratégia para a região do Indo-Pacífico, um movimento saudado pelos EUA e criticado pela China. O documento destaca que a capacidade nuclear, assim como o programa de mísseis da Coreia do Norte são uma forte ameaça a paz na região.

O documento é cuidadoso em relação à China. afirmando que ela é um “parceiro chave para alcançar a prosperidade e a paz na região” e com o qual terão “um relacionamento sólido e maduro à medida que buscam interesses compartilhados com base no respeito mútuo e na reciprocidade”.

Os coreanos afirmam que irão fortalecer sua aliança com os EUA, pois ela foi “peça fundamental para a paz e a prosperidade na Península Coreana e no Indo-Pacífico nos últimos 70 anos. Afirma ainda os 2 países compartilham os valores de liberdade, democracia e direitos humanos.

Em breve, farei um texto analisando o documento, que você pode acessar na integra no link abaixo:

ROK-Indo-Pacific-Strategy-Dec-2022




Os Novos documentos de Segurança e Defesa dos Estados Unidos

Introdução

Recentemente, o governo norte-americano divulgou dois documentos da área de Segurança e Defesa, em sequência: sua nova Estratégia Nacional de Segurança, no dia 12 de outubro, e sua Estratégia de Defesa, no dia 27 de outubro de 2022.

Em conjunto, os dois documentos desvelam a maneira como os norte-americanos enxergam o mundo e definem os princípios que guiarão suas ações estratégicas, para conformá-lo, de maneira que, no futuro, esteja alinhado aos seus interesses e princípios.

1. Estratégia Nacional de Segurança

De acordo com o diagnóstico do documento, o mundo está atravessando um momento crucial, sendo os próximos anos decisivos para a definição do futuro dos Estados Unidos (EUA) e de todo o planeta. Nessa circunstância, o país teria dois grandes desafios estratégicos: o primeiro seria a competição com a China, cujo resultado definiria a ordem internacional pós Guerra Fria. O segundo seria o enfrentamento dos desafios compartilhados globalmente, quais sejam, as mudanças climáticas, a insegurança alimentar, as doenças pandêmicas, o terrorismo, a escassez energética e a inflação. Por serem desafios compartilhados, esses últimos exigiriam a cooperação entre os países. Entretanto, essa cooperação estaria sendo dificultada pelo próprio ambiente de competição geopolítica, que alimentaria nacionalismos e populismos.

No documento, os EUA se posicionam como líderes das democracias mundiais no enfrentamento às autocracias. A Rússia é apresentada como uma ameaça imediata à ordem internacional aberta e livre, pelo desrespeito ao Direito Internacional e pela invasão à Ucrânia. Os russos são acusados de atuar contra os interesses norte-americanos, em várias partes do mundo, inclusive, dentro dos EUA. O apoio à Ucrânia é reafirmado, bem como a intenção de conter a Rússia em todos os campos do poder.

A China, entretanto, é apresentada como o verdadeiro competidor dos EUA, uma vez que teria a intenção de reconfigurar a ordem internacional em seu próprio benefício e, consequentemente, em desfavor dos norte-americanos.

Ao afirmar que pretendem competir com a China, os EUA asseveram, dentre outros aspectos, que irão apoiar seus aliados no Indo-Pacífico, para que tomem suas decisões de forma livre da coerção chinesa. Também dizem que irão responsabilizar Pequim por “genocídio e crimes contra a humanidade em Xinjiang, violação dos direitos humanos no Tibet e desmantelamento da autonomia e das liberdades em Hong Kong”.

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Em relação à Taiwan, os norte-americanos afirmam que a paz e a estabilidade do Estreito de Taiwan são críticas para a segurança da região e do mundo. Afirmam que continuam apoiando a política de “uma só China”, contrária à independência da ilha, discordando de quaisquer tentativas de mudança no “status quo” da região. Entretanto, de acordo com a lei que rege as relações com o país, manterão o apoio militar para que aquela ilha esteja em condições de se defender de qualquer agressão chinesa.

A crise climática recebe destaque, sendo apresentada como o “desafio existencial do nosso tempo”. Afinal, o aquecimento do planeta colocaria em perigo os norte-americanos e demais habitantes do planeta, arriscando os suprimentos de comida e água, a saúde pública, a infraestrutura e a própria segurança nacional norte-americana. O documento cita, ainda, as afirmações de cientistas, segundo os quais, sem uma ação global imediata para reduzir as emissões de gases do efeito estufa, em breve, serão excedidos os 1,5°C de aquecimento, o que ocasionará o aumento do nível do mar e uma perda catastrófica de biodiversidade.

Ao tratar da postura dos EUA em relação às regiões do mundo, o documento esclarece sua opção pela Ásia, mais especificamente pelo Indo-pacífico, considerado o epicentro da Geopolítica no século 21. A Aliança Atlântica, entretanto, não é esquecida, e os EUA reafirmam seu compromisso com a OTAN e seus parceiros europeus. A América do Sul não é citada especificamente, sendo englobada quando o documento trata sobre o Hemisfério Ocidental. Porém, o texto aborda a proteção da “interferência e coerção” que seriam praticadas por Rússia, China e Irã contra países da região. O Brasil só é citado no documento devido à Amazônia, uma vez e superficialmente, para se falar na necessidade de preservação daquele bioma.

O documento deixa nítido o entendimento norte-americano de que, apesar da guerra na Ucrânia e das ameaças nucleares que ressurgiram com ela, o mundo caminha para uma nova disputa bipolar, entre EUA e China. Portanto, na China, estarão a atenção e o foco da política exterior norte-americana. Entretanto, a competição dar-se-á em todo o globo terrestre, com os EUA buscando espaço e alinhamentos que lhes sirvam tanto na disputa contra a China quanto no apoio às políticas e estratégias de enfrentamento dos “desafios compartilhados” por toda a humanidade.

acesse o documento na íntegra:

Estratégia Nacional de Segurança dos EUA

 2. Estratégia Nacional de Defesa

Em perfeito alinhamento com a Estratégia de Segurança, a Estratégia de Defesa igualmente apresenta um cenário internacional de segurança complexo, com desafios causados por mudanças geopolíticas, tecnológicas, econômicas e ambientais. A competição estratégica com a China é apresentada como o mais complexo desafio à segurança dos EUA, uma vez que aquele país teria um comportamento “coercivo e crescentemente agressivo, com o objetivo de remodelar a região do Indo-Pacífico e o Sistema Internacional, com a finalidade de adequá-los aos seus interesses”. Por sua vez, a Rússia é apresentada como a ameaça do momento, uma vez que “usa a força para mudar fronteiras, ignorando a soberania de países vizinhos, para reimpor uma esfera de influência imperial”.

Portanto, China e Rússia, nessa ordem, são apresentadas como as mais perigosas ameaças à segurança dos EUA. Na verdade, trata-se do aprofundamento da mudança de foco, que também havia ocorrido no governo Trump, o qual listou China, Rússia, Irã e Coreia do Norte como as principais ameaças, na Estratégia de Defesa divulgada à época. A mudança se detém no fato de que, até então, o terrorismo figurava, nos documentos oficiais dos EUA, como principal ameaça à segurança do país.

O documento também lista como ameaças: a Coreia do Norte, em razão de seu status de potência nuclear; o Irã, em razão de seu programa nuclear, das exportações de armas e de seu papel “desestabilizador no Oriente Médio”; além de grupos terroristas como a Al Qaeda, o ISIS e seus afiliados.

As mudanças climáticas, que são percebidas pela elevação das temperaturas médias, elevação dos níveis do mar, mudança nos regimes das chuvas e maior frequência de eventos climáticos extremos, são apresentadas como motrizes de novos conflitos, como, por exemplo, o derretimento da calota polar, no Ártico, que modifica a geoestratégia da região, aumentando a disputa interestatal naquela parte do globo.

Para enfrentar todos esses desafios, a Estratégia norte-americana apresenta uma ferramenta, a chamada “Dissuasão Integrada”. São ações destinadas a alinhar as políticas, os investimentos e as atividades do Departamento de Defesa dos EUA que sustentem e fortaleçam a dissuasão do país em relação aos seus adversários.

Essa dissuasão envolve o aprimoramento de ações em várias áreas que: neguem aos inimigos a possibilidade de conquistar territórios; aumentem a resiliência norte-americana em face de ataques adversários; e demonstrem aos inimigos que os custos de um eventual ataque serão muito superiores a eventuais benefícios. Nesse sentido, a Estratégia prevê investimentos em novas capacidades, como as de ataques a longas distâncias, sistemas de armas hipersônicas e sistemas autônomos. Ademais, priorizar-se-á o desenvolvimento dos campos espacial e cibernético, a capacidade de combater guerras irregulares, o apoio a aliados que estejam enfrentando os inimigos dos EUA, as medidas diplomáticas e as sanções econômicas.

acesse o documento na íntegra:

Estratégia Nacional de Defesa dos EUA

 3. Outros documentos estratégicos

Em complemento às Estratégias de Segurança e de Defesa, os EUA também publicaram a revisão de sua postura nuclear. No documento, reafirma-se a importância da dissuasão nuclear nesse ambiente de deterioração da segurança internacional. A previsão é de que a China possua 1.000 ogivas nucleares até o final da década. Assim, segundo a avaliação norte-americana, na década de 2030, os EUA enfrentarão, pela primeira vez em sua história, duas grandes potências nucleares como concorrentes estratégicos e potenciais adversários. Isso criará novas tensões na estabilidade e novos desafios para a dissuasão, a segurança, o controle de armas e a redução de riscos.

Embora não seja considerada uma rival na mesma escala que a China e a Rússia, a Coreia do Norte também representaria uma ameaça persistente e um perigo crescente para os EUA e a região do Indo-Pacífico, à medida que expande, diversifica e aprimora suas capacidades nucleares, de mísseis balísticos e não nucleares, incluindo seu estoque de armas químicas. Uma crise ou conflito na península coreana poderia envolver vários atores com armas nucleares, aumentando o risco de um conflito mais amplo.

Ainda segundo o documento, o Irã não possui, hoje, uma arma nuclear. No entanto, as recentes atividades iranianas, anteriormente limitadas pelo acordo nuclear (JCPOA), são motivo de grande preocupação, pois são aplicáveis a um programa de armas nucleares. A política dos EUA é impedir que o Irã obtenha uma arma nuclear.

Os EUA consideram, ainda, que a aquisição de armas nucleares por outros Estados pode levar a novos desafios de dissuasão. A atual instabilidade do ambiente de segurança, incluindo as ações do Irã, da Coreia do Norte e a guerra na Ucrânia, poderia criar ou aprofundar incentivos à proliferação nuclear.

Outro anexo à Estratégia de Defesa é a Revisão de Defesa Contra Mísseis. O documento se destina a fornecer orientação ao Departamento de Defesa sobre a estratégia e política de defesa antimísseis. Segundo a análise, os adversários dos EUA estão desenvolvendo, colocando em campo e integrando capacidades aéreas e de mísseis cada vez mais avançadas. Essas capacidades aéreas e de mísseis representariam um risco crescente para o país, seus aliados e parceiros.

Em razão disso, as defesas antimísseis são consideradas críticas para impedir ataques contra os Estados Unidos. Dessa forma, o documento considera ser um imperativo estratégico continuar os investimentos e a inovação no desenvolvimento de capacidades antimísseis de amplo espectro.

Conclusão

Um aspecto da estratégia de dissuasão integrada proposta pelos EUA, em sua Estratégia de Defesa, que merece especial atenção do Brasil é a previsão de uma cerrada colaboração com “aliados e parceiros”. Nesse sentido, é interessante notar que, na Declaração de Brasília, resultante da 15ª Conferência de Ministros da Defesa das Américas, realizada em julho deste ano, os EUA fizeram constar um item que reconhece a “Dissuasão Integrada como um constructo para manter a paz e a estabilidade no Hemisfério Ocidental, priorizando a cooperação regional em todos os domínios de defesa e segurança e reduzindo barreiras em relação ao compartilhamento de informações e capacidades”. Por não ter sido alcançado um consenso sobre esse item, os Ministros da Defesa decidiram que o conceito de Dissuasão Integrada deveria ser aprofundado em estudos no âmbito da Junta Interamericana de Defesa.

Como se vê na Declaração de Brasília, os EUA tentam, por meio da aproximação com as Forças Armadas dos demais países das Américas, consubstanciada pela Dissuasão Integrada, reunir “aliados e parceiros” no enfrentamento de seus adversários. Uma vez que a China, seu principal oponente, é o principal parceiro econômico da maioria dos países da região e tem estabelecido laços cada vez mais estreitos com vários deles, fica claro que se está caminhando em um terreno particularmente espinhoso nas relações internacionais.

Os documentos de Segurança e Defesa dos EUA refletem o momento de contestação da Ordem Internacional, vigente desde o término da 2ª Guerra Mundial, reforçada pelo fim da Guerra Fria, segundo a qual os EUA ainda se apresentam como potência hegemônica. O desafio militar russo e a ascensão chinesa impõem aos norte-americanos uma série de desafios, no sentido de tentar manter sua proeminência geopolítica, sendo o que se constata com a publicação das Estratégias.

Esse tensionamento entre as grandes potências causa reflexos em todo o mundo. Na América do Sul, ele é percebido com crescente intensidade, com movimentos de ambos os oponentes para conter o adversário e atrair os sul-americanos para sua esfera de influência.

Os governos do subcontinente – e do Brasil, em especial – terão o desafio de atuar com equilíbrio, na busca por alcançar seus próprios objetivos sem abrir mão de seus princípios, mantendo a estabilidade e buscando o desenvolvimento regional, sempre com o foco nos próprios interesses nacionais e na manutenção da paz.

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A nova Estratégia de Segurança dos EUA

Os Estados Unidos divulgaram a sua nova Estratégia Nacional de Segurança no último dia 12 de outubro. O documento desvela a maneira como os norte-americanos enxergam o mundo e define os princípios que guiarão suas ações estratégicas para conformá-lo de forma que, no futuro, esteja alinhado aos seus interesses e princípios.

O mundo, de acordo com o diagnóstico do documento, está atravessando um momento crucial, sendo os próximos anos decisivos para a definição do futuro dos EUA e de todo o planeta. Nessa circunstância, os Estados Unidos teriam dois grandes desafios estratégicos: o primeiro seria a competição com a China, cujo resultado definiria a ordem internacional pós Guerra Fria. O segundo seria o enfrentamento dos desafios compartilhados globalmente, quais sejam, as mudanças climáticas, a insegurança alimentar, as doenças pandêmicas, o terrorismo, a escassez energética e a inflação. Por serem desafios compartilhados, esses últimos exigiriam a cooperação entre os países. Entretanto, essa cooperação estaria sendo dificultada pelo próprio ambiente de competição geopolítica, que alimentaria nacionalismos e populismos.

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No documento, os EUA se posicionam como líderes das democracias do mundo no enfrentamento das autocracias. A Rússia é apresentada como uma ameaça imediata à ordem internacional aberta e livre, pelo desrespeito à lei internacional e pela invasão à Ucrânia. Os russos são acusados de atuar contra os interesses norte-americanos em várias partes do mundo e, inclusive, dentro dos EUA. O apoio decidido à Ucrânia é reafirmado, bem como a intenção de conter a Rússia em todos os campos do poder.

A China, entretanto, é apresentada como o verdadeiro competidor dos EUA, uma vez que teria a intenção de reconfigurar a ordem internacional em seu próprio benefício e, consequentemente, em desfavor dos norte-americanos.

Ao afirmar que pretendem competir com a China, os EUA asseveram, dentre outras coisas, que irão apoiar seus aliados no Indo-Pacífico para que tomem suas decisões de forma livre da coerção chinesa. Também dizem que irão responsabilizar Pequim por “genocídio e crimes contra a humanidade em Xinjiang, violação dos direitos humanos no Tibet e desmantelamento da autonomia e das liberdades em Hong Kong”.

Em relação a Taiwan, os norte-americanos afirmam que a paz e a estabilidade do Estreito de Taiwan são críticas para a segurança da região e do mundo. Afirmam continuar apoiando a política de “uma só China”, não apoiando a independência da ilha. Dizem ainda ser contrários a que qualquer dos lados promova tentativas de mudança no “status quo” da região. Entretanto, de acordo com a lei que rege as relações do país com Taiwan, manterão o apoio militar para que Taiwan esteja em condições de se defender de qualquer agressão chinesa.

A crise climática recebe destaque, sendo apresentada como o “desafio existencial do nosso tempo”. Afinal, o aquecimento do planeta colocaria em perigo os norte-americanos e as pessoas de todo o mundo, arriscando os suprimentos de comida e água, a saúde pública, a infraestrutura e própria segurança nacional norte-americana. O documento afirma ainda que sem uma ação global imediata para reduzir as emissões, cientistas afirmam que em breve serão excedidos os 1,5ºC de aquecimento, o que ocasionaria o aumento do nível do mar e uma perda catastrófica de biodiversidade.

Ao tratar da postura dos EUA em relação às regiões do mundo, os EUA deixam clara sua opção pela Ásia, mais especificamente pela região do Indo-pacífico, considerada o epicentro da geopolítica no século 21. A aliança atlântica, entretanto, não é esquecida, e os EUA reafirmam seu compromisso com a OTAN e seus parceiros europeus. A América do Sul não é citada, sendo região englobada quando o documento se debruça sobre o Hemisfério Ocidental. Entretanto, os EUA falam em proteger a região da “interferência e coerção” que seriam praticadas por Rússia, China e Irã contra países da região. O Brasil não é citado no documento. Apenas a Amazônia, uma vez e superficialmente, para se falar na necessidade de preservação daquele bioma.

O documento deixa nítido o entendimento norte-americano de que, apesar da guerra na Ucrânia e das ameaças nucleares que ressurgiram com ela, o mundo caminha para uma nova disputa bipolar, entre EUA e China. Será, portanto, na China, que estarão a atenção e o foco da política exterior norte-americana.

Leia a Estratégia de Segurança:

Biden-Harris-Administrations-National-Security-Strategy-10.2022

Leia a Estratégia de Defesa

2022-NATIONAL-DEFENSE-STRATEGY-NPR-MDR

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A nova estratégia de segurança russa

No último dia 02 de julho, o presidente Vladimir Putin assinou a nova Estratégia de Segurança da Rússia. O documento substituiu a que estava em vigor, que datava de 2015. A renovação da Estratégia era esperada, uma vez que esses documentos são concebidos para vigorarem por seis anos.

Em 44 páginas, os estrategistas russos anunciam que o mundo passa por uma fase de transição, com a emergência de potências interessadas em modificar a ordem global, antes fortemente marcada pela unipolaridade representada pela proeminência de uma única superpotência e de seus aliados, para uma nova ordem, marcada pela multipolaridade. Essa transição teria o potencial de causar conflitos, pois a perda da primazia pelo Ocidente geraria distúrbios e reações, cada vez mais graves.

Os principais objetivos para a defesa dos interesses nacionais da Federação Russa seriam: preservar a unidade da nação, proteger o sistema constitucional, apoiar a sociedade civil, desenvolver o espaço informacional, desenvolver a economia, proteger o meio ambiente, fortalecer os valores tradicionais e manter estabilidade social, especialmente em face de ameaças externas.

A aproximação dos países da OTAN das fronteiras russas é apresentada no documento como sendo a principal ameaça à segurança nacional russa, que acusa os EUA de abandonarem acordos de desarmamento, levando a uma corrida armamentista. Essas ameaças são apontadas como razões para que a Rússia fortaleça ainda mais seu potencial militar.

Os russos apontam no documento a ação de forças estrangeiras, que atuariam tanto em território russo quanto no exterior, explorando dificuldades socioeconômicas para enfraquecer a coesão interna do povo russo. O documento também acusa o ocidente de atuar contra os valores tradicionais dos russos, impondo uma exacerbação do individualismo, propagandeando atitudes egoístas e culto à violência, numa tentativa de destruir a soberania e a cultura da Federação Russa.

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autor – Steven Lee Myers

O ocidente também é acusado de, ao impor sanções econômicas e comerciais, dificultar as exportações russas de recursos naturais. O documento também identifica ações de contenção aos planos russos de desenvolver novas rotas comerciais, inclusive no Ártico.

Os russos pretendem diminuir as transações em dólar, com o objetivo de fortalecer a própria moeda. Os estrategistas russos reconhecem a necessidade de desenvolver e diversificar a economia do país, que precisaria passar a produzir e exportar itens de maior valor agregado, além de atuar para reduzir a dependência que a economia do país possui em relação a tecnologias importadas.

Sempre de acordo com o documento, a Federação Russa buscaria, em suas relações internacionais, os seguintes objetivos: fortalecer a estabilidade do sistema legal internacional, a fim de impedir sua aplicação de forma seletiva; fortalecer a paz mundial, evitando a eclosão de uma guerra mundial; aprimorar os mecanismos internacionais de segurança coletiva; impedir o uso de forças armadas em desacordo com o previsto na Carta da ONU; aprofundar a cooperação com os Estados-membros da CEI[1], Abecásia, Ossétia do Sul[2] e com os Estados-parte da União Eurasiana; desenvolver uma cooperação estratégica com China e Índia; participar ativamente dos BRICS; trabalhar pela estabilização de situações de crise em países fronteiriços à Rússia; fortalecer laços fraternais entre as nações russas, bielorrussas e ucranianas e; contrapor-se às tentativas de falsificar a história.

Como se vê, a Estratégia de Segurança da Rússia aponta para uma maior aproximação do país da China e da Índia e continua reconhecendo a OTAN como principal inimiga. O documento enfatiza que os russos se consideram vítimas de uma guerra cultural, onde os “valores russos” estariam sendo atacados pelo ocidente, com o objetivo de enfraquecer a coesão nacional. Os russos dão grande importância à sua área de influência, especialmente aos países que lhe fazem fronteira. As referências à Belarus e Ucrânia não são em vão, pois trata-se de dois países emblemáticos na disputa por influência travada entre russos e ocidentais.

Todo documento dessa natureza tem, entre seus objetivos, passar mensagens tanto para o público interno quanto para a comunidade internacional. Neste caso, não há muito espaço para dúvidas. Os russos traçaram as linhas vermelhas que, de seu ponto de vista, não devem ser ultrapassadas pelo ocidente. O problema é que, ao ler os documentos similares dos países da OTAN[3], descobre-se que, do ponto de vista da Aliança do Atlântico Norte, as linhas vermelhas não são coincidentes. É nesse descompasso que está a maior ameaça à paz mundial.

Acesse ao documento aqui Estratégia Nacional de Segurança a Rússia

[1] A CEI (Comunidade dos Estados Independentes) foi criada em 1991, após a desagregação da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Os países integrantes são: Armênia, Belarus, Cazaquistão, Federação Russa, Moldávia, Quirquistão, Tadjiquistão, Ucrânia, Uzbequistão, Azerbaijão e Turcomenistão (membro associado).

[2] Abecásia e Ossétia do Sul são regiões da Geórgia que foram reconhecidas como independentes pela Federação Russa.

[3] Fiz a análise de documentos dos EUA, OTAN e do Reino Unido, disponíveis em https://paulofilho.net.br/2018/03/26/mudancas-nas-prioridades-de-defesa-norte-americanas/ , https://paulofilho.net.br/2020/12/06/a-visao-da-otan-para-2030/ , e

https://paulofilho.net.br/2021/03/23/como-os-britanicos-veem-seu-papel-no-mundo-em-2030-e-como-estao-se-preparando-para-exerce-lo/




Você conhece o livro A ARTE DA GUERRA, de Sun Tzu?

O autor de “Arte da Guerra” na verdade se chamava Sun Wu. “Tzu”, ou “Zi”, como é mais comumente chamado na China, significa algo como “Mestre” ou “Venerável”. Logo, Sun Tzu significa “O Mestre Sun”.

Ele nasceu na cidade de Lean (hoje Huimin, província de Shandong), por volta de 550 AC, na província de Qi, mas veio a tornar-se General do estado de Wu.

A Batalha de Boju, em 506 AC, ficou conhecida como a mais importante vitória em combate dentre as obtidas por Sun Tzu.O Estado de Wu estava em guerra contra o Estado de Chu. Sun Tzu assumiu o comando das tropas após impressionar o Rei He Lu com seu conhecimento militar e seu tratado, sobre a Arte da Guerra.

A Arte da Guerra é uma obra-prima do pensamento militar. Sua importância transcendeu o tempo, tornando-se um clássico obrigatório, não só para militares, mas para todos que se interessam por estratégia, no ocidente e no oriente.

O livro está estruturado em treze capítulos:

  1. Estabelecendo planos
  2. Em combate
  3. A Estratégia de ataque
  4. Disposições táticas
  5. O uso da energia
  6. Pontos fortes e fracos
  7. Manobrando
  8. Variações táticas
  9. Em marcha
  10. Terreno
  11. As nove situações
  12. O ataque com fogo
  13. O uso de espiões

A obra pode ser dividida em duas partes. Nos seis primeiros capítulos, de “Estabelecendo planos” até “Pontos fortes e fracos”, o autor aborda principalmente aspectos do nível estratégico, enfatizando a tomada de decisão, a análise da estratégia adotada pelo inimigo e cálculos de poder de combate. Nos sete capítulos seguintes, a análise vai ao nível tático, com aspectos relacionados à ofensiva, à defensivas e ao resultado dos combates.

Logo na primeira frase primeiro capítulo, “Estabelecendo planos”, Sun Tzu alerta para a importância capital da guerra para o Estado.

A Arte da Guerra é de vital importância para o Estado. É questão de vida ou morte, uma estrada tanto para a segurança quanto para a ruína. Portanto, é um tema de estudos que não pode, de forma nenhuma, ser negligenciado.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 1

Ainda no primeiro capítulo, são listados cinco fatores que devem ser sempre levados em consideração na tomada das decisões: a lei moral, o céu, a terra, o comandante e o método e a disciplina.

Pela lei moral, segundo Sun Tzu, os governados seguiriam seu soberano, à despeito do risco de suas vidas, em uma guerra. O soberano, para tanto, deveria reunir os predicados morais para conquistar essa confiança, sendo sábio, sensato, honesto e justo.

O céu dizia respeito ao clima, à hora da batalha, à estação do ano.

A terra está relacionada ao terreno, às distâncias, às passagens largas ou estreitas, aos campos fechados ou abertos.

O comandante deveria ser avaliado por sua sabedoria, honradez, habilidades guerreiras, confiança, benevolência, severidade e justiça.

O método e a disciplina se referem à organização do exército e seu preparo logístico.

Assim, Sun Tzu traça princípios basilares que, se atendidos, levariam os exércitos à vitória.

No encerramento do capítulo, Sun Tzu dá ênfase ao logro.

Todas as guerras são baseadas no logro. Portanto, quando capazes de atacar, devemos parecer incapazes, ao usarmos as nossas forças, devemos parecer inativos, quando estivermos próximos, devemos parecer distantes e quando distantes, devemos parecer próximos.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 1

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No segundo capítulo, Sun Tzu alerta para as campanhas prolongadas que acabam por exaurir os recursos do Estado. O que realmente importa na guerra, é uma rápida vitória, e não campanhas prolongadas. Assim, a principal ideia do primeiro capítulo é a importância de um planejamento detalhado, que considere fatores fundamentais para uma boa decisão, que sempre deverá ser implementada com a máxima utilização da dissimulação, do logro, do engano.

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Adaptação e prefácio de James Clavell

No terceiro capítulo, Sun Tzu trata das estratégias ofensivas. É neste capítulo que se encontra a famosa frase de que “lutar e vencer todas as batalhas não é a excelência suprema; a excelência suprema é quebrar a resistência do inimigo sem lutar”.

Para Sun Tzu, o General habilidoso é aquele que sabe o momento de lutar e o de não lutar. Aquele que souber manipular suas forças, sendo inferiores ou superiores em número. Aquele cujo exército, estando preparado, souber esperar o momento em que o inimigo estiver despreparado.

Para isso, o deverá conhecer muito bem o seu exército e o exército inimigo.

Se conheceres o inimigo e a ti mesmo, não temas o resultado de cem batalhas. Se conheceres a ti mesmo, mas não ao inimigo, para cada vitória, terás uma derrota. Se não conheceres nem a ti mesmo, nem ao inimigo, sucumbirás a todas as batalhas.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 3

No capítulo 4, Sun Tzu assevera que o guerreiro habilidoso, primeiro coloca-se em posição de não ser derrotado, para só então aguardar a oportunidade de derrotar o inimigo.

O grande guerreiro, também, não apenas vence; mas vence com facilidade. Isso acontece porque ele não comete erros e também por colocar-se em uma posição que torna a derrota impossível.

Como se vê, neste capítulo, mais uma vez Sun Tzu enfatiza a importância de um planejamento minucioso, que explore as vulnerabilidades do inimigo e respeite o momento certo de se fazer a guerra.

A ideia principal do capítulo 5 é a utilização máxima da força do exército, atacando o inimigo da forma mais eficiente possível. Sun Tzu utiliza a figura de uma pedra lançada contra um ovo para caracterizar o emprego correto da massa de um exército contra um ponto vazio ou mal defendido pelo inimigo.

Sun Tzu fala no emprego de dois tipos de tropas, as regulares (Zheng), e as extraordinárias (Qi). Essas duas devem ser empregadas em combinação, de múltiplas formas, com flexibilidade, para se alcançar a vitória. As forças regulares serão necessárias para engajar-se nas batalhas, mas as extraordinárias, para assegurar a vitória. As táticas utilizadas pelas forças extraordinárias são aquelas surpreendentes e singulares. As táticas das forças regulares são as habituais.

No capítulo 6, Sun Tzu explora a importância de se obter vantagem sobre o inimigo. Esta vantagem é obtida pela surpresa, pela velocidade, pelo sigilo.

Táticas militares são como águas que fluem, pois a água em seu curso natural precipita-se dos locais altos para os baixos. Do mesmo modo, na guerra, o caminho é evitar o forte e atacar o que é fraco. A água molda seu curso de acordo com o solo sobre o qual ela flui. Do mesmo modo, o soldado realiza sua vitória de acordo com o inimigo que está enfrentando.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 6

Assim como a água não possui forma constante, na guerra não existem condições constantes. O bom capitão é aquele que consegue modificar suas táticas de acordo com cada oponente, obtendo assim a vitória.

A partir do capítulo 7, Sun Tzu passa a fazer considerações de um nível mais tático que estratégico. Volta a enfatizar a importância da dissimulação e do sigilo. Também enfatiza a importância das manobras desbordantes e envolventes.

Fala da dificuldade de comunicação na confusão da batalha, ressaltando a importância do uso de bandeirolas, estandartes e tambores, como instrumentos de transmissão de ordens. Nesse sentido fica clara a preocupação com o que modernamente se considera o Comando e Controle.

Lista uma série de recomendações táticas, como nunca atacar estando seu exército em parte mais baixa do terreno, com o inimigo no alto, ou nunca cercar completamente um inimigo, deixando uma rota de fuga para evitar pressionar demais um inimigo desesperado.

As recomendações eminentemente táticas continuam no capítulo 8. O Comandante deve executar seu planejamento após um minucioso estudo do terreno e do inimigo.

A arte da guerra nos ensina a não confiar na possibilidade de que o inimigo não venha, mas na nossa prontidão para recebê-lo; não na possiblidade de que ele não ataque, mas no fato de que fazemos nossa posição inexpugnável.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 8

Nos capítulos 9, 10 e 11, Sun Tzu continua tratando de aspectos táticos. Trata da utilização do terreno em marchas e nos acampamentos. Explica como ler os indícios das próximas ações a serem executadas pelo inimigo.Sun Tzu lista 5 erros que podem arruinar um general: a imprudência, que o leva à destruição; a covardia, que o leva a captura; um temperamento irritadiço, que pode ser estimulado por insultos; a de se possuir um sentido de honra muito sensível, que o deixará suscetível à armadilha dos insultos; a de se preocupar demasiadamente com seus homens, que o fará sucumbir a preocupações e problemas.

Trata também das qualidades e defeitos dos generais, com lições de liderança. Afirma que o general que avança sem cobiçar a fama e retrocede sem temer a desonra, cujo pensamento é apenas proteger a sua terra e prestar bom serviço a seu soberano, é a “joia do reino”.

Considera teus soldados como teus filhos e eles te seguirão até o mais profundo dos vales; cuida deles como teus próprios amados filhos e eles estarão a teu lado, até mesmo para a morte. Se, no entanto, fores indulgente, mas incapaz de fazeres sentida tua autoridade, bondoso, mas incapaz de fazer cumprir teus comandos e, ademais, incapaz de reprimires a desordem, então, teus soldados devem ser comparados a crianças mimadas. Eles são inúteis para quaisquer propósitos práticos.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 10

Por fim, lista nove tipos de terrenos onde pode haver combate, tratando de como deve se desenvolver o combate em cada um deles.

Nos capítulos 12 e 13, Sun Tzu trata de dois tópicos especiais. Como utilizar o fogo nas ofensivas e como empregar os espiões.

A Arte da Guerra é um livro espetacular, que merece uma leitura reflexiva. Não só por sua incrível abrangência, ao tratar de aspectos estratégicos e táticos, como por sua incrível atualidade, mesmo passados 2,5 mil anos de sua redação.

Ao fazer sua leitura, entretanto, há que se estar atento à tradução realizada. Via de regra, as traduções são feitas do chinês para o inglês e deste, para os demais idiomas, o que pode resultar em interpretações bem distintas da original. A língua chinesa é extremamente concisa. Diferentemente do pensador ocidental, o pensador chinês não defende discursivamente suas ideias. Assim, o pensamento de Sun Tzu foi interpretado ao longo dos séculos, por uma tradição tipicamente chinesa de comentaristas. Dessa forma, cabe ao leitor fazer sua interpretação do que foi escrito. Isso é tão importante quanto o que está redigido literalmente.

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UM MUNDO MULTIPOLAR

O general fuzileiro naval James Mattis, secretário de Defesa dos Estados Unidos, esteve em visita à Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, em 14 de agosto. Foi apenas uma das escalas do militar da reserva em sua viagem à América do Sul, que também incluiu a Argentina, o Chile e a Colômbia. Em sua palestra para os alunos do Curso de Altos Estudos, Política e Estratégia (Caepe), o experiente soldado, comandante de tropas nas guerras do Iraque e do Afeganistão, destacou que selecionara três prioridades no desempenho de sua função, equivalente à de Ministro da Defesa na estrutura brasileira.

A primeira prioridade seria aumentar a letalidade dos militares americanos, de modo a aumentar também a dissuasão em face de possíveis agressores. A segunda seria ampliar e fortalecer o relacionamento das Forças Armadas norte-americanas com as forças dos países aliados. E a terceira prioridade, melhorar as práticas gerenciais e o trato com o dinheiro público no âmbito do Departamento de Defesa.

Neste artigo, vou me ater às duas primeiras prioridades citadas. A primeira alinha-se perfeitamente com o movimento feito pelos EUA no sentido de redirecionar sua estratégia de defesa e reestruturar suas Forças Armadas. Após um período em que se dedicou quase que exclusivamente à guerra assimétrica, enfrentando oponentes que de forma alguma poderiam contrapor-se ao poderio econômico, bélico e industrial norte-americano, os EUA agora reconhecem que, na atual realidade de distribuição multipolar do poder, podem ser desafiados por oponentes com capacidade militar equivalente ou mesmo, em alguns aspectos, superior. Estamos falando da Rússia e da China.

Para fazer face a esse desafio os EUA reestruturam suas Forças Armadas. Recentemente foi criado um Comando para o Exército do Futuro, focado no desenvolvimento de novas capacidades e na adoção de novas tecnologias para o Exército. Isso para não falar na anunciada e ainda não muito clara criação da chamada Força Espacial, que seria mais uma força armada norte-americana.

Quando falou da segunda prioridade, o general Mattis deixou clara a finalidade de sua visita. Estava tratando justamente de tentar “ampliar e fortalecer o relacionamento com os países aliados”. Fez referência a um valor caríssimo aos militares de todo o mundo: a camaradagem e a amizade forjada nos campos de batalha. Citou o fato histórico da aliança que uniu brasileiros e americanos nos campos de batalha da Itália durante a 2.ª Guerra Mundial e lembrou o fato de sermos, Brasil e Estados Unidos, as duas maiores democracias do Ocidente. Elogiou a Escola Superior de Guerra e lembrou a presença constante de estudantes americanos na instituição.

Falou ainda sobre o que entende ser o objetivo de nações que têm “valores comuns” e “interesses compartilhados”: a construção de um hemisfério que seja uma “ilha de democracia e prosperidade num mundo instável”. A transcrição do discurso do general Mattis pode ser encontrada no site da ESG.

O movimento da diplomacia militar norte-americana em direção aos principais países sul-americanos coincidiu com um fato diplomático significativo. Como se sabe, a China considera Taiwan uma província rebelde e não aceita que os países mantenham relacionamento diplomático com o governo da ilha. Fazer essa escolha implica necessariamente abrir mão de ter relações diplomáticas com a China.

Pois bem, praticamente ao mesmo tempo que Mattis visitava a América do Sul, na América Central, El Salvador, que mantinha relacionamento diplomático com Taiwan, mudou de posição e passou a reconhecer a República Popular da China. Atualmente, apenas 16 países no mundo, além do Vaticano, ainda optam por se relacionar com Taiwan, ao invés da China, a grande maioria da América Central e do Caribe – Belize, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua, Santa Lúcia e São Vicente e Granadinas são exemplos. O movimento de El Salvador foi feito pouco tempo depois de o Panamá e a República Dominicana terem feito o mesmo. É desnecessário salientar quão significativo do ponto de vista geopolítico é a balança mudar de lado justamente nesses países localizados geograficamente tão perto dos EUA.

O aumento da influência econômica chinesa nas Américas do Sul e Central é evidente. As trocas comerciais entre o gigante asiático e a América Latina e o Caribe chegaram a US$ 244 bilhões ano passado, duas vezes mais que uma década antes, de acordo com o Global Development Policy Center, da Boston University. Desde 2015 a China é o principal parceiro comercial da América do Sul. As vendas de equipamentos militares também são crescentes. Destaca-se a Venezuela, mas várias outras nações das América do Sul e Central e do Caribe têm adquirido diversos tipos de materiais de defesa dos chineses.

Isso ao mesmo tempo que do outro lado do mundo a “Nova Rota da Seda” (Belt and Road Initiative, na tradução chinesa para o inglês), a principal ação de relações exteriores do governo Xi Jinping, ganha impulso. Trata-se de uma iniciativa que visa a fortalecer os laços econômicos com os países da Ásia, África e Europa, o que poderia, em tese, criar uma dependência econômica que alinharia esses países à China e aos seus interesses geopolíticos.

O mundo vive uma era de crescentes riscos para a segurança e nós deveríamos estar atentos aos “tombos dos dados” que podem afetar-nos como país, conforme bem destacou o professor Celso Lafer em artigo neste espaço, em 19 de agosto. E como ele lembrou, citando Hanna Arendt, “somos do mundo, e não apenas estamos no mundo”.

As disputas geopolíticas estão sendo travadas à luz do dia e nos afetam. O Brasil, por seu tamanho, sua importância, sua História e seu destino, não pode ficar a reboque dos acontecimentos.




O ENCONTRO DE CÚPULA DE HELSINQUE

Um dia após premiar os franceses, campeões da Copa da Rússia, perante uma audiência global de mais de 1 bilhão de pessoas, Vladimir Putin viajou a Helsinque, capital da Finlândia, para encontrar-se com o presidente dos EUA, Donald Trump.

O encontro ocorreu após uma intensa movimentação diplomática de ambos os presidentes. Putin vinha de encontrar-se na semana anterior com Ali Akbar Velayati, ex-ministro das Relações Exteriores do Irã, homem de confiança e conselheiro do presidente Ali Khamenei. Antes disso, em 11 de julho, reunira-se com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu. A guerra civil na Síria certamente esteve na pauta das conversas.

Trump encerrou com o encontro de Helsinque uma atribulada viagem à Europa, que se iniciou em Bruxelas, com a reunião dos países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Foi um encontro tenso, no qual Trump exigiu que países-membros da aliança militar aumentassem seus gastos com defesa. Ao mesmo tempo, criticou fortemente a Alemanha por, no seu entender, depender excessivamente do fornecimento de gás natural russo. De Bruxelas, seguiu para Londres, para encontrar-se com a primeira-ministra Thereza May. Lá, concedeu uma entrevista em que criticou May pela forma como está conduzindo a saída do Reino Unido da União Europeia. Trump ainda encontrou tempo para chocar os líderes europeus declarando que a União Europeia seria “inimiga comercial” dos EUA.

A semana que antecedeu a reunião de Helsinque contextualiza o encontro e mostra como é o momento dos dois presidentes. Putin vive fase de grande visibilidade, surfando a onda positiva de ter sido o anfitrião de uma Copa do Mundo. Trump, bastante criticado no seu país e na Europa, acusado de tratar melhor os russos, inimigos históricos, do que os próprios aliados europeus. Como se não bastasse, no dia do encontro uma sequência inacreditável de publicações no Twitter expôs Trump a uma onda de críticas ainda maior. Ele escreveu que o relacionamento entre os EUA e a Rússia nunca tinha estado tão ruim quanto atualmente graças a muitos anos de “tolices e estupidez” dos próprios EUA. Imediatamente depois, a conta oficial do Ministério das Relações Exteriores russo respondeu simplesmente: “Nós concordamos”. Talvez seja um caso único na história em que um presidente publicamente e algumas horas antes de se encontrar com o maior adversário reconhece que os problemas que existem entre seus países são de sua própria culpa.

Os problemas a que o presidente Trump se refere e que colocaram as relações entre Rússia e EUA num nível alto de tensão são variados e complexos. Há a questão da interferência dos russos, acusados de atuar por meio de ações de guerra cibernética nas eleições americanas de 2016. Há, também, a guerra civil na Síria, com toda a sua complexidade, que opõe nos campos de batalha sírios coalizões lideradas, de um lado, pelos EUA e, de outro, pelos russos. Outro ponto de grande sensibilidade são a anexação da Crimeia e a ação militar russa (encoberta, mas nem tanto) na Ucrânia, que é a causa das sanções econômicas impostas à Rússia pelos EUA e por seus aliados.

Como se vê, assuntos a serem resolvidos – ou pelo menos que merecessem alguma tentativa de encaminhamento de soluções futuras – não faltavam. Entretanto, na entrevista coletiva concedida ao término da reunião, Trump focou suas respostas na política interna, preocupado em tentar demonstrar que os russos não interferiram nas eleições que o conduziram ao poder. Afinal, admitir tal interferência, tida como certa pelas próprias autoridades das agências de inteligência norte-americanas, seria de alguma forma admitir uma sombra de ilegitimidade no processo eleitoral que o conduziu à presidência. Para isso, disse que Putin negara peremptoriamente tais ações e que ele não tinha nenhum motivo para desconfiar de que isso não fosse verdade. Evidentemente, Putin disse o mesmo. Quanto à crise da Ucrânia/Crimeia, nenhuma novidade. Quanto à Síria, a reafirmação de que ambos os países estão combatendo os terroristas. Ou seja, quanto aos assuntos que realmente importam do ponto de vista geopolítico, nada de relevante.

Ou quase nada. Putin e Trump afirmaram que a era de desconfianças da guerra fria não deveria existir mais, que o mundo hoje mudou e que não deveria haver razão para tensões entre Rússia e EUA.

Essa afirmação não encontra amparo na realidade e é negada pelos próprios documentos de nível político/estratégico de ambos os países. A Estratégia Nacional de Defesa dos EUA, documento de janeiro deste ano, portanto da administração Trump, identifica que os EUA enfrentam uma era em que a competição estratégica entre os Estados é a maior ameaça à segurança e cita a Rússia como um país que viola fronteiras e pressiona diplomática e economicamente seus vizinhos.

Já os russos, em sua Estratégia de Segurança Nacional, publicada em 31 de dezembro de 2015, citam que os EUA e aliados, a fim de manter a atual dominância sobre os assuntos internacionais, adotam uma “política de contenção” que se opõe à implementação de uma política externa russa independente. Expressa, ainda, que a Otan atua em violação às normas do Direito Internacional, expandindo as atividades militares em direção às fronteiras da Rússia, sendo uma ameaça à segurança daquele país.

Ou seja, o discurso de Trump foi focado em seus problemas internos e não levou em consideração os graves desafios geopolíticos identificados nos documentos produzidos por sua própria administração. Já Putin, para aproveitar a metáfora futebolística, entrou em campo e nem precisou se defender. O adversário cedeu o terreno e ele jogou solto, fez embaixadinhas para a torcida e correu para o abraço. A torcida adversária e os comentaristas não entenderam nada…




NOVA ESTRATÉGIA DE DEFESA DOS EUA E ATAQUE À SIRIA

Na sexta-feira 13 de março, EUA, Reino Unido e França lançaram um ataque contra instalações governamentais sírias que seriam locais de produção e armazenamento de armas químicas. As potências ocidentais justificaram a ação como sendo uma retaliação pelo emprego desse tipo proibido de armamento pelo governo de Bashar Assad contra rebeldes na localidade de Douma.

Analistas apressam-se a encontrar explicações e justificativas para o ataque. Neste texto pretendo mostrar que uma leitura da nova Estratégia de Defesa dos EUA, tornada pública em janeiro, pode auxiliar no entendimento global da situação.

A nova Estratégia de Defesa é assinada por Jim Mattis, atual secretário de Defesa. Mattis é general fuzileiro naval da reserva. Trata-se de um secretário de Defesa respeitado entre os profissionais militares, experiente e experimentado em combate.

Logo no primeiro parágrafo do documento está escrito que o emprego das Forças Armadas dos EUA são opção para, reforçando as tradicionais ferramentas diplomáticas do país, o presidente e os diplomatas negociarem em posição de força. A estratégia reconhece claramente que a superioridade militar que os EUA ainda têm sobre seus possíveis adversários está diminuindo. Isso confere ao texto um sentido de urgência na busca do restabelecimento de uma superioridade militar que volte a ser ampla e incontestável.

A edição marca uma nova visão norte-americana em relação à defesa. A chamada guerra ao terror perde importância. A competição entre Estados nacionais passa a ser (novamente, a exemplo dos tempos de guerra fria) a primeira preocupação dos EUA no que se refere à segurança nacional.

Os adversários nominalmente citados são China, Rússia, Coreia do Norte e Irã. O primeiro é acusado de militarizar o Mar do Sul da China e de usar o poder econômico para intimidar vizinhos. Ao segundo se atribui violação de fronteiras e intimidação de países lindeiros. A Coreia do Norte é listada pela busca do desenvolvimento de tecnologia nuclear para fins militares e pelo programa de desenvolvimento de mísseis intercontinentais. Ao Irã se atribui a instabilidade no Oriente Médio, especialmente pela busca de hegemonia regional e pelo patrocínio de atividades terroristas.

Neste momento em que o governo sírio parece estar cada vez mais próximo de retomar o controle sobre todo o país, dois dos adversários citados na Estratégia de Defesa, Rússia e Irã, aliados de Assad, desempenham papel cada vez mais influente na Síria e no Oriente Médio. Na ação realizada na Síria os EUA demonstram mais uma vez aos dois antagonistas que o país ainda detém inegável superioridade militar e não vai ficar inerte vendo seus adversários ampliarem a influência política naquela região.

Voltando à leitura do documento, encontra-se a afirmação de que um ambiente internacional muito mais complexo, de mudanças tecnológicas e de crescentes desafios à segurança exige Forças Armadas mais letais, resilientes e inovadoras. Determina ainda o fortalecimento das alianças e a atração de novos parceiros internacionais. Ora, o que se viu na ação da última sexta-feira foi a reafirmação da aliança das maiores potências militares da Otan e do Ocidente, não por acaso membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU: EUA, Reino Unido e França.

A Estratégia de Defesa mostra ainda outros pontos que merecem atenção. Afirma que a construção de uma Força Armada preparada para vencer a guerra exige que se atribua alta prioridade à sua preparação e ao seu adestramento. Assim, cita-se a necessidade de uma suficiente e contínua dotação orçamentária. Da mesma forma, capacidades-chave devem ser modernizadas. As forças nucleares, o espaço e o ciberespaço, os sistemas de comando e controle e de comunicações, as defesas antimísseis, inteligência artificial, robótica e logística, dentre outros, são aspectos que devem merecer atenção e modernização.

É uma espécie de reencontro das Forças Armadas com sua vocação primária. Após uma fase em que a guerra ao terror enfatizava técnicas, táticas e procedimentos adequados ao combate de contrainsurgência, completamente diferentes dos destinados ao combate convencional, retorna-se agora com toda a ênfase ao clássico inimigo identificado como sendo um ente estatal. Isso certamente trará grandes e profundas consequências no preparo e no emprego das tropas norte-americanas. Apenas um exemplo dessas mudanças: forças sobre rodas e com blindagens leves deverão gradativamente ser substituídas por forças pesadas e de maior blindagem.

No campo das relações internacionais, o documento enfatiza a importância de reforçar alianças e atrair novas parcerias. Enfatiza as regiões do Indo-Pacífico, da Europa e do Oriente Médio, sem deixar de citar a importância de um Hemisfério Ocidental estável. Chamam a atenção, pelo claro desafio aos interesses chineses e russos, as diretrizes de expandir as alianças na região do Indo-Pacífico, especialmente pelo estabelecimento de relações bilaterais e multilaterais de segurança com os países daquela área, e de fortalecer a Otan, com o objetivo de dissuadir ações russas e de controlar o arco de instabilidade na periferia da Europa.

Ao anunciar claramente suas novas prioridades estratégicas, o documento marca a firme tomada de decisão da superpotência global pela manutenção do seu status. Resta saber quais serão os movimentos das potências militares (re)emergentes que terão seus interesses político-estratégicos diretamente afetados, especialmente China e Rússia. As regiões do Mar do Sul da China e o Leste Europeu, além da Península Coreana e o Oriente Médio, devem ser as mais afetadas pelo nova posição norte-americana.