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A viagem de Joe Biden ao Oriente Médio

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, acaba de encerrar uma viagem a Israel, Cisjordânia, e Arábia Saudita. As visitas ocorreram em um momento conturbado, em que a guerra na Ucrânia desorganiza o mercado mundial de gás natural, petróleo e derivados; o Irã caminha a passos largos para a fabricação da arma nuclear e Israel está sendo governado por um gabinete interino, após a renúncia do Primeiro-Ministro Naftali Bennett. A região também vive um momento de acirramento da disputa geopolítica, em que o Irã, a Turquia e a Arábia Saudita disputam primazias e esferas de influência; o Afeganistão está mergulhado no caos econômico após o retorno do Talibã ao poder; e o Líbano passa por grave crise econômica, assim como a Síria, país que enfrenta uma guerra civil há mais de 11 anos. No Iêmen, a guerra civil, que na verdade é travada por procuração entre iranianos e árabes desde 2014, com os primeiros financiando os rebeldes Houthis e os últimos apoiando o governo, está assistindo a um momento de trégua, negociado pela ONU.

Biden iniciou sua viagem por Israel, país que vive mais um momento político conturbado, com a renúncia do Primeiro-Ministro Naftali Bennett, em junho. Com isso, Biden se reuniu com Yair Lapid, que acabou de assumir um governo interino, até que sejam realizadas novas eleições, no final do ano. O presidente norte-americano também se reuniu com Mahmoud Abbas, líder da Autoridade Palestina. As relações entre israelenses, palestinos e norte-americanos encontra-se ainda mais tensionada do que de costume, em razão do assassinato, por tropas israelenses, da jornalista palestino-americana Shireen Abu Akleh, em maio.

Em Israel, um dos principais focos das conversas de Biden foi o programa nuclear iraniano, que tem alcançado significativos avanços. O país acaba de anunciar que enriqueceu Urânio a 20% utilizando as novas e avançadas centrífugas IR-6 da instalação nuclear de Fordo, construída por razões de segurança no subterrâneo das montanhas da cidade de Qom, ao Sul de Teerã. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) informou no mês passado que o Irã já teria 43 quilos de urânio enriquecido com 60% de pureza – um importante passo para chegar aos 90% necessários para a produção da arma nuclear. Especialistas em não proliferação alertam que se trata de uma quantidade de material físsil suficiente para a fabricação da bomba.

É grande a preocupação israelense com o fato de o Irã estar cada vez mais próximo de alcançar o status de potência nuclear. Existe no país a percepção de que sua própria existência pode ser ameaçada, uma vez que os iranianos não reconhecem a legalidade ou a legitimidade do Estado israelense.

Essa preocupação ficou muito clara na declaração conjunta, divulgada pelos governos dos EUA e de Israel, denominada “Declaração de Jerusalém” ¹. Nela, os EUA reafirmam sua parceria estratégica com os israelenses e seu compromisso com a segurança de Israel, declarando que ela é, também, de interesse da própria segurança dos EUA. Em um trecho especialmente importante da declaração, os EUA enfatizam o compromisso de nunca permitir que o Irã adquira armas nucleares, dizendo-se, inclusive, preparado para usar todos os elementos de seu poder nacional para garantir esse resultado. Tal afirmação refere-se, evidentemente, ao poder militar, em uma clara delimitação de uma “linha vermelha” que não pode ser ultrapassada pelo Irã: tornar-se detentor de armamentos nucleares.

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Joe Biden também esteve na Cisjordânia, onde se encontrou com Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina. No encontro, reiterou o compromisso norte-americano com uma solução para a questão palestina que contemple a existência de dois Estados, o israelense e o palestino, embora tenha dito que este encaminhamento não está maduro “no momento”. Abbas, por sua vez, disse que a chave da paz para a região seria a saída dos israelenses dos territórios ocupados.

A chegada de Biden à Arabia Saudita foi marcada por um gesto simbólico: a viagem do avião presidencial diretamente de Israel à Arábia Saudita, rota até então interditada pelos árabes. Significativamente, em medida simultânea à presença de Biden no país, os sauditas informaram que tal proibição seria retirada, abrindo seu espaço aéreo à chegada de voos comerciais vindos de Israel.

A presença de Biden na Arábia Saudita causou reações desfavoráveis em sua própria base de apoio, os integrantes do Partido Democrata. Ainda durante a campanha eleitoral, Biden declarou que aquele seria um “país pária”. E expressão foi usada em razão do assassinato, em território turco, do jornalista árabe Jamal Khashoggi. A inteligência norte-americana responsabilizou diretamente o príncipe herdeiro, e homem-forte do regime saudita, Mohammed bin Salman, pelo assassinato. Assim, o encontro entre MBS, como Salman é conhecido, e Biden causou constrangimentos a ambas as partes.

Mas o pragmatismo falou mais alto porque, neste momento, a Arábia Saudita é um parceiro ainda mais importante para os EUA. E isso ficou caracterizado pela declaração conjunta ²emitida após o encontro. Nela, se destacam a questão energética, na qual a Arábia Saudita tem um papel fundamental na estabilização do mercado profundamente afetado pela guerra na Ucrânia, uma vez que é o segundo maior produtor de petróleo do mundo, e a questão de segurança, com ambos os países afirmando que é importante impedir que o Irã “interfira em assuntos internos de outros países, patrocine o terrorismo e atue para desestabilizar a região”.

Ainda em território saudita, Biden aproveitou uma reunião do Conselho de Cooperação do Golfo para se encontrar com os demais líderes dos países do Golfo Pérsico: Omã, Kuwait, Bahrein, Catar e Emirados Árabes Unidos (EAU). Além dos países do Golfo, também compareceram à reunião os líderes do Egito, Iraque e Jordânia. Nesse encontro, Biden disse que os EUA não abandonariam o Oriente Médio à China ou à Rússia, em referência à disputa que essas potências travam por influência na região.

A viagem de Biden ao Oriente Médio foi cheia de significados. Mostrou que dois antagonistas históricos, israelenses e árabes, possivelmente deixarão suas diferenças de lado para enfrentar um adversário comum, cada vez mais poderoso: o Irã. Deixou claro também que o Oriente Médio, quer por sua produção petrolífera, quer por sua posição geográfica privilegiada, ainda é uma área de fundamental importância para o jogo geopolítico das grandes potências, razão pela qual os norte-americanos continuarão a tentar fazer valer sua influência na região.

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¹ https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/07/14/the-jerusalem-u-s-israel-strategic-partnership-joint-declaration/?utm_source=twitter

² https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/07/15/the-jeddah-communique-a-joint-statement-betweeen-the-united-states-of-america-and-the-kingdom-of-saudi-arabia/




Disputa geopolítica no Pacífico

As Ilhas Salomão, um arquipélago localizado no sudoeste do Oceano Pacífico, normalmente não recebe destaque nos noticiários internacionais. Isso mudou recentemente, no último mês de abril, quando os governos de Pequim e de Honiara assinaram um acordo bilateral de segurança.

Ilhas Salomão

O acordo prevê o incremento das capacidades de segurança do arquipélago. Inclui ainda cooperação em assistência humanitária, resposta a desastres e esforços para manter a ordem social, entre outros aspectos. O acordo ainda autoriza que navios chineses utilizem os portos do arquipélago para fazer reabastecimentos, manutenção e escalas.

Os EUA e seus aliados no Pacífico Sul – Austrália e Nova Zelândia – viram com preocupação o acordo. A posição estratégica das ilhas – que na Segunda Guerra Mundial marcaram o início da contraofensiva norte-americana contra os japoneses no Pacífico – permite que a China amplie significativamente seu alcance militar no Pacífico Sul. Essas preocupações ocorrem a despeito das afirmações de autoridades, tanto chinesas quanto das Ilhas Salomão, negando a intenção de se instalar uma base militar chinesa nas Ilhas.

A presença chinesa em um arquipélago próximo acionou os alertas de segurança na Austrália. O assunto se tornou importante tema de debates bem na época em que ocorreram as eleições. O novo primeiro-ministro, Anthony Albanese, imediatamente após tomar posse, enviou sua chanceler para as Ilhas Fiji. “Está muito claro que a China está buscando estender sua influência ao que tem sido desde a Segunda Guerra Mundial… a região do mundo onde a Austrália tem sido o parceiro de segurança preferido“, Albanese declarou. Um exemplo do envolvimento da Austrália em questões de segurança na região foi a Missão de Assistência Regional às Ilhas Salomão (RAMSI). Entre 2003 e 2017, a Austrália liderou uma missão militar de assistência integrada por 15 países do Pacífico, com a finalidade de controlar a violência étnica que explodira nas Ilhas Salomão.

Não é de agora que os chineses tratam com mais atenção as nações insulares do Pacífico. O investimento chinês naquela região subiu de US$ 900 milhões, em 2013, para US$ 4,5 bi, em 2018. Um aumento de 400% em 5 anos. De 2010 a 2020, o comércio total de produtos da pesca entre a China e as ilhas do Pacífico aumentou de US$ 35 milhões para US$ 112 milhões.

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Os EUA, por sua vez, fecharam sua embaixada nas Ilhas Salomão em 1993, em um exemplo da negligência norte-americana para com os países insulares do Pacífico. Esse descuido não combina com a visão geopolítica daquele país para com a região. Em 1954, o presidente Dwight D. Eisenhower declarou que os EUA deveriam manter o Pacífico como um “lago americano”. Os americanos têm uma forte presença militar na região por meio do Comando do Indo-Pacífico, com cerca de 375 mil militares e civis, 2.460 aeronaves e 200 embarcações, incluindo 5 Grupos tarefas de ataque, liderados por navios aeródromos. Recentemente, o país divulgou sua Estratégia para o Indo-Pacífico[1], reiterando sua prioridade para a região. Mas, talvez, os norte-americanos tenham concentrado demais suas atenções no Sudeste e Sul asiáticos, deixando de lado os países insulares da Polinésia e da Micronésia. Entretanto, após a divulgação do acordo entre chineses e salomonenses, os EUA anunciaram a reabertura de sua embaixada no país.

O Presidente Biden recentemente retornou de sua visita à Coreia do Norte e ao Japão, onde se reuniu com os chefes de governo dos países do “Quad”, composto, além dos EUA, por Japão, Índia e Austrália. O “Quad” é o “Diálogo Quadrilateral de Segurança”, criado em 2004, em razão do Tsunami, foi revitalizado nos últimos anos como um instrumento de contenção da China. Além disso, na mesma viagem, os EUA lançaram o “Indo-Pacific Economic Framework for Prosperity (IPEF)” com doze parceiros iniciais: os outros três integrantes do Quad, Austrália, Índia, e Japão, mais Brunei, Indonésia, Coreia do Sul, Malásia, Nova Zelândia, Filipinas, Cingapura, Tailândia e Vietnã. Juntos, estes países representam 40% do PIB mundial.

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Os chineses, por sua vez, não restringiram suas ações ao acordo com as Ilhas Salomão. O chanceler chinês Wang Yi, acabou de encerrar uma viagem de dez dias por oito países insulares: as próprias Ilhas Salomão, Kiribati, Samoa, Fiji, Tonga, Vanuatu, Papua Nova Guiné e Timor Leste. Em Fiji, houve um encontro entre os ministros das relações exteriores da China e dos demais países da região. Nesta reunião, os chineses tentaram estabelecer um acordo amplo, envolvendo dez países, que abrangeria vários aspectos, de segurança à pesca. Mas o acordo não foi assinado porque os países não conseguiram chegar a um consenso. Apesar de ter falhado no objetivo de conseguir um acordo amplo, a China assinou, durante a viagem, uma série de acordos bilaterais com vários países.

Como se vê, China e EUA encontram-se em meio a uma acirrada disputa por influência geopolítica na Ásia. Os EUA, a potência até aqui hegemônica no sistema internacional, não quer perder espaço para a China, potência emergente. Nessa dinâmica, cada vez mais, seus interesses ficarão justapostos, causando tensão e atrito. Espera-se que ambos consigam escapar da chamada Armadilha de Tucídides, expressão criada por Graham Alisson para explicar por que, ao longo da história, potências emergentes muitas vezes acabaram por ir à guerra contra as potências até então líderes do sistema internacional.

Este texto foi originalmente publicado no site Hoje no Mundo Militar

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[1] Ver artigo publicado aqui




A estratégia norte-americana no Indo-Pacífico

O governo dos EUA acaba de divulgar sua Estratégia para a Região do Indo-Pacífico. Logo na primeira frase do documento, os norte-americanos afirmam: “Os EUA são uma potência do Indo-Pacífico”. Tal afirmação se baseia em uma interpretação bastante elástica para definir os limites da área, muito mais ampla do que a habitualmente proposta pelos geógrafos, que restringem aquela região à bacia do Índico, ao Sul e Sudeste Asiático e à Oceania. Os EUA aproveitam o fato de serem banhados pelo Pacífico para definir a região como sendo a imensa área, estendida desde sua própria costa oeste até o Oceano Índico, lar de mais da metade da população do mundo, de quase 2/3 da economia mundial e de sete dos dez maiores exércitos do planeta.

Para os norte-americanos, o Indo-Pacífico é vital. Assim, eles resolveram reafirmar seu interesse na região, exatamente no momento histórico em que China e Rússia se posicionam como polos de poder mundial, declaram uma amizade mútua “sem limites” e desafiam abertamente o poderio norte-americano.

No documento, não só se ressalta a importância que a região tem para os EUA, mas também se afirma que os laços com os países da área remontariam a dois séculos, quando os norte-americanos teriam buscado estabelecer contatos comerciais na região. Tais laços teriam sido reforçados pela imigração asiática para os EUA. O documento ainda relembra a atuação de seus militares na 2º Guerra Mundial e as alianças do país com Japão, Coreia do Sul, Austrália, Filipinas e Tailândia.

A estratégia foca em cinco (5) objetivos principais, listados a seguir, os quais serão analisados na sequência:

1. Garantir que a região permaneça “livre eaberta”;
2. Construir conexões no interior e além da região;
3. Conduzir a região à prosperidade;
4. Fortalecer a segurança regional; e
5. Construir uma resiliência regional face às ameaças transnacionais do século 21.

Garantir que a região do Indo-Pacífico permaneça livre e aberta

O primeiro objetivo é um recado nada sutil aos chineses. Segundo o documento, os EUA garantirão aos países da região a tomada de decisões, consistentes com as leis internacionais, de forma independente e livre de coerção. Também ocorrerá o fortalecimento da liberdade de imprensa, das instituições democráticas e uma “vibrante sociedade civil”. A liberdade e a segurança da internet e do ciberespaço são listadas como prioridade, além da garantia do cumprimento das leis internacionais no que se refere aos mares do Sul da China e do Leste da China.

Construir conexões no interior e além da região

O segundo objetivo reforça a importância que os EUA atribuem às alianças com seus tradicionais parceiros na região, afirmando que se
pretende fortalecer as relações com outros países do Indo-Pacífico. Reafirma-se a importância da parceria com o Japão, a Austrália e a Índia no chamado “Diálogo Quadrilateral de Segurança – Quad” e se reforça a importância da Associação das Nações do Sudeste Asiático – ASEAN, afirmando-se o apoio à aproximação daquele grupo com o Quad e também com as nações do sul da Ásia. Os EUA afirmam, ainda, querer contribuir com a construção de pontes entre o Indo-Pacífico e a região Euro-Atlântica, além de estreitar a coordenação das ações dos países da região na Organização das Nações Unidas.

Conduzir a região à prosperidade

O terceiro objetivo reforça que a prosperidade dos americanos está diretamente ligada à região. O comércio entre os EUA e o Indo-pacífico somou US$$1,75 trilhões em 2020, gerando 5 milhões de empregos e os EUA pretendem estabelecer o “Indo-Pacific economic framework”, uma estrutura voltada para a facilitação do comércio, estabelecimento de padrões para a economia digital e tecnologia, criação de resiliência da cadeia de suprimentos, descarbonização e geração de energia limpa, infraestrutura, padrões de trabalho e outras áreas de interesse compartilhado.

Fortalecer a segurança regional

O penúltimo objetivo colimado pela Estratégia trata da segurança regional. O país está presente na região há 75 anos e lá permanecerá,
aperfeiçoando suas capacidades a fim de defender seus interesses e dissuadir agressões ou coerções feitas contra o próprio país ou contra aliados. O documento reafirma que o país continuará empenhado, junto com os parceiros e aliados regionais, na manutenção da estabilidade no Estreito de Taiwan. Afirma-se que a parceria de Defesa com a Índia será reforçada e que os EUA continuarão comprometidos com a
desnuclearização da Península Coreana.

Construir uma resiliência regional face às ameaças transnacionais do século 21

O quinto e último objetivo traçado é o de construir uma resiliência regional face às ameaças transnacionais do século 21. A ameaça destacada é a crise climática, cujo epicentro seria a própria região do Indo-Pacífico, área onde ocorrem 70% dos desastres naturais do mundo. Assim, os EUA se comprometem a estabelecer, junto com os parceiros da região, objetivos, estratégias, planos e políticas com vistas a limitar o aquecimento global a 1,5° Celsius. O enfrentamento da pandemia da Covid-19 também é destacado como um dos esforços que será apoiado pelos EUA.

Para implementar a estratégia e alcançar os objetivos mencionados, o documento lista ações que serão adotadas em até dois anos, reunidas em 10 linhas de esforço, as quais estão resumidas a seguir.

  1. Direcionar novos recursos para a região do Indo-Pacífico: abrir novos consulados e embaixadas, particularmente no sudeste asiático e nas ilhas do Pacífico, expandir a cooperação da Guarda Costeira norte-americana aos países insulares do Pacífico e aos do sudeste asiático
  2. Lançar a Indo-Pacific Economic Framework, uma nova parceria econômica que pretende promover e facilitar as transações econômicas, criar uma governança para a economia digital, melhorar a resiliência das cadeias de suprimentos, catalisar investimentos em infraestrutura e conectividade digital, de forma a dobrar os laços econômicos dos EUA com a região.
  3. Reforçar a dissuasão, de modo a defender os interesses dos EUA e de seus aliados na região, inclusive no Estreito de Taiwan, pelo incremento das capacidades militares, aumento das atividades militares e das iniciativas da Indústria de Defesa. Outro caminho mencionado é a busca do melhor formato para a parceria AUKUS, de modo que a Austrália tenha um submarino de propulsão nuclear no mais curto prazo.
  4. Fortalecer a ASEAN. Os Estados Unidos estão fortalecendo os laços EUA-ASEAN, inclusive promovendo uma Cúpula Especial EUA-ASEAN – a primeira a ser realizada em território norte-americano, em Washington.
  5. Apoiar o crescimento da Índia e sua liderança regional, desenvolvendo a parceria estratégica com o país, de modo a “promover a estabilidade no Sul da Ásia”.
  6. Fortalecer o Quad, de modo que o grupo trate das questões que importam para a região do Indo-Pacífico. O grupo estimulará o desenvolvimento de tecnologias emergentes, e fomentará a cooperação em diversas áreas.
  7. Expandir a cooperação trilateral entre EUA, Japão e Coreia do Sul, não somente nos assuntos relativos à Coreia do Norte e à segurança da península coreana, mas também na área de tecnologias críticas e questões de cadeias de suprimentos.
  8. Parceria para aumentar a resiliência das nações insulares do Pacífico, especialmente em relação aos efeitos das mudanças climáticas, além de colaboração em outros setores, como na tecnologia da informação e comunicações, transportes, navegação e pesca.
  9. Apoio à boa governança e à prestação de contas, apoiando ações dos governos que erradiquem a corrupção e também a sociedade civil e jornalistas para que se garanta que eles possam “expor e mitigar o risco de interferência estrangeira e manipulação da informação”. Os EUA continuarão a defender a democracia em Mianmar pressionando a junta militar a proporcionar um retorno do país à democracia.
  10. Apoiar a manutenção de uma estrutura tecnológica digital aberta, segura e confiável, especialmente garantindo diversidade de fornecedores de serviços de nuvem e de telecomunicações, inclusive por meio de tecnologias inovadoras, e aumentando a resiliência e a segurança cibernéticas.

Na conclusão do documento, o governo norte-americano afirma que sua política exterior entra em um novo período, que exigirá que os EUA se dediquem à região do Indo-Pacífico de uma forma que não lhes foi exigida desde o fim da 2ª Guerra Mundial. Afirma que os interesses vitais do país na região se tornaram ainda mais claros e difíceis de proteger, e que a próxima década será decisiva para o futuro da região, dos EUA e do mundo.

Como se vê, os EUA reagem ao exponencial crescimento da influência chinesa na região, que ganhou muita velocidade com a iniciativa Belt and Road (Cinturão e Rota), que injetou bilhões de dólares em obras de infraestrutura em toda a região. Também reage à maior assertividade geopolítica chinesa, que vem desenvolvendo aceleradamente suas forças armadas, em especial sua marinha, que se projeta cada vez mais para a toda a região do Indo-Pacífico.

O lançamento da Estratégia consubstancia a reação norte-americana, demonstrando que o país não pretende renunciar a sua liderança política, econômica, militar e cultural, nem mesmo na região do Indo-Pacífico, natural área de influência da China. Mais do que isso, a Estratégia indica com clareza, que a prioridade dos norte-americanos não pode ser mais identificada na Europa ou no Oriente-Médio. Ela migrou, definitivamente, para o extremo Oriente.

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Russos, norte-americanos e europeus debatem o futuro da Ucrânia

Amanhã, 10 de janeiro de 2022, começam as negociações entre os EUA e seus aliados, de um lado, e a Rússia, de outro, sobre a questão ucraniana. As conversas foram propostas pelo lado russo, após concentrarem, ao longo do segundo semestre de 2021, cerca de 100 mil soldados, com artilharia, blindados e meios aéreos, do seu lado da fronteira com a Ucrânia, em uma escalada de tensões sem precedentes na Europa desde o término da Guerra Fria.

A Rússia se considera ameaçada pela existência de laços entre a OTAN e a Ucrânia, mesmo que esses sejam informais. Em razão disso vai exigir que os EUA e seus aliados atendam às chamadas “garantias de segurança”[1], uma lista de exigências que o país divulgou em dezembro como uma proposta de acordo, cujos tópicos principais são os seguintes:

  1. que a OTAN não posicione tropas em território de países que não pertenciam à OTAN em 1997, data em que a Aliança e a Rússia celebraram o “Ato de Relações Mútuas, Cooperação e Segurança”;
  2. o compromisso de não instalação de mísseis de curto e médio alcance, que tenham a capacidade de atingir o território russo;
  3. que a OTAN se comprometa a não aceitar nenhum novo membro, especialmente a Ucrânia e;
  4. que a OTAN se comprometa a não conduzir nenhuma atividade militar no território da Ucrânia, bem como em outros Estados da Europa Oriental, do Sul do Cáucaso e da Ásia Central. A Rússia assumiria o mesmo compromisso em faixa territorial correspondente do seu lado da fronteira.

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Com a possível exceção do tópico que diz respeito aos mísseis e do que veda exercícios militares, trata-se de um acordo inviável para os EUA e a OTAN.

No que diz respeito ao posicionamento de tropas da OTAN, é importante lembrar que, entre 1999 e 2021, a aliança incorporou vários países da Europa central e de leste, muitos deles antigos estados comunistas: República Checa, Hungria, Polônia, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte.

A anexação da Criméia pela Rússia, em 2014, motivou uma forte condenação dos países da OTAN e o envio de 5 000 soldados para bases militares na Estônia, Lituânia, Letônia, Polônia, Romênia e Bulgária.

A possibilidade de se desdobrar pessoal e meios militares em qualquer um dos 30 Estados membros da aliança está no cerne da finalidade da própria existência da OTAN, sendo evidente que abrir mão dessa possibilidade está fora de cogitação.

Embora tal expressão não seja usada pelos russos, o que se está a assistir é uma tentativa do governo do presidente Putin de se estabelecer uma “zona de influência” sobre a qual o ocidente se abstenha de atuar e cuja liderança caberia naturalmente aos russos.

É a isso que o presidente Putin se refere quando fala sobre as “linhas vermelhas” que não devem ser ultrapassadas pelos EUA ou pela OTAN.

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Os EUA e seus aliados, por sua vez, entram nas negociações já tendo declarado que os termos do acordo, como estão propostos, não podem ser aceitos. Eles parecem estar dispostos a demonstrar ao lado russo que uma eventual invasão da Ucrânia custaria caro. A reação do ocidente não se daria no campo militar, uma vez que os EUA já descartaram a utilização de tropas na defesa da Ucrânia. Entretanto, os ucranianos seriam apoiados militarmente com suprimentos, armas e munições. Além disso, seriam impostos embargos econômicos nunca vistos, que vão desde a proibição de exportação de itens tecnológicos produzidos nos EUA ou cuja tecnologia pertença ao país, até a imposição de barreiras ao fluxo financeiro internacional, como a vedação do acesso dos russos ao sistema SWIFT de transferências financeiras internacionais. Dessa forma, os EUA e a OTAN querem dissuadir os russos, mostrando que o preço de uma eventual invasão seria altíssimo e que a resistência ucraniana, financiada pelo Ocidente, poderia perpetuar-se indefinidamente, em uma guerra altamente desgastante para a Rússia.

Para complicar ainda mais as negociações, elas ocorrerão em pleno desenvolvimento da crise no Cazaquistão, para onde os russos e seus aliados da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) enviaram tropas em socorro do governo aliado à Moscou, no enfrentamento dos violentos protestos que explodiram naquele país.

A crise no Cazaquistão[2], quando somada à que ocorreu em Belarus, em 2020, ambas ex repúblicas soviéticas, fronteiriças à Rússia e de grande importância para o país, pode aumentar nos russos a sensação de que estão sendo pressionados em mais de uma frente, e de que precisam agir na Ucrânia antes que seja tarde.

Semana que vem pode ser uma semana decisiva, não só para a Ucrânia, mas também para a Europa e para o futuro das relações entre as duas maiores potências militares do planeta.

[1] Leia o documento em https://mid.ru/ru/foreign_policy/rso/nato/1790803/?lang=en&clear_cache=Y

[2] Sobre essa crise leia o artigo Crise no Cazaquistão, em https://paulofilho.net.br/2022/01/06/crise-no-cazaquistao/




A nova aliança militar entre EUA, Reino Unido e Austrália

No dia 15 de setembro, um pronunciamento feito pelo presidente Joe Biden, com a participação virtual dos primeiros-ministros britânico, Boris Johnson, e australiano, Scott Morrison, causou protestos da China e indignação na França: EUA e Reino Unido acordavam em repassar para Austrália a tecnologia necessária para a produção local de submarinos de propulsão nuclear.

Os protestos chineses são compreensíveis. Afinal, embora o nome da China não tenha sido citado em nenhum momento, é óbvio que a posse de submarinos nucleares pela Austrália tem a finalidade de conter a emergente potência asiática, detentora da maior Marinha do mundo em quantidade de meios navais e cada vez mais assertiva em suas ações no Mar do Sul da China. Aquela porção do Oceano Pacífico, que vai de Cingapura a Taiwan, é o palco da disputa entre a China e os países da região, envolvendo a exploração econômica dos recursos marinhos, a posse de centenas de pequenas ilhas e o acesso ao Oceano Índico via Estreito de Málaca.

Submarinos de propulsão nuclear são armas poderosíssimas. Enquanto um submarino convencional tem sua permanência submersa limitada, necessitando subir à superfície para recarregar suas baterias, um submarino nuclear pode ficar muito mais tempo submerso. Na prática, este tempo é limitado pela capacidade física e psicológica das tripulações e pelo estoque de víveres disponível. É muito mais rápido que o convencional e incomparavelmente mais furtivo, ou seja, de detecção muito mais difícil pelo inimigo. Uma flotilha de submarinos nucleares australianos navegando sob as águas do Mar do Sul da China seria um pesadelo para os militares chineses.

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Mas, se a reação chinesa podia ser esperada, a reação da França talvez tenha surpreendido norte-americanos, australianos e britânicos. O ministro das Relações Exteriores francês, Jean-Yves Le Drian, qualificou o acordo como “brutal” e uma “facada nas costas”. O presidente francês, Emmanuel Macron, determinou que os embaixadores franceses nos EUA e na Austrália fossem à França, “para consultas”. Como se sabe, essa é uma forma de expressar um profundo descontentamento. As razões francesas são predominantemente comerciais. O país havia firmado um acordo com os australianos para a venda de submarinos convencionais, no valor de US$ 66 bilhões. Agora, o acordo foi desfeito. Um enorme prejuízo. Mas esta não é a única causa de descontentamento. A França é uma aliada histórica dos EUA. Aliás, foi o primeiro país com quem os norte-americanos firmaram uma aliança militar, em 1778, quando os franceses com eles ombrearam contra os ingleses na guerra pela independência. Hoje, é um importante membro da Otan. Ao serem surpreendidos pelo acordo, os franceses se sentiram traídos.

O movimento de norte-americanos e britânicos, ocorrido imediatamente depois da completa e traumática retirada dos EUA e aliados do Afeganistão, emite sinais claros para toda a comunidade internacional. Os EUA mostram que o seu foco prioritário passa a ser a China e que o país não medirá esforços para conter aquele que considera ser o seu maior adversário geopolítico neste século 21. O Reino Unido, por sua vez, depois do Brexit, demonstra seu alinhamento prioritário com os EUA e reforça sua intenção de se manter relevante do ponto de vista geopolítico. Trata-se de uma ação dentro da Estratégia Global Britain, lançada por Boris Johnson, que vê o Reino Unido desvencilhado da Europa, como uma das mais influentes nações do planeta.

É interessante notar que a aliança entre EUA, Reino Unido e Austrália foi anunciada ao mesmo tempo que o Japão faz seu maior exercício militar em 30 anos, empregando cerca de 100 mil militares, em meio a um aumento das tensões com a China em torno da posse das ilhas Senkaku, que os chineses consideram suas e chamam de Diaoyu Dao. Note-se, também, que o Japão acaba de anunciar um acordo militar com o Vietnã, que envolve a realização de exercícios militares conjuntos entre os dois países e exportações de materiais de emprego militar dos japoneses para os vietnamitas.

Ao mesmo tempo que os EUA e seus maiores aliados no Indo-pacífico adotam atitudes cada vez mais assertivas no sentido de conter a China, esta se movimenta na direção contrária, projetando seu poder em direção ao Ocidente. Isso fica claro, por exemplo, quando China e Rússia aceitam o Irã como membro pleno da Organização para Cooperação de Xangai ou na assertividade com que o país se comporta em relação ao Afeganistão, ocupando o vácuo deixado por EUA e seus aliados.

“Na briga entre o mar e o rochedo, é o marisco que apanha”, diz o dito popular. O sistema internacional passa por um momento de reacomodação, no qual os movimentos de chineses e norte-americanos exigirão muita atenção dos demais países, que devem estar atentos para não verem comprometidos seus próprios interesses estratégicos. Ninguém está a salvo deste embate, nem mesmo o Brasil, na (distante) América do Sul.

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Autor – Robert Kaplan




Vinte anos dos ataques de Onze de Setembro de 2001 aos Estados Unidos da América

Para quem tem mais de trinta anos, 11 de setembro de 2001 é um dia inesquecível. Poucos são os eventos não relacionados às nossas vidas pessoais que ficam gravados na nossa memória de tal forma que nos lembramos exatamente do que estávamos fazendo quando recebemos a notícia. No meu caso há pessoal, apenas dois eventos desse tipo: a morte de Ayrton Senna e os atentados que hoje completam vinte anos.

O impacto foi tamanho em razão dos 2.977 mortos, de 77 nacionalidades diferentes (inclusive 5 brasileiros) e cerca de 6 mil feridos, dos gigantescos prejuízos financeiros, da surpresa, do ineditismo, e porque, mesmo intuitivamente, as pessoas sabiam que a partir daquele momento, o mundo seria outro.

Afinal, os Estados Unidos da América eram, à época, a única superpotência do planeta. Vivia-se a época da unipolaridade. A guerra fria havia terminado, e o vencedor, os EUA, eram indiscutivelmente a maior potência econômica, militar, cultural e tecnológica do planeta. E, apesar disso, os EUA tinham sofrido um ataque em seu próprio território apenas pela segunda vez na história. O primeiro, em 7 de dezembro de 1941, à Base de Pearl Harbor, tinha levado o país à 2ª Guerra Mundial. O segundo, levou o país à “Guerra ao Terror”.

A máquina militar norte-americana, que sempre teve a chamada guerra convencional, ou conflito de alta intensidade, como sua primeira prioridade de emprego, a partir daquele momento passava a se dedicar a outro tipo de conflito, de baixa intensidade, prolongado, de resultados muito mais dificilmente mensuráveis: o combate ao terrorismo, muito especialmente à Rede Al Qaeda de Osama bin Laden, responsável pelos ataques de 11 de setembro.

Assim, quase imediatamente, os EUA invadiam o Afeganistão. O grupo extremista Talibã, que governava o país e permitia que a Al Qaeda operasse a partir do seu território, foi deposto. Osama fugiu de seu complexo de Comando e Controle localizado nas montanhas de Tora Bora, fronteira com o Paquistão, para ser encontrado e morto por um grupo de Forças Especiais norte-americano somente em maio de 2011, no Paquistão.

Após a invasão do Afeganistão, que recebeu o apoio da comunidade internacional e da ONU, os EUA decidiram, também no contexto da Guerra ao Terror, invadir o Iraque e derrubar o ditador Saddam Hussein, sob o pretexto de que o país produzia armas químicas de “destruição em massa”. A comunidade internacional, neste caso, não apoiou a invasão, mas os EUA a efetivaram mesmo assim, derrubando o regime iraquiano.

Nos dois casos, Afeganistão e Iraque, a queda dos governos inimigos não significou o fim da guerra e o retorno dos soldados norte-americanos ao seu país. Seguiu-se a tentativa de implantação de regimes democráticos, de modelo ocidental. Essa tentativa de state building[1] encontra amparo em um pensamento ocidental de característica missionária, descrito, dentre muitos outros, da seguinte forma por Samuel Huntington.

O Ocidente – e em especial os EUA, que sempre foram uma nação missionária – está convencido de que os povos não-ocidentais deviam se dedicar aos valores Ocidentais de democracia, mercados livres, governos limitados, direitos humanos, individualismo e império da lei, e que deveriam incorporar esses valores às suas Instituições.[2]

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Autor – Samuel Huntington

Neste aniversário de vinte anos dos atentados é desnecessário lembrar que, tanto no Iraque quanto no Afeganistão, os EUA fracassaram em sua tentativa de implementar regimes de corte ocidental. No primeiro, que assistiu no pós-guerra o nascimento do grupo terrorista Estado Islâmico, o governo se equilibra precariamente entre as tensões entre grupos sunitas, xiitas e curdos. No segundo, o Talibã está exatamente no mesmo lugar em que estava em 11 de setembro de 2001.

As falhas de segurança que permitiram a ação da Al Qaeda foram esquadrinhadas, e os EUA modificaram suas leis e ampliaram significativamente a estrutura de inteligência. A Agência Nacional de Segurança (NSA), a CIA e as demais agências de inteligência passaram a contar com ampla liberdade de ação. Qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, poderia ser alvo das agências e ter sua vida monitorada. A relativização da privacidade é uma das consequências do 11 de Setembro. As prisões arbitrárias de pessoas acusadas de terrorismo, mantidas encarceradas sem julgamento, e a divulgação das imagens do tratamento desumano dispensado aos presos da prisão de Abu Ghraib, no Iraque, abalaram a imagem dos EUA, tanto no exterior quanto junto à sua própria opinião pública, tornando a guerra impopular e contribuindo significativamente para o fim das operações em ambos os países.

Ao chegar ao aniversário de 20 anos dos atentados tendo se retirado completamente do Afeganistão, os EUA viram uma página dolorosa de sua história e, dessa forma, podem se concentrar nos desafios que não existiam à época, mas que hoje conformam o tabuleiro geopolítico mundial.

A China, que em 2001 ainda era a 7ª economia do mundo, passou a ser um desafiante de muito peso, capaz de rivalizar com os EUA em todos os campos do poder e de ameaçar os interesses norte-americanos, especialmente no Pacífico. A Rússia, que em 2001 ensaiava uma aproximação do Ocidente, após a invasão da Ucrânia e da anexação da Crimeia, voltou a ser o principal antagonista da OTAN e a almejar um protagonismo em sua esfera de influência.

Assim, creio que se os EUA forem capazes de evitar um novo atentado de proporções semelhantes ao 11 de setembro, dificilmente veremos aquele país voltar a se engajar em guerras como a do Afeganistão e a do Iraque. Eles agora têm outras ameaças, talvez ainda maiores, com que se preocupar.

[1] Construção de Estado

[2] Huntington, Samuel. O Choque das Civilizações. p.228. Ed Objetiva. 1996

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As repercussões do fim da guerra no Afeganistão

As cenas das aeronaves civis e militares sendo cercadas por pessoas desesperadas para fugir do Afeganistão ficará gravada na memória dos milhões de espectadores que acompanharam pela televisão e pela internet a reconquista de Cabul pelo Talibã. Trata-se de um daqueles eventos marcantes que, por seu simbolismo, será utilizado por historiadores no futuro para explicar os acontecimentos marcantes desta segunda década do século 21.

Os custos da guerra para os Estados Unidos foram enormes. Morreram aproximadamente 2,5 mil militares norte-americanos; 1,1 mil militares dos países da coalizão e cerca de 70 mil militares afegãos. A esses números somem-se cerca de 50 mil baixas civis. Estima-se ainda que o esforço de guerra tenha custado cerca de 2 trilhões de dólares aos contribuintes norte-americanos.

Apesar desse esforço gigantesco em recursos humanos e materiais, os resultados não foram os esperados. E, ao final, os Estados Unidos da América, maior potência militar do planeta, e seus aliados da OTAN foram surpreendidos pela velocidade com que o Talibã executou sua ofensiva final, obrigando-os a uma humilhante retirada. Em meio ao caos das pessoas tentando chegar ao aeroporto para conseguir uma vaga em uma aeronave para fugir do país, atentados terroristas mataram cerca de 180 pessoas, dentre elas 13 militares norte-americanos.

Neste artigo, procurarei delinear o histórico dos acontecimentos, mostrando como  caminharam para esse desenlace e apresentarei possíveis repercussões da nova situação política do Afeganistão para o chamado “Grande Oriente Médio” e para as potências do entorno, especialmente China, Rússia, Paquistão e Irã.

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Autora – Adriana Carranca

As intervenções norte-americanas no Afeganistão e no Iraque

Em 1990, reagindo à invasão do Iraque ao Kuwait, os EUA, autorizados pela ONU, lideraram uma coalizão militar internacional que derrotou o exército iraquiano e restabeleceu a soberania do Kuwait sem, entretanto, derrubar o regime liderado por Saddam Hussein no Iraque. Naquele episódio, um fato revoltou os grupos islâmicos radicais: as tropas ocidentais empregadas na Guerra do Golfo ficaram sediadas na Arábia Saudita, país islâmico sunita e wahabista, onde se encontram duas das mais importantes cidades sagradas do Islã: Meca e Medina.

É neste contexto que radicais islâmicos – em especial a rede Al Qaeda – planejaram e executaram uma série de atentados, contra o World Trade Center, em Nova York, em 1993, contra a base militar norte-americana em Kobhar, Arábia Saudita, em 1996, contra embaixadas dos EUA no Quênia e na Tanzânia, em 1998 e, finalmente, novamente contra as Torres Gêmeas do World Trade Center e ao Pentágono, em 11 de Setembro de 2001.

Esse último ataque, por suas inéditas proporções, vitimando mais de 3 mil pessoas em solo norte-americano, ganhou imediata repercussão mundial. A rede terrorista Al Qaeda, chefiada pelo saudita Osama bin Laden, foi imediatamente acusada de ser a autora dos atentados. Abrigada no Afeganistão pelo governo do grupo islâmico Talibã, que controlava cerca de 90% do território do país naquela época e era, de facto, o governo em Cabul, a Al Qaeda contava com ampla liberdade de ação nas montanhas ao sul do país, na porosa fronteira com o Paquistão.

Os EUA exigiram que o Talibã entregasse Bin Laden, o que não aconteceu. Em consequência, os norte-americanos iniciaram sua campanha militar no Afeganistão, novamente com o beneplácito da ONU, com o objetivo de retirar o Talibã do poder, desmantelar a rede terrorista Al Qaeda e eliminar Osama bin Laden.

As operações começaram em outubro de 2001 e, em dezembro do mesmo ano, o Talibã já havia sido retirado do poder. Osama bin Laden, entretanto, conseguiu fugir do seu complexo de comando e controle, escavado nas montanhas de Tora Bora, no sul do Afeganistão, próximo à fronteira com o Paquistão. O líder terrorista que havia planejado os atentados de 11 de setembro só viria a ser morto quase uma década depois, em maio de 2011, em uma ação norte-americana que encontrou seu esconderijo no Paquistão.

Mas as ações dos EUA não ficaram restritas ao Afeganistão. Em março de 2003, o país invadiu o Iraque, ainda governado por Saddam Hussein, alegando que o regime estava produzindo e estocando armas químicas de destruição em massa. Naquela oportunidade, diferentemente das anteriores, a ação militar norte-americana foi decidida unilateralmente, sem o respaldo das Nações Unidas.

Assim, os EUA mantinham, no contexto da estratégia de “guerra ao terror” que o país adotava naquele momento, duas intervenções militares ao mesmo tempo, no Afeganistão e no Iraque. Ambas as intervenções tinham por objetivos declarados a construção de regimes democráticos naqueles países, com instituições que fossem suficientemente sólidas para impedir que eles se transformassem em santuários para o planejamento de atentados terroristas sobre o território norte-americano ou europeu.

Nenhuma das ações obteve o êxito esperado. No Iraque, as tensões entre os grupos xiitas, curdos e sunitas se intensificaram, com os dois primeiros, que assumiram o poder no país, vingando-se dos anos de repressão promovida pelo partido de Saddam Hussein, o Baath, sunita. Este ambiente propiciou o surgimento da insurgência terrorista sunita, em especial o chamado Estado Islâmico do Iraque, que recrutou inclusive ex-integrantes das forças armadas iraquianas, que haviam sido desmanteladas com a queda do regime imposta militarmente pelos EUA.

A retirada das tropas norte-americanas do Iraque em 2011 deu espaço para o início de uma verdadeira guerra civil no país. Em junho de 2014, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), grupo terrorista resultado da integração do já mencionado Estado Islâmico do Iraque a facções terroristas sunitas da Síria, proclamou o chamado “Califado Islâmico”, que chegou a manter o domínio do território em importantes porções dos dois países[1]. A reação ao grupo, no Iraque, foi feita pelo governo com apoio de milícias curdas e do Ocidente. Na Síria, o governo contou com forte apoio russo. No final de 2017, o ISIS finalmente foi derrotado.

Já as tratativas formais entre o governo dos EUA e o grupo Talibã no Afeganistão remontam ao ano de 2018. As conversas estavam baseadas em quatro premissas: os EUA retirariam todas as suas tropas; em contrapartida, os afegãos assumiriam o compromisso de que o país não se tornaria um santuário para grupos terroristas; deveria haver um amplo cessar fogo e um diálogo dentre todos os grupos afegãos na busca de um governo de consenso. Para que esse plano desse certo, o governo afegão, presidido por Ashraf Ghani, e o grupo Talibã, além das outras facções existentes no país deveriam conseguir chegar a um mínimo grau de entendimento. Ou, pelo menos, o governo afegão deveria ter condições de conter o grupo Talibã por tempo suficiente, após a retirada das tropas norte-americanas, para forçar o grupo Talibã a negociar. Nada disso aconteceu. Em uma ofensiva fulminante de cerca de dez dias, praticamente sem enfrentar resistências, o Talibã tomou para si o poder e o Presidente Ashraf Ghani fugiu do país.

A constatação inescapável é a de que as tentativas norte-americanas de instalar governos democráticos no Iraque e no Afeganistão não alcançaram o êxito esperado. O Afeganistão hoje é governado pelo Talibã, o mesmo grupo que estava no poder no início da guerra em 2001, e o Iraque vive grande instabilidade política.

Por outro lado, houve êxitos no nível tático. Osama bin Laden foi morto e o terrorismo da rede Al Qaeda e do ISIS foram muito enfraquecidos. Além disso, nesses últimos vinte anos, nenhum grande atentado terrorista ocorreu em território norte-americano.

O que pode acontecer no Afeganistão a partir de agora?

O desenrolar dos acontecimentos no Afeganistão, a partir de agora, deverá ser observado com atenção, para que se possa tentar antever os desdobramentos para o próprio país e para seu entorno.

Um primeiro ponto a se observar é se o país mergulhará em uma guerra civil ou se o Talibã será capaz de derrotar os demais grupos que tentarão disputar o poder, em especial a chamada “Aliança do Norte”, grupo que ainda controla do Vale do Panjshir, única área do país que não foi conquistada pelo Talibã em sua ofensiva final, e que é liderado por Ahmad Massoud, filho de Ahmad Shah Massoud, um comandante veterano da campanha contra os soviéticos na década de 1980.

Outro aspecto a ser acompanhado é a produção de papoula, base para a fabricação do ópio. O Talibã já se comprometeu publicamente a acabar com a produção da planta. Ocorre que ela é a principal fonte de financiamento do grupo. De acordo com um relatório do Escritório das Nações Unidas para as Drogas e o Crime (UNDOC), em 2020, houve um aumento de 37% da área de cultivo da papoula no Afeganistão, se comparada com 2019. Nesse mesmo estudo, o UNDOC afirma que mais de um terço dos fazendeiros entrevistados informaram que pagam impostos da ordem de 6% das vendas do ópio, principalmente, para o Talibã[2]. A transformação do território afegão em uma espécie de “zona livre” para a produção de drogas seria fator altamente desestabilizador para a região.

Um terceiro foco da atenção deve ser a possibilidade de aumento do terrorismo. Há um grande temor na comunidade internacional de que o território afegão volte a ser uma área livre para homizio, concentração e planejamento de ações terroristas. Embora o Talibã afirme que não permitirá que tais ações se desenvolvam, o atentado terrorista perpetrado pelo Estado Islâmico Khorasan, conhecido como ISIS-K, na região do aeroporto de Cabul, no momento em que os EUA e demais países do Ocidente faziam a retirada de suas tropas, serviu como um alerta de que o Talibã, mesmo que (e se) realmente quiser combater o terrorismo, talvez não tenha essa capacidade. É interessante notar que, em suas bases, o Talibã também possui militantes fanatizados, que podem muito bem servir de fonte de terroristas para o ISIS-K e outros grupos, caso acreditem que o governo Talibã tenha deixado de ser suficientemente rígido na sua interpretação dos valores pelos quais lutaram. E isso não é difícil de ocorrer, visto que as atuais lideranças do grupo, no governo, certamente terão que fazer concessões em favor da governabilidade, naturais do processo político e das relações internacionais.

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Autor – Patrick Cockburn

Repercussões da retirada norte-americana do Afeganistão

Vistos alguns possíveis rumos dos acontecimentos no Afeganistão, vejamos as possíveis repercussões para os principais atores internacionais envolvidos.

Os ecos da retirada serão fortemente sentidos nos Estados Unidos, tanto no campo interno quanto no campo externo. A sociedade norte-americana cobrará, especialmente por intermédio de seus congressistas e da imprensa, as razões para o fracasso da intervenção. A palavra “fracasso” aqui é usada propositalmente, porque essa será a percepção dominante na sociedade, mesmo que os eventuais sucessos táticos sejam apresentados ao grande público. E tal cobrança será grandemente potencializada caso ocorra algum atentado terrorista contra alvos norte-americanos em um futuro próximo. O atual governo, do presidente Joe Biden, sofrerá grande pressão e tenderá a responder com ações pontuais contra alvos identificados com o terrorismo no Oriente Médio e no norte da África.

No campo militar, os EUA fecham definitivamente a página da “Guerra ao Terror” e passam a se concentrar em uma nova era de competição estatal, conforme inclusive já preconiza a Estratégia de Defesa dos EUA[3], de 2018. O foco sai definitivamente do Oriente Médio e vai para a Ásia. Se no curto prazo, como se vê, a saída do Afeganistão é traumática para os EUA pelo inegável gosto de derrota, por outro lado, nos médio e longo prazos, os recursos economizados com o fim da guerra estarão disponíveis para serem empregados na Ásia, na contenção à China, e mesmo na Europa, na contenção à Rússia.

No campo externo, os EUA sofrerão um abalo em sua reputação. Adversários explorarão a narrativa de que o país abandona seus aliados, como teria feito com o governo afegão, deixado à mercê do Talibã. Esta é, inclusive, a narrativa que a China propagandeia, com o foco nos taiwaneses, indicando que estes igualmente seriam deixados sós contra a própria China em caso de um conflito entre chineses e separatistas taiwaneses.

Isso nos traz para as repercussões para a China. A potência asiática, vale a pena lembrar, faz fronteira com o Afeganistão através do Corredor Wakhan, em uma estreita faixa de terra de cerca de 70 quilômetros de largura. Do lado chinês da fronteira está Xinjiang, região autônoma habitada principalmente pela etnia uigur, um grupo majoritariamente islâmico. Xinjiang também é a base do grupo terrorista Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, grupo separatista responsável, segundo o governo chinês, por mais de 200 ataques, com mais de uma centena de vítimas no país.

A China teme que o vizinho Afeganistão se torne um santuário para os terroristas, fortalecendo o movimento que atualmente se encontra enfraquecido.

A instabilidade no Afeganistão, caso o país entre em guerra civil, por exemplo, também seria muito ruim para a China, que possui uma série de interesses econômicos nos vizinhos Paquistão e países da Ásia Central. Os investimentos da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative) são fundamentais na estratégia de desenvolvimento econômico chinês e qualquer instabilidade que os ameace seria frontalmente contra os interesses chineses.

Assim, se à primeira vista o fracasso dos EUA no Afeganistão pode ser compreendido como vantajoso para a China, por outro lado a nova situação obrigará o país a assumir um protagonismo na segurança da região que antes era exercido pelos EUA, com todos os possíveis ônus que isso pode causar.

O governo chinês já está atuando para estreitar os laços com o governo talibã. A embaixada do país em Cabul foi mantida em funcionamento e espera-se que a China ofereça suporte financeiro ao país em troca da garantia de que não haverá nenhum tipo de apoio aos separatistas uigures.

Russos também têm motivos para se preocupar com o novo status afegão. A onda de refugiados afegãos em direção aos países fronteiriços de norte – Turcomenistão, Uzbequistão e Tadjiquistão – é uma grande preocupação para aquelas frágeis economias, e uma eventual instabilidade nesses países afeta diretamente os grandes interesses russos na Ásia Central. O Tadjiquistão já acionou a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, aliança militar regional liderada pela Rússia, para auxiliar em uma eventual crise provocada por um grande afluxo de refugiados.

Para o Irã, as primeiras consequências podem ser econômicas. Em razão do isolamento imposto pelo ocidente, o Irã e o Afeganistão aumentaram suas relações econômicas nos últimos anos. Atualmente, o Afeganistão é um dos maiores destinos das exportações iranianas de não derivados do petróleo, em um volume de cerca de 2 bilhões de dólares ao ano. Uma crise econômica no Afeganistão traria, portanto, consequências bastante negativas para o Irã. Outra causa de preocupação é o afluxo de refugiados, que já são contados na casa das centenas de milhares de pessoas.

O Paquistão, vizinho de sul que compartilha com o Afeganistão uma fronteira porosa habitada pelos Pachtuns, etnia de origem do Talibã, certamente sentirá rapidamente os reflexos dos acontecimentos no Afeganistão. O país era, formalmente, um aliado norte-americano na guerra. Suas forças armadas, em razão disso, receberam bilhões de dólares dos EUA nos últimos vinte anos. Acontece que o Talibã, que muitos analistas afirmam ter sido uma criação do próprio serviço secreto paquistanês, encontra um grande apoio dentro do Paquistão. O país pretende evitar a todo custo que o Afeganistão caia na esfera de influência de seus arqui-inimigos, os indianos. Para os paquistaneses, o Afeganistão provê profundidade estratégica para um eventual conflito contra a Índia. Além disso, a proximidade do governo de Ashraf Ghani com os indianos era vista com muita desconfiança pelo governo de Islamabad. Assim, quando os diplomatas indianos foram um dos primeiros a abandonar Cabul quando da chegada do Talibã, isso foi comemorado como uma vitória pela imprensa paquistanesa.

Conclusão

O fim da guerra do Afeganistão pode ser considerado um marco nas disputas geopolíticas globais. Os EUA, por ora, se retiram da Ásia Central, como já tinham feito no Oriente Médio e no norte da África, caracterizando um provável pivô em direção à Ásia, na contenção da China, e mesmo um retorno de sua atenção à Europa, com o fortalecimento da OTAN na contenção da Rússia. Em consequência, o país perderá influência no Oriente Médio e na Ásia Central, o que alimentará certa narrativa de que vive momentos de declínio e perda de poder em sua disputa com a China.

A saída dos EUA dessas regiões abre espeço para uma atuação mais incisiva de Rússia e China, com as vantagens e desvantagens que acompanham este fato. A China passa a ter uma preocupação maior na sua fronteira oeste, somada às preocupações que ela já tinha em Xinjiang. Em compensação, se conseguir trazer o Afeganistão para sua área de influência, poderá fortalecer sua presença na Ásia Central e no Oriente Médio.

O Paquistão, embora comemore secretamente a vitória do Talibã, talvez perca muito apoio dos EUA, que poderão acabar cada vez mais alinhados com a Índia na busca da contenção da China.

Finalmente, o Afeganistão, transformado em “Emirado Islâmico do Afeganistão”, estará sob escrutínio da opinião pública internacional. O tratamento que dispensar às mulheres e às minorias, sua atitude face ao terrorismo internacional e ao tráfico de drogas e a sua capacidade de unificar o país evitando uma guerra civil serão os fatores que definirão se o país se integrará à comunidade internacional ou se será um pária, mais uma vez sujeito a intervenção das grandes potências. De qualquer forma, a retirada dos Estados Unidos permanecerá reforçando o mito da invencibilidade do Afeganistão em seu próprio território.

 

[1] Importante recordar que a Síria estava em guerra civil, com o Presidente Bashar al-Assad enfrentando diversos grupos, dentre eles, o ISIS.

[2] Disponível em https://www.unodc.org/unodc/en/frontpage/2021/May/afghanistan_-37-per-cent-increase-in-opium-poppy-cultivation-in-2020–while-researchers-explore-novel-ways-to-collect-data-due-to-covid-19.html

[3] Saiba mais em https://paulofilho.net.br/2018/04/18/nova-estrategia-de-defesa-dos-eua-e-ataque-a-siria/ e https://paulofilho.net.br/2021/06/27/a-otan-e-as-mudancas-no-equilibrio-do-poder-mundial/

 

REFERÊNCIAS

BARMAK, Pazhwak; ASMA, Ebadi; BELQUIS, Ahmadi. After Afghanistan Withdrawal: A Return to ‘Warlordism? United States Institute for Peace.  Disponível em https://www.usip.org/publications/2021/06/after-afghanistan-withdrawal-return-warlordism . Acesso em 30 de agosto de 2021.

CASTRO VIEIRA, Danilo. Política Externa norte-americana no Oriente Médio e o Jihadismo. Editora Appris. Curitiba, PR. 2019.

__________. Irmandade Muçulmana. Editora Appris. Curitiba, PR. 2021.

GOMES FILHO, Paulo. Vinte anos de Guerra no Afeganistão. Blog do Paulo Filho. Brasília, DF. 2021. Disponível em https://paulofilho.net.br/2021/08/09/vinte-anos-de-guerra-no-afeganistao/. Acesso em 28 de agosto de 2021.

__________.  Cemitério de Impérios. Blog do Paulo Filho. Brasília, DF. Disponível em https://paulofilho.net.br/2021/08/21/cemiterio-de-imperios/ . Acesso em 26 de agosto de 2021.

HELF, Gavin e BARMAK Pazhwak. Central Asia prepares for Taliban takeover. United States Institute for Peace.  Disponível em https://www.usip.org/publications/2021/07/central-asia-prepares-taliban-takeover . Acesso em 30 de agosto de 2021.

UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Afghanistan Opium Survey 2020 Cultivation and Production ‒ Executive Summary. Disponível em https://www.unodc.org/unodc/en/frontpage/2021/May/afghanistan_-37-per-cent-increase-in-opium-poppy-cultivation-in-2020–while-researchers-explore-novel-ways-to-collect-data-due-to-covid-19.html




Cemitério de Impérios

A cena pareceu familiar aos norte-americanos. Um helicóptero de suas Forças Armadas sobrevoou a Embaixada dos EUA num país distante, recolheu passageiros para uma evacuação às pressas, enquanto o inimigo se aproximava por todos os lados. As tropas, depois de longa guerra, estão retornando para casa sem poder comemorar a vitória. As semelhanças entre a retirada de Saigon, ao fim da Guerra do Vietnã, e a retirada de Cabul no último domingo, 15 de agosto, marcando o fim da Guerra do Afeganistão, são óbvias e inescapáveis.

Tudo aconteceu numa velocidade espantosa. Numa ofensiva de cerca de dez dias, o Taleban conquistou todas as capitais provinciais e chegou à capital do Afeganistão, Cabul. O presidente Ashraf Ghani fugiu para o Usbequistão e o grupo reconquistou o poder praticamente sem encontrar resistência em sua ofensiva final.

Trinta e seis dias antes da cena do helicóptero na embaixada norte-americana em Cabul, no último dia 8 de julho o presidente Biden foi questionado por um repórter se era inevitável que o Taleban reconquistasse o Afeganistão. Biden foi firme: “Não! Não é (inevitável)!”. E prosseguiu: “Você tem no Afeganistão 300 mil militares bem equipados (…) e Força Aérea. Contra cerca de 75 mil taleban. Não é inevitável!”. Na mesma entrevista, o presidente negou que a inteligência de seu país lhe tivesse apresentado dados de que o governo afegão entraria em colapso. “Eles claramente têm a capacidade de manter o governo”.

E numa pergunta que se mostrou preditiva dos acontecimentos, uma repórter questionou: “O senhor vê algum paralelo entre esta retirada (das tropas dos EUA do Afeganistão) e o que aconteceu no Vietnã?”. Biden mais uma vez foi firme: “De jeito nenhum! O Taleban não é o exército do Vietnã do Norte. (…) Não há possibilidade de você ver cenas de pessoas sendo resgatadas do telhado da embaixada dos EUA no Afeganistão… A possibilidade de o Taleban tomar o controle de todo o país é muito remota”.

A entrevista do presidente Biden, se vista novamente, mostra como a liderança norte-americana estava equivocada acerca das capacidades das Forças Armadas do Afeganistão. Depois de 20 anos de treinamento e reequipamento que custaram bilhões de dólares aos EUA e à Otan, o dispositivo militar afegão desmoronou como um castelo de cartas, deixando muito armamento e equipamento militar nas mãos do Taleban. As razões para isso ainda serão estudadas e apresentadas, pois certamente a sociedade norte-americana cobrará respostas de seus políticos e militares.

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Autora – Adriana Carranca

A decisão de retirar todas as tropas norte-americanas do Afeganistão já vinha sendo ensaiada há vários anos, desde a Presidência Obama, passando por Donald Trump, que até abriu as negociações com o Taleban. Mas coube a Joe Biden tomar a decisão e marcar uma data: 11 de setembro de 2021. Exatamente 20 anos após os atentados de 2001, planejados no Afeganistão pela rede terrorista Al-Qaeda, de Osama bin Laden, havia chegado o momento de deixar o Afeganistão.

Entretanto, o anúncio do porta-voz do Taleban, no final do dia 15 de agosto, de que a “guerra no Afeganistão tinha terminado” e a imagem dos dirigentes do grupo sentados à mesa do presidente, na sede do governo, demonstram claramente que as coisas não ocorreram da maneira que Washington previra. Vinte anos, milhares de baixas militares e bilhões de dólares depois, o Taleban está no mesmo lugar onde estava em 11 de setembro de 2001: no governo do Afeganistão.

O fracasso dos EUA é indisfarçável. E trará consequências não só para norte-americanos e afegãos, mas também para toda a Ásia Central e o Oriente Médio, com reflexos em diversos outros países.

Uma primeira consequência, já visível, será o aumento exponencial no número de refugiados. As cenas caóticas das pessoas no aeroporto de Cabul em busca de uma maneira de deixar o país servem para ilustrar o desespero com que centenas de milhares de afegãos buscam asilo em outros países, o que pode causar tensões e desequilíbrios na região, especialmente para o Irã e países da Ásia Central.

Outra consequência, no campo geopolítico, será o aumento da presença chinesa no Afeganistão. A China, sempre é bom lembrar, faz fronteira com o Afeganistão, justamente na província de Xinjiang, berço do separatismo uigur e do grupo Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, que já praticou dezenas de ações terroristas na China. Antevendo a ascensão do Taleban, o governo chinês já recebera suas lideranças. E deve trocar pesados investimentos econômicos no Afeganistão pela garantia de que o Taleban não apoiará grupos islâmicos uigures, garantindo tranquilidade nas suas fronteiras.

Ao retomar o controle do Afeganistão, o Taleban alimentou o mito da invencibilidade afegã, que tornou o país conhecido como “cemitério de impérios”. Afinal, os afegãos venceram Alexandre, o Grande, os britânicos por duas vezes no século 19 e os soviéticos no século 20. Certamente, agora, os taleban festejam a entrada dos norte-americanos nessa lista.




Vinte anos de guerra no Afeganistão

Em 11 de setembro de 2001, terroristas da Al Qaeda sequestraram quatro aviões comerciais e os lançaram contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e contra o Pentágono, em Washington. Uma das aeronaves caiu na Pensilvânia, sem chegar ao seu alvo, que era o prédio do congresso norte-americano. Cerca de três mil pessoas morreram nos ataques.

Em resposta, o governo norte-americano exigiu que o governo afegão, conduzido à época pelos talibãs, extraditasse Osama Bin Laden, o líder da Al Qaeda responsável pelos ataques. Ante a recusa dos talibãs, os EUA, apoiados por seus aliados britânicos, iniciaram a operação “Enduring Freedom”, bombardeando posições do Talibã e da Al Qaeda em território afegão. Por terra, elementos de forças especiais dos EUA apoiavam grupos contrários ao Talibã, em especial da chamada “Aliança do Norte”. Em 9 de dezembro, menos de três meses depois dos ataques aos EUA, o regime talibã foi deposto. Em 16 de dezembro, entretanto, Osama Bin Laden consegue escapar em direção ao Paquistão, fugindo do seu complexo de comando e controle localizado nas montanhas de Tora Bora.

Ainda em dezembro de 2001, em uma conferência realizada em Bonn, na Alemanha, as facções afegãs vitoriosas, em especial a Aliança do Norte, concordaram em estabelecer um governo interino, liderado por Hamid Karzai. Ao mesmo tempo, a ONU estabeleceu uma operação de paz para a segurança de Cabul.

Em 2002, os EUA, na sua estratégia de “Guerra ao terror”, voltam sua atenção ao Iraque de Saddam Hussein, apontado pelos EUA como uma grande ameaça à sua segurança.

Em 2003, ao mesmo tempo em que o presidente Bush declara que a missão “foi cumprida” no Iraque, o Secretário de Defesa norte-americano Donald Rumsfeld declara que os combates mais importantes no Afeganistão estão encerrados. O país mantém apenas 8 mil soldados no terreno e a OTAN substitui a ONU na missão de estabilização do Afeganistão.

Em 2004, após a aprovação de uma nova constituição, Karzai é eleito presidente da república na primeira eleição democrática da história do Afeganistão. Três semanas após as eleições, Osama Bin Laden reaparece para o mundo, em uma declaração em vídeo transmitida pela rede Al Jazeera, na qual zomba dos norte-americanos e assume a autoria dos ataques de 11 de setembro.

Em 2005, os presidentes Bush e Karzai assinam um acordo, firmando uma parceria estratégica, que permite que os EUA tenham acesso às instalações militares afegãs na luta contra “o terror e o extremismo”. Além disso, o país firma acordos para que os EUA possam treinar, equipar, modernizar e suprir as forças militares afegãs. No mesmo ano, 6 milhões de afegãos votam nas eleições legislativas, celebradas como um marco em direção à democratização do país.

Em 2006 a violência ressurge, com um grande aumento de ataques suicidas e detonações de explosivos a distância. Os países da OTAN divergem sobre a necessidade de se mandar mais tropas para o Afeganistão.

Em 2009, o presidente Obama, recém-eleito, reafirma a centralidade do Afeganistão na guerra contra o terror e anuncia o envio de mais 17 mil soldados para o país. No final daquele ano, ao lançar uma grande ofensiva contra o Talibã, as forças norte-americanas já contam com cerca de 60 mil militares.

Em 2010, em uma conferência em Lisboa, a OTAN decide estabelecer um plano de retirada do Afeganistão. O prazo-limite para a presença das tropas da Aliança é estabelecido como sendo o ano de 2014.

Em 1º de maio de 2011, Osama Bin Laden, o líder da Al Qaeda responsável pelos ataques de 11 de setembro, é morto no Paquistão por tropas norte-americanas. A morte do causador do envio de tropas ao Afeganistão alimenta um acalorado debate nos EUA sobre a continuação de uma guerra que já durava dez anos. Obama anuncia planos para retirar 33 mil soldados até o verão de 2012, mas há sérias dúvidas sobre a capacidade do governo afegão de manter o controle do país face a uma insurgência tão resiliente. O presidente norte-americano também anuncia estar mantendo “conversas preliminares de paz” com o Talibã.

Em março de 2012 o Talibã se retira das negociações, acusando os EUA de não cumprir promessas de trocas de prisioneiros. Ao mesmo tempo, diversos incidentes envolvendo militares norte-americanos, como a queima acidental de alcorões e acusações de assassinatos de aldeões golpeiam a credibilidade dos militares ocidentais perante a população afegã.

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Em 2013, as tropas afegãs assumem a responsabilidade pela segurança da maior parte do país, enquanto a OTAN se mantém responsável por 95 distritos. O Talibã abre uma representação no Catar, o que desagrada o presidente Karzai, que acredita que este movimento confere legitimidade ao Talibã. Em resposta, ele suspende as negociações com os EUA.

Em 2014, Obama anuncia a retirada da maioria das tropas norte-americanas do Afeganistão, que deveria acontecer até o final de 2016. Ashraf Ghani é eleito presidente, em substituição a Karzai, e assina um acordo de divisão de poder com seu principal oponente, Abdullah Abdullah.

Em 2017, o presidente Trump declara que, embora sua intenção inicial fosse recuar, manteria as tropas no país para evitar um “vácuo de poder”.

Em 2018, o Talibã aumenta a ousadia dos ataques terroristas a Cabul, matando 115 pessoas na capital. Os ataques acontecem enquanto o governo Trump implementa seu plano para o Afeganistão, destacando tropas para a zona rural do país e lançando ataques aéreos contra laboratórios de ópio para tentar dizimar as finanças do Talibã.

Em 2019, as negociações entre os EUA e o Talibã avançam, até que, em 2020, um acordo de paz é assinado. De um lado, os EUA assumem o compromisso de retirar todas as tropas, de outro, o Talibã se compromete a não permitir que o país seja usado por terroristas.  O acordo diz que as negociações intra-afegãs devem começar no mês seguinte, mas o presidente afegão, Ghani, diz que o Talibã deve atender às condições de seu governo antes de entrar em negociações.

Em 12 de setembro de 2020, pela primeira vez depois de quase 20 anos de guerra, representantes do governo afegão, do Talibã e da sociedade civil se encontram, em Doha, no Catar. As negociações ocorreram depois que o governo libertou 5 mil talibãs que estavam presos. Todos os lados disseram desejar restabelecer a paz no país após a retirada das forças norte-americanas. O governo afegão pressionou por um cessar-fogo, enquanto os talibãs exigiam o estabelecimento de um governo religioso islâmico.

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Autor – Mark Owen

Em 14 de abril de 2021, o presidente Biden anuncia a retirada completa das tropas até 11 de setembro, data que marca os 20 anos dos atentados de 2001.  “É hora de encerrar a guerra mais longa da América”, ele diz. A retirada acontecerá independentemente de haver progressos nas negociações de paz. As tropas da OTAN também abandonarão o país. Os EUA prometem continuar a “ajudar as forças de segurança afegãs e apoiar o processo de paz”.

Assim, os vinte anos de operações militares norte-americanas no Afeganistão estão prestes a se encerrar.

A maior parte do território afegão já está novamente sob o domínio do Talibã. Em três dias neste início de agosto, pelo menos três capitais de províncias também caíram sob o domínio do grupo. Muitas autoridades simplesmente abandonaram seus cargos e fugiram.

Muitos analistas consideram apenas uma questão de tempo até que o Talibã volte a dominar completamente o país. Essa parece ser também a opinião do governo chinês que, preocupado com a questão – não se pode esquecer que o Afeganistão faz fronteira com a China e que os asiáticos têm seus próprios problemas com o terrorismo islâmico na província de Xinjiang – já entabula suas próprias negociações com o Talibã, a despeito de ainda haver um governo em Cabul. O mulá Abdul Ghani Baradar, chefe do Comitê Político do Talibã, foi recebido pelo Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, na cidade chinesa de Tianjin.

Planejadores militares têm sempre em mente, ao iniciar uma operação, um objetivo político e uma “situação final desejada” a ser atingida ao término das operações militares. Vinte anos depois do início das operações que retiraram o Talibã do poder, o grupo está prestes a reavê-lo enquanto as tropas da OTAN e dos EUA estão completando sua retirada. É inescapável se constatar que a situação final alcançada é bastante diferente da situação final desejada no início da guerra.

Esse fracasso advém de múltiplas causas, que passam pela dificuldade tática de se enfrentar um inimigo perfeitamente adaptado ao terreno, ideologicamente comprometido com sua causa e decisivamente engajado nos combates. Também advém das consequências econômicas da crise de 2008, que tornaram os custos da guerra muito pesados para os contribuintes ocidentais. Podem também, de alguma forma, ser creditados à dificuldade dos próprios afegãos de compreenderem como benéficas as mudanças políticas introduzidas pelo Ocidente, que no final das contas, poucas melhorias trouxeram às suas condições de vida.

A saída dos EUA deixa um vácuo que provavelmente será preenchido pela China. Inicialmente, é provável que ela apoie fortemente a reconstrução do país por intermédio de investimentos econômicos, com objetivo de dar estabilidade ao regime e, com isso, tenha uma ferramenta para pressionar o regime a impedir qualquer apoio aos separatistas uigures de Xinjiang.  Em um segundo momento, embora não seja provável, caso ocorra algum recrudescimento nas atividades terroristas no interior da China, é possível que o país se engaje militarmente no Afeganistão, o que seria um passo inédito por parte dos chineses.

O Afeganistão é conhecido como “cemitério dos impérios”. A fama se deve aos reveses que Alexandre, o Grande, o Império Britânico por duas vezes no século 19 e os soviéticos, no século 20, colheram nas áridas montanhas do país. O retorno do Talibã ao poder, neste século, reforçará ainda mais o mito da invencibilidade dos afegãos diante dos grandes impérios da história.




A viagem de Biden à Europa

Este artigo foi publicado no Jornal O Estado de S. Paulo em 28/06/2021

Joe Biden vem de fazer sua primeira viagem à Europa como presidente dos Estados Unidos. Durante oito dias visitou o Reino Unido, reuniu-se com o G-7, com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e com o presidente russo, Vladimir Putin. Foi uma viagem cheia de mensagens e significados, durante a qual as sombras da China e da Rússia estiveram sempre presentes nas conversas.

Ao chegar mais cedo ao Reino Unido, que sediaria a reunião do G-7, Biden reforçou a aliança preferencial de seu país com os britânicos. No comunicado conjunto, em 20 parágrafos Biden e o primeiro-ministro Boris Johnson reforçam a crença comum de seus países no que eles chamaram de defesa da democracia, dos direitos humanos e do multilateralismo, reforçando o papel da ONU, que eles afirmam ser central, no sistema internacional.

No prosseguimento, ainda no Reino Unido, Biden e Johnson se reuniram com os líderes dos outros cinco países que compõem o G-7: Canadá, França, Alemanha, Japão e Itália. O comunicado divulgado ao término dos trabalhos destaca seis pontos principais: tomar providências em relação à pandemia de covid-19, revigorar a economia dos países integrantes do grupo, assegurar um futuro de prosperidade, proteger o meio ambiente do planeta, fortalecer parcerias do grupo, em especial com a África, e fortalecer os valores democráticos e de liberdade, igualdade, respeito à lei e aos direitos humanos.

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Joe Biden, de Evan Osnos

O comunicado afirma ainda que para a pandemia ser vencida em 2022 cerca de 60% da população mundial terá de estar vacinada. Nesse sentido, o G-7 compromete-se a financiar mais 1 bilhão de doses de vacinas, a serem distribuídas principalmente aos países pobres, até o fim de 2022. O grupo apoia que sejam feitas investigações transparentes, lideradas pela Organização Mundial da Saúde, sobre as origens da doença, na China. Aliás, esse país foi citado mais duas vezes no comunicado, em aspectos bastante sensíveis para o gigante asiático. O G-7 alertou a China sobre as questões dos direitos humanos, especialmente no referente aos uigures, minoria islâmica que habita a região autônoma chinesa de Xinjiang, e também em relação aos habitantes de Hong Kong. Além disso, o grupo fez referência a Taiwan, clamando por uma solução pacífica das questões que envolvem a ilha e externando preocupações com o que chamou de tentativas de mudança do status quo na região dos Mares do Leste e do Sul da China.

O encontro da Otan, realizado em Bruxelas, reuniu os 30 países que compõem a aliança militar. No comunicado divulgado, a Rússia figura como a principal ameaça. O país é acusado de ações agressivas que estariam deteriorando a segurança internacional: exercícios militares de larga escala, até mesmo nas proximidades das fronteiras dos países da Otan, instalações de mísseis modernos e de uso dual em Kaliningrado, integração militar com Belarus e violações em série do espaço aéreo dos países aliados. A Rússia também é acusada de promover ações de guerra híbrida, como tentativas de interferência em eleições de países democráticos, estabelecimento de pressões políticas e econômicas com a finalidade de intimidar outros países, financiamento de campanhas de desinformação e de ataques cibernéticos. Além disso, os russos são acusados de atuar ilegalmente com suas agências de inteligência em território de países da Otan e de expandir e modernizar seu arsenal nuclear, com vista a desestabilizar o equilíbrio de forças hoje existente.

A China também não passou despercebida na reunião da Otan. O país foi acusado de se comportar de forma a desafiar a ordem internacional. O comunicado afirma que suas políticas coercitivas contrastam com os valores fundamentais da aliança e que causam preocupação a expansão e a modernização de seu arsenal nuclear, além de sua aproximação militar da Rússia, até mesmo com participação conjunta em exercícios militares.

O último evento do presidente Biden na Europa foi a reunião com o presidente Vladimir Putin, da Rússia, por três horas, em Genebra. Do encontro, a única medida prática anunciada foi o retorno dos embaixadores dos dois países aos seus postos, de onde estavam afastados havia alguns meses.

No dia seguinte ao término da viagem, o mundo assistiu às imagens em alta definição da espaçonave chinesa levando três tripulantes para a estação espacial que o país constrói na órbita terrestre. Para muitos analistas, a leitura dos comunicados do G-7 e da Otan, emoldurados pelas cenas dos chineses no espaço, escancara que o sistema internacional está assistindo, realmente, a um período de transição hegemônica. Como sempre, em momentos assim, as potências estabelecidas se esforçam na manutenção do status quo e das características sistêmicas que as conduziram à hegemonia. Ao mesmo tempo, a potência emergente tenta moldar o mundo de acordo com seus próprios interesses. O atrito resultante, como sempre, gera calor. Que os líderes mundiais saibam controlar a temperatura, manter o diálogo e favorecer a manutenção da paz.