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Crise no Cazaquistão

O Cazaquistão é uma ex república soviética, localizada na Ásia Central que, da mesma forma que as demais repúblicas daquela região, Quirguistão, Tadjiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão, se tornou independente com a implosão da União Soviética, em 1991.

É um país de enorme extensão territorial e pequena população. Seus primeiros habitantes eram nômades que, no século XIII, foram subjugados pelo exército mongol liderado por Gengis Khan, que conquistou toda a região. Com o fim do império mongol, os cazaques surgiram como um grupo étnico distinto. A partir do século XVIII, os russos começaram a avançar pelas estepes do país e, no século XIX, todo o território já integrava o império russo. Com o advento da revolução russa e do surgimento da União Soviética, o Cazaquistão passou a integrar o país comunista.

Desde sua independência, o Cazaquistão teve apenas dois presidentes. O primeiro, Nursultan Nazarbayev, manteve-se no poder de 1991 até 2019, quando foi obrigado a renunciar em razão da pressão popular e das manifestações que mostravam grande descontentamento popular contra seu governo. Assumiu, então, o atual presidente, Kassym-Jomart Tokayev, político alinhado a Nazarbayev.

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O islamismo é a religião de cerca de 75% da população, enquanto o cristianismo é praticado por 21% dos habitantes. A economia é fortemente baseada na exploração dos recursos minerais, em especial o petróleo, o gás natural e os minérios, com destaque para o Urânio.

A grave crise social que o país enfrenta foi deflagrada no dia 02 de janeiro, na cidade de Zhanaozen. Rapidamente os protestos ganharam o país, se espalhando para outras cidades petrolíferas até chegar à maior cidade cazaque, Almaty e à capital, Nur-Sultan. Não por acaso, a atual insatisfação popular explodiu na mesma cidade de Zhanaozen onde uma greve de petroleiros, em 2011, também explodiu em violência, resultando na morte de 14 petroleiros em confrontos com a polícia, além de mais de uma centena de feridos.

A motivação inicial dos protestos em curso foram os altos preços do Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), que é usado como combustível em grande parte dos automóveis do país. Mas rapidamente as reivindicações dos manifestantes se ampliaram, ganhando pautas políticas, que passaram a exigir a queda dos principais governantes do país. Nazarbayev, o presidente que renunciou em 2019, mas que é visto como a grande eminência parda do governo, tornou-se o principal alvo dos manifestantes.

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A reação do presidente aos protestos, inicialmente, foi de oferecer concessões, restaurando subsídios ao GLP e demitindo o primeiro-ministro e seu gabinete. Mas em apenas três dias, com os protestos espalhados pelo país e a pauta dos manifestantes passando a exigir a mudança de governo, a reação subiu muito de tom. O presidente decretou Estado de Emergência e passou a acusar “gangues terroristas internacionais” de estarem por trás das manifestações. As forças de segurança passaram a enfrentar os manifestantes com armas de fogo e os mortos e feridos já são contados nas casas das centenas. A internet e as redes sociais foram derrubadas pelo governo e a comunicação com o restante do mundo passou a ser bem mais restrita. Os manifestantes também aumentaram a violência, com depredação e invasão de prédios públicos, incêndios e ataques a integrantes das forças de segurança. Há relatos, inclusive, de que os manifestantes teriam se apossado de armas de fogo e munições encontradas em instalações militares e policiais invadidas.

O governo acionou a Organização para o Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), uma aliança militar que reúne a Rússia e cinco de suas ex repúblicas: o próprio Cazaquistão, Armênia, Belarus, Quirguistão e Tadjiquistão. Baseado no artigo 4 do tratado que regula a Aliança os países decidiram[1] “enviar forças de manutenção da paz coletiva da OTSC para a República do Cazaquistão, por um período limitado de tempo, a fim de estabilizar e normalizar a situação neste país”. A decisão apontou ainda a “ameaça à segurança nacional e à soberania da República do Cazaquistão causada por interferência externa”. Dessa forma, nesse momento a Rússia está enviando um contingente de cerca de 3 mil soldados, aos quais se somarão efetivos de outros países da OTSC.

O desenrolar dos acontecimentos definirá os destinos políticos do Cazaquistão, mas hoje parece ser bastante improvável que os manifestantes alcancem o objetivo de derrubar o governo. O caso de Belarus, também uma ex república soviética, em 2020, guarda semelhanças interessantes. Aquele país foi sacudido por violentos protestos contra o presidente Lukashenko, acusado de fraudar as eleições para se perpetuar no poder. A repressão foi violenta e a Rússia apoiou decisivamente o presidente, ameaçando inclusive mandar tropas em seu socorro. A situação foi controlada e o que se assiste hoje é um alinhamento ainda maior entre Minsk e Moscou. Creio que, no Cazaquistão, o resultado dos acontecimentos em curso será bastante semelhante ao caso de Belarus. É bastante provável que, ao fim de tudo, Tokayev ainda esteja em seu gabinete no Palácio Ark Oda, a imponente sede do governo do Cazaquistão e que seu país esteja ainda mais alinhado aos interesses políticos, econômicos e militares russos na Ásia Central.

[1] Decisão disponível, no idioma russo, na página da Aliança em https://odkb-csto.org/news/news_odkb/zayavlenie-predsedatelya-soveta-kollektivnoy-bezopasnosti-odkb-premer-ministra-respubliki-armeniya-n/#loaded




As mudanças climáticas e a disputa pelo Ártico

As mudanças climáticas causam grande apreensão nos pequenos países insulares que, devido à elevação dos níveis dos oceanos, veem seus territórios diminuírem aceleradamente, ao mesmo tempo em que a água potável se torna cada vez mais escassa[1]. Essa grave realidade por um lado se apresenta como uma ameaça à própria existência daqueles Estados, por outro, não mobiliza as grandes potências globais para além de discursos e declarações de boas intenções, ou ajudas econômicas pontuais.

No Ártico, entretanto, as mudanças climáticas vem ensejando uma série de movimentos das grandes potências, em especial Rússia, China e Estados Unidos, que correm para se posicionar de forma vantajosa na competição pela exploração dos recursos minerais e rotas comerciais que surgem em razão da diminuição do gelo e da neve no Oceano Glacial Ártico.

Oceano Ártico

A Rússia naturalmente parte na frente. O litoral ártico do país é de mais de 24 mil quilômetros. Apenas para que se possa ter uma ideia dessa dimensão, trata-se de uma extensão maior do que o triplo do litoral atlântico do Brasil. Para tentar explorar comercialmente essa vantagem, os russos inauguraram, em 1935, de forma regular, a chamada Rota Norte, em que os navios trafegavam do Oceano Atlântico para o Pacífico, e vice-versa, costeando o litoral ártico russo. A rota encurtava em milhares de milhas náuticas o caminho entre a Europa Ocidental e os portos japoneses e chineses, tradicionalmente feita pelo sul da África e pelo canal de Suez. Mas, o gelo e as condições muito difíceis de navegação aumentavam muito os riscos de transporte e a rota funcionava quase exclusivamente entre os meses de agosto e outubro de cada ano.

O colapso da União Soviética, ao qual se seguiu uma grave crise econômica na Rússia, fez com que a Rota fosse praticamente abandonada. Somente a partir da segunda década deste século, a rota voltou a ser explorada pelos russos. Contribuíram para isso o desenvolvimento de modernas ferramentas de apoio à navegação, que aumentaram em muito a segurança da rota, navios quebra-gelo mais modernos, inclusive com propulsão nuclear e, sobretudo, o aquecimento das águas do Oceano Ártico, que passou a ser navegável em uma área cada vez maior e por um período mais largo a cada ano até que, em fevereiro de 2021, um grande navio comercial de carga completou a rota em pleno inverno. Em 2020, cerca de 33 milhões de toneladas de carga foram transportadas pela Rota Norte, quase seis vezes mais do que em 2015. Os russos pretendem aumentar esse volume para 80 milhões de toneladas até 2024 e 130 milhões até 2035.

Comparação entre a Rota Norte (vermelho) e a Rota por Suez (Azul)

Mas a exploração da Rota Norte não é o único interesse econômico no Ártico. Estima-se que a região contenha reservas de 90 bilhões de barris de petróleo e cerca de 1/5 de todo o gás natural do planeta, além de metais preciosos e terras-raras, essas últimas usadas na produção de equipamentos de alta tecnologia.

No campo militar, os russos têm aumentado significativamente sua presença e os exercícios militares na região. Em março de 2021, três submarinos russos quebraram simultaneamente o gelo perto do Polo Norte.  Os submarinos logo se juntaram a duas aeronaves MiG-31 e tropas terrestres que participavam do Umka-2021[2] , um exercício militar russo.

Tudo isso atrai a atenção não só de russos e canadenses, os dois maiores países árticos, mas também de norte-americanos que, pelo Alaska, também fazem parte do clube, além de dinamarqueses, islandeses, noruegueses, finlandeses, suecos e… chineses.

Em janeiro de 2018, a China divulgou sua “Política para o Ártico”[3]. Nela, a China afirma que a região tem uma importância estratégica e econômica global, tendo uma “influência vital nos interesses de Estados de fora da região e na comunidade internacional como um todo, bem como na sobrevivência, no desenvolvimento e no futuro compartilhado de toda a humanidade”.

No documento, os chineses reconhecem que seu país, por não ser um “Estado Ártico”, não possui soberania territorial na região. Lembram, entretanto, que de acordo com tratados internacionais todos os países têm direitos em relação à pesquisa científica, navegação, sobrevoo, pesca, colocação de cabos submarinos e oleodutos no alto mar e outras áreas marítimas relevantes no Ártico, além de direitos de exploração e aproveitamento de recursos na área.

A China propõe o estabelecimento de uma “Rota da Seda Polar”, que se integraria aos projetos da Iniciativa Belt and Road de financiamento de obras de infraestrutura de transportes, além de manifestar interesse em participar das rotas marítimas, da exploração dos recursos minerais, participar da pesca na região, do turismo e da própria governança do Ártico.

Em 2019, um ano após os chineses divulgarem sua política, foi a vez do Departamento de Defesa dos EUA divulgar sua Estratégia para o Ártico[4]. O documento identifica na crescente competição estratégica com China e Rússia, o principal desafio à segurança e à prosperidade dos EUA. O país demonstra como principais preocupações dissuadir qualquer ataque militar aos EUA vindo da região ártica e impedir que a China ou a Rússia tornem-se hegemônicas na região, impondo suas regras à comunidade internacional no que se refere ao Ártico.

Em complemento ao documento do Departamento de Defesa, Exército[5], Marinha[6] e Força Aérea[7] elaboraram suas próprias estratégias. O exército, por exemplo, divulgou em janeiro de 2021 o documento Regaining Artic Dominance no qual apresenta uma série de medidas para “mobiliar com pessoal, treinar, equipar, e organizar suas forças para vencer no Ártico.” Dentre essas medidas, está o desdobramento de uma “Força Tarefa Multidomínio”, de valor Divisão de Exército, com cerca de 15 mil soldados, no Alaska, como forma de reorganizar suas forças dedicadas especificamente àquela região.

A competição estratégica que tem se intensificado nos últimos anos entre EUA, Rússia e China é travada em diferentes campos, desde o econômico até o militar, mas também no científico/tecnológico, espacial, cibernético ou mesmo no cultural, na busca pela conquista da simpatia e da liderança, tentando atrair os demais membros da comunidade internacional para sua esfera de influência.

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A disputa ocorre com maior ou menor intensidade em diversas regiões do globo, como Ucrânia, Taiwan, Mar do Sul da China ou Oriente Médio. Nesse grande jogo, Rússia e China tem estado normalmente do mesmo lado, quer como parceiros declarados, quer ocupando uma posição de neutralidade que seja benéfica a ambos. Sempre, porém, antagonizando os EUA.

Entretanto, no caso do Ártico, é bastante provável que os interesses russos e chineses sejam divergentes e que esses atores caminhem de forma independente na busca de salvaguardar seus próprios interesses. Nesse caso, as mudanças climáticas responsáveis pelo derretimento da calota polar ártica terão disparado o gatilho de uma acirrada disputa geopolítica entre as três maiores potências militares do planeta.

 

[1] Veja o caso emblemático de Tuvalu, em reportagem da BBC – https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59480079

[2] Saiba mais em https://www.navalnews.com/naval-news/2021/04/arctic-exercise-umka-2021-shows-russian-ssbn-can-deliver-massive-strike/

[3] Disponível em http://english.www.gov.cn/archive/white_paper/2018/01/26/content_281476026660336.htm

[4] Disponível em https://media.defense.gov/2019/Jun/06/2002141657/-1/-1/1/2019-DOD-ARCTIC-STRATEGY.PDF

[5] Disponível em https://api.army.mil/e2/c/downloads/2021/03/15/9944046e/regaining-arctic-dominance-us-army-in-the-arctic-19-january-2021-unclassified.pdf

[6] Disponível em https://media.defense.gov/2021/Jan/05/2002560338/-1/-1/0/ARCTIC%20BLUEPRINT%202021%20FINAL.PDF/ARCTIC%20BLUEPRINT%202021%20FINAL.PDF

[7] Disponível em https://www.af.mil/Portals/1/documents/2020SAF/July/ArcticStrategy.pdf




Ocidente e Rússia se chocam na Ucrânia

A Ucrânia está no centro de uma crise que ameaça escalar para um confronto militar entre ucranianos e russos, com risco de transbordamento para outros países, o que seria gravíssimo para a estabilidade da Europa e do mundo. Mais do que uma simples disputa entre ucranianos e separatistas na região de Donbass, leste da Ucrânia e fronteira com a Rússia, os acontecimentos mostram o confronto entre duas visões de mundo. De um lado, europeus ocidentais e norte-americanos, que enxergam na Ucrânia um jovem país que tenta trilhar o caminho apontado pelas democracias liberais europeias, desvencilhando-se da Rússia depois do esfacelamento da União Soviética. De outro, a Rússia, que vê a Ucrânia como um território historicamente ligado à sua própria nacionalidade, um país fundamental para sua visão geopolítica, que deve ser mantido sob sua esfera de influência sob pena de ver os adversários europeus e norte-americanos demasiadamente próximos de Moscou.

Para entender como se chegou à situação atual, é importante recapitular alguns acontecimentos.

O primeiro grande império do leste europeu foi o Principado de Kiev, atual capital da Ucrânia, surgido no século IX. Sua população era constituída por uma mistura de Vikings escandinavos, que chegavam do Norte pelos rios, e pelos eslavos orientais, nativos da própria região. A pobreza do solo logo obrigou essas populações a buscarem novas terras, expandindo o território e delineando um império. Como explica Robert Kaplan, em A Vingança da Geografia, a Rússia, como conceito geográfico e cultural nasceu do Principado de Kiev.

Em permanente luta contra os nômades das estepes, no século XIII o principado foi devastado pelos mongóis comandados por Batu Khan, neto de Gengis Khan. A partir daí, com o passar do tempo, a história russa foi paulatinamente se deslocando para o Norte, até ficar centrada em Moscou, já no final da Idade Média.

Após a invasão mongol, o território onde hoje está a Ucrânia foi dominado por lituanos e poloneses. Em 1648, uma grande rebelião cossaca acabou por levar à partilha do território ucraniano entre russos e poloneses. Com a partilha da Polônia, no final do século XVIII, o território ucraniano é novamente dividido, agora entre russos e austríacos.

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Os colapsos dos impérios russo e austríaco, bem como a revolução russa, no início do século 20, deram espaço ao ressurgimento de movimentos nacionalistas ucranianos, que buscavam a independência. Entretanto, em 1919, a Ucrânia foi incorporada à União Soviética.

O colapso da União Soviética, em 1991, permitiu a independência da Ucrânia. No plebiscito realizado naquele ano, 90% dos ucranianos se posicionaram favoravelmente à separação, incluindo-se aí 80% da população da região de Donbass e 54% dos votantes da Crimeia, península com grande população russa.

Em 2004, a OTAN aceitou os três Estados Bálticos – Letônia, Estônia e Lituânia – como membros da Aliança. A União Europeia seguiu os passos da OTAN, estendendo sua fronteira para o leste para incluir uma série de ex-repúblicas soviéticas e aliados, incluindo os mesmos estados bálticos, República Tcheca, Hungria, Polônia, Eslováquia e Eslovênia.  Foi um choque para as lideranças russas, que esperavam que, em troca do apoio dado aos norte-americanos na invasão do Afeganistão após o 11 de Setembro, os EUA se mantivessem fora do que a Rússia considerava ser sua esfera de influência, os antigos Estados integrantes da URSS. O presidente Putin se sentiu pessoalmente afrontado.

Os ucranianos, naquele momento, estavam em um limbo, entre o ocidente e a Rússia. No final de 2004, multidões saíram às ruas, na chamada Revolução Laranja. Os manifestantes deixavam claro que desejavam que a Ucrânia ingressasse na União Europeia.

Em 2008, a Rússia invadiu a Geórgia, demonstrando que os Russos não estavam dispostos a admitir nenhum passo a mais da União Europeia ou da OTAN em direção às suas fronteiras.

Em 2013, uma nova onda de protestos varreu a Ucrânia, em razão da recusa do então presidente, Viktor Yanukovych, de assinar um acordo de associação do país à União Europeia. A situação se agravou, com o aumento da violência até que, em fevereiro de 2014, o Congresso destituiu o presidente Yanukovych e determinou a realização de eleições, que foram vencidas pelo candidato com uma plataforma pró-europeus.

Em 01 de março de 2014, antes mesmo da realização das eleições, a Rússia invadiu a Criméia, península estratégica que mantém, em Sebastopol, a sede da armada russa na Mar Negro. Em 6 de março o parlamento da Crimeia aprovou uma decisão no sentido de entra para a Federação Russa e, em 18 de março, tal adesão foi ratificada pelas duas partes, apesar da Assembleia Geral das Nações Unidas ter votado uma resolução se opondo a tal adesão.

Em abril, grupos pró-Rússia na província de Donbas, no leste da Ucrânia, iniciaram uma guerra civil. Embora a Rússia não reconheça, é fato hoje incontestável que o país apoiou militarmente os separatistas, em uma ação típica de Guerra Híbrida, com soldados e equipamentos, mas também com Operações de Informação e cibernéticas, o que impediu a Ucrânia de controlar a situação. Diversos países do ocidente impuseram sanções econômicas à Rússia em razão dessa interferência.

Em 2015 foram celebrados os Acordos de Minsk, proporcionando ao menos uma estrutura de diálogo entre as partes, mas a violência se manteve e mais de 13 mil vidas já foram perdidas nos combates.

Assim chegamos ao momento atual, no qual os ucranianos e norte-americanos acusam os russos de já terem concentrado na fronteira cerca de 90 mil soldados e estarem planejando uma invasão com um efetivo de cerca de 175 mil militares, com blindados, artilharia e tudo mais necessário para invadir a Ucrânia já nos primeiros meses do ano que vem.

Os russos negam a intenção ofensiva, afirmando que quem está se preparando para uma ação armada são os ucranianos, que estariam planejando atacar a região de Donbass. O presidente Putin reiterou que há “linhas vermelhas” que não devem ser cruzadas pelo Ocidente, referindo-se claramente à integração da Ucrânia à União Europeia ou à OTAN.

Em meio à crise, os presidentes dos EUA, Joe Biden, e da Rússia, Vladimir Putin, marcaram uma videoconferência para a próxima terça-feira, dia 07 de dezembro, para tratar do assunto. Vamos aguardar o desenrolar dos acontecimentos, para ver se eles conseguirão amenizar a crise e arrefecer as tensões.




A nova estratégia de segurança russa

No último dia 02 de julho, o presidente Vladimir Putin assinou a nova Estratégia de Segurança da Rússia. O documento substituiu a que estava em vigor, que datava de 2015. A renovação da Estratégia era esperada, uma vez que esses documentos são concebidos para vigorarem por seis anos.

Em 44 páginas, os estrategistas russos anunciam que o mundo passa por uma fase de transição, com a emergência de potências interessadas em modificar a ordem global, antes fortemente marcada pela unipolaridade representada pela proeminência de uma única superpotência e de seus aliados, para uma nova ordem, marcada pela multipolaridade. Essa transição teria o potencial de causar conflitos, pois a perda da primazia pelo Ocidente geraria distúrbios e reações, cada vez mais graves.

Os principais objetivos para a defesa dos interesses nacionais da Federação Russa seriam: preservar a unidade da nação, proteger o sistema constitucional, apoiar a sociedade civil, desenvolver o espaço informacional, desenvolver a economia, proteger o meio ambiente, fortalecer os valores tradicionais e manter estabilidade social, especialmente em face de ameaças externas.

A aproximação dos países da OTAN das fronteiras russas é apresentada no documento como sendo a principal ameaça à segurança nacional russa, que acusa os EUA de abandonarem acordos de desarmamento, levando a uma corrida armamentista. Essas ameaças são apontadas como razões para que a Rússia fortaleça ainda mais seu potencial militar.

Os russos apontam no documento a ação de forças estrangeiras, que atuariam tanto em território russo quanto no exterior, explorando dificuldades socioeconômicas para enfraquecer a coesão interna do povo russo. O documento também acusa o ocidente de atuar contra os valores tradicionais dos russos, impondo uma exacerbação do individualismo, propagandeando atitudes egoístas e culto à violência, numa tentativa de destruir a soberania e a cultura da Federação Russa.

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O ocidente também é acusado de, ao impor sanções econômicas e comerciais, dificultar as exportações russas de recursos naturais. O documento também identifica ações de contenção aos planos russos de desenvolver novas rotas comerciais, inclusive no Ártico.

Os russos pretendem diminuir as transações em dólar, com o objetivo de fortalecer a própria moeda. Os estrategistas russos reconhecem a necessidade de desenvolver e diversificar a economia do país, que precisaria passar a produzir e exportar itens de maior valor agregado, além de atuar para reduzir a dependência que a economia do país possui em relação a tecnologias importadas.

Sempre de acordo com o documento, a Federação Russa buscaria, em suas relações internacionais, os seguintes objetivos: fortalecer a estabilidade do sistema legal internacional, a fim de impedir sua aplicação de forma seletiva; fortalecer a paz mundial, evitando a eclosão de uma guerra mundial; aprimorar os mecanismos internacionais de segurança coletiva; impedir o uso de forças armadas em desacordo com o previsto na Carta da ONU; aprofundar a cooperação com os Estados-membros da CEI[1], Abecásia, Ossétia do Sul[2] e com os Estados-parte da União Eurasiana; desenvolver uma cooperação estratégica com China e Índia; participar ativamente dos BRICS; trabalhar pela estabilização de situações de crise em países fronteiriços à Rússia; fortalecer laços fraternais entre as nações russas, bielorrussas e ucranianas e; contrapor-se às tentativas de falsificar a história.

Como se vê, a Estratégia de Segurança da Rússia aponta para uma maior aproximação do país da China e da Índia e continua reconhecendo a OTAN como principal inimiga. O documento enfatiza que os russos se consideram vítimas de uma guerra cultural, onde os “valores russos” estariam sendo atacados pelo ocidente, com o objetivo de enfraquecer a coesão nacional. Os russos dão grande importância à sua área de influência, especialmente aos países que lhe fazem fronteira. As referências à Belarus e Ucrânia não são em vão, pois trata-se de dois países emblemáticos na disputa por influência travada entre russos e ocidentais.

Todo documento dessa natureza tem, entre seus objetivos, passar mensagens tanto para o público interno quanto para a comunidade internacional. Neste caso, não há muito espaço para dúvidas. Os russos traçaram as linhas vermelhas que, de seu ponto de vista, não devem ser ultrapassadas pelo ocidente. O problema é que, ao ler os documentos similares dos países da OTAN[3], descobre-se que, do ponto de vista da Aliança do Atlântico Norte, as linhas vermelhas não são coincidentes. É nesse descompasso que está a maior ameaça à paz mundial.

Acesse ao documento aqui Estratégia Nacional de Segurança a Rússia

[1] A CEI (Comunidade dos Estados Independentes) foi criada em 1991, após a desagregação da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Os países integrantes são: Armênia, Belarus, Cazaquistão, Federação Russa, Moldávia, Quirquistão, Tadjiquistão, Ucrânia, Uzbequistão, Azerbaijão e Turcomenistão (membro associado).

[2] Abecásia e Ossétia do Sul são regiões da Geórgia que foram reconhecidas como independentes pela Federação Russa.

[3] Fiz a análise de documentos dos EUA, OTAN e do Reino Unido, disponíveis em https://paulofilho.net.br/2018/03/26/mudancas-nas-prioridades-de-defesa-norte-americanas/ , https://paulofilho.net.br/2020/12/06/a-visao-da-otan-para-2030/ , e

https://paulofilho.net.br/2021/03/23/como-os-britanicos-veem-seu-papel-no-mundo-em-2030-e-como-estao-se-preparando-para-exerce-lo/




A viagem de Biden à Europa

Este artigo foi publicado no Jornal O Estado de S. Paulo em 28/06/2021

Joe Biden vem de fazer sua primeira viagem à Europa como presidente dos Estados Unidos. Durante oito dias visitou o Reino Unido, reuniu-se com o G-7, com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e com o presidente russo, Vladimir Putin. Foi uma viagem cheia de mensagens e significados, durante a qual as sombras da China e da Rússia estiveram sempre presentes nas conversas.

Ao chegar mais cedo ao Reino Unido, que sediaria a reunião do G-7, Biden reforçou a aliança preferencial de seu país com os britânicos. No comunicado conjunto, em 20 parágrafos Biden e o primeiro-ministro Boris Johnson reforçam a crença comum de seus países no que eles chamaram de defesa da democracia, dos direitos humanos e do multilateralismo, reforçando o papel da ONU, que eles afirmam ser central, no sistema internacional.

No prosseguimento, ainda no Reino Unido, Biden e Johnson se reuniram com os líderes dos outros cinco países que compõem o G-7: Canadá, França, Alemanha, Japão e Itália. O comunicado divulgado ao término dos trabalhos destaca seis pontos principais: tomar providências em relação à pandemia de covid-19, revigorar a economia dos países integrantes do grupo, assegurar um futuro de prosperidade, proteger o meio ambiente do planeta, fortalecer parcerias do grupo, em especial com a África, e fortalecer os valores democráticos e de liberdade, igualdade, respeito à lei e aos direitos humanos.

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Joe Biden, de Evan Osnos

O comunicado afirma ainda que para a pandemia ser vencida em 2022 cerca de 60% da população mundial terá de estar vacinada. Nesse sentido, o G-7 compromete-se a financiar mais 1 bilhão de doses de vacinas, a serem distribuídas principalmente aos países pobres, até o fim de 2022. O grupo apoia que sejam feitas investigações transparentes, lideradas pela Organização Mundial da Saúde, sobre as origens da doença, na China. Aliás, esse país foi citado mais duas vezes no comunicado, em aspectos bastante sensíveis para o gigante asiático. O G-7 alertou a China sobre as questões dos direitos humanos, especialmente no referente aos uigures, minoria islâmica que habita a região autônoma chinesa de Xinjiang, e também em relação aos habitantes de Hong Kong. Além disso, o grupo fez referência a Taiwan, clamando por uma solução pacífica das questões que envolvem a ilha e externando preocupações com o que chamou de tentativas de mudança do status quo na região dos Mares do Leste e do Sul da China.

O encontro da Otan, realizado em Bruxelas, reuniu os 30 países que compõem a aliança militar. No comunicado divulgado, a Rússia figura como a principal ameaça. O país é acusado de ações agressivas que estariam deteriorando a segurança internacional: exercícios militares de larga escala, até mesmo nas proximidades das fronteiras dos países da Otan, instalações de mísseis modernos e de uso dual em Kaliningrado, integração militar com Belarus e violações em série do espaço aéreo dos países aliados. A Rússia também é acusada de promover ações de guerra híbrida, como tentativas de interferência em eleições de países democráticos, estabelecimento de pressões políticas e econômicas com a finalidade de intimidar outros países, financiamento de campanhas de desinformação e de ataques cibernéticos. Além disso, os russos são acusados de atuar ilegalmente com suas agências de inteligência em território de países da Otan e de expandir e modernizar seu arsenal nuclear, com vista a desestabilizar o equilíbrio de forças hoje existente.

A China também não passou despercebida na reunião da Otan. O país foi acusado de se comportar de forma a desafiar a ordem internacional. O comunicado afirma que suas políticas coercitivas contrastam com os valores fundamentais da aliança e que causam preocupação a expansão e a modernização de seu arsenal nuclear, além de sua aproximação militar da Rússia, até mesmo com participação conjunta em exercícios militares.

O último evento do presidente Biden na Europa foi a reunião com o presidente Vladimir Putin, da Rússia, por três horas, em Genebra. Do encontro, a única medida prática anunciada foi o retorno dos embaixadores dos dois países aos seus postos, de onde estavam afastados havia alguns meses.

No dia seguinte ao término da viagem, o mundo assistiu às imagens em alta definição da espaçonave chinesa levando três tripulantes para a estação espacial que o país constrói na órbita terrestre. Para muitos analistas, a leitura dos comunicados do G-7 e da Otan, emoldurados pelas cenas dos chineses no espaço, escancara que o sistema internacional está assistindo, realmente, a um período de transição hegemônica. Como sempre, em momentos assim, as potências estabelecidas se esforçam na manutenção do status quo e das características sistêmicas que as conduziram à hegemonia. Ao mesmo tempo, a potência emergente tenta moldar o mundo de acordo com seus próprios interesses. O atrito resultante, como sempre, gera calor. Que os líderes mundiais saibam controlar a temperatura, manter o diálogo e favorecer a manutenção da paz.




A OTAN e as mudanças no equilíbrio do poder mundial

No último dia 14 de junho, os chefes de governo dos 30 países aliados que compõem a OTAN se reuniram em Bruxelas. A leitura da declaração(1) conjunta proporciona uma boa compreensão de como a mais poderosa aliança militar da história vê a atual conjuntura mundial, quais são as ameaças que eles identificam e quais caminhos eles irão traçar em assuntos de defesa, sempre mantendo em vista as três tarefas fundamentais da Aliança: prover segurança coletiva, gerenciar crises e fortalecer a cooperação em segurança.

Os aliados identificam ameaças provenientes de todas as direções estratégicas, representadas pela competição sistêmica de potências “autoritárias e assertivas”; terrorismo; atores estatais e não-estatais que atuam para minar a ordem internacional, o estado de direito e a democracia; instabilidades políticas e sociais além das fronteiras dos países da OTAN que causam a imigração ilegal e o tráfico de pessoas; aumento das ameaças cibernéticas, híbridas e assimétricas, que incluem campanhas de desinformação; aumento das ameaças no domínio espacial; proliferação de armas de destruição em massa e erosão da arquitetura legal internacional destinada a controla-las; além das ameaças representadas pelas mudanças climáticas.

Para fazer face a essa conjuntura e ameaças, a Aliança adotou a chamada OTAN 2030 – Agenda Transatlântica para o Futuro. O documento lista uma série de providências, dentre as quais destaco a seguir as que considero mais relevantes.

– Fortalecer a OTAN como instrumento de segurança coletiva da região Euro-atlântica, contra todas as ameaças, vindas de todas as direções. Reitera-se o compromisso de se manter um apropriado mix de armas nucleares e convencionais para dissuasão e defesa.

– Adotar medidas no sentido de acelerar a cooperação entre os Estados aliados para o desenvolvimento de novas tecnologias na área de defesa.

– Fortalecer a capacidade da OTAN de preservar a atual ordem internacional nos aspectos que afetam a segurança coletiva dos países da Aliança. Isso inclui fortalecer o diálogo e a cooperação com países não aliados da própria Europa, Ásia, África e América Latina.

– Transformar a OTAN em uma organização internacional que lidere a compreensão dos impactos das mudanças climáticas na área de segurança. Isso inclui esforços para que as próprias forças armadas dos países aliados atinjam o equilíbrio nas emissões de carbono que resultam das atividades militares até 2050.

– Prover a Aliança dos recursos necessários, por intermédio dos orçamentos de defesa dos países-membros e do fundo comum da OTAN, para financiar os ambiciosos objetivos propostos.

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Prisioneiros da Geografia – Tim Marshall

A Rússia é citada nominalmente 62 vezes na declaração de Bruxelas. É, sem dúvidas, a maior ameaça identificada pela OTAN. O relatório afirma que os russos continuam a violar os princípios, a confiança e os compromissos previstos nos documentos que sustentam as relações entre o país e a OTAN. Praticamente toda a cooperação civil e militar entre a OTAN e a Rússia permanece suspensa. Os aliados reafirmam que manterão o que consideram ser uma resposta à deterioração do ambiente de segurança com o aumento de seu poder dissuasório e de sua “postura defensiva”, inclusive com a presença militar nas fronteiras mais orientais da Aliança.

Os russos são acusados de crescente desenvolvimento de capacidades militares nos múltiplos-domínios, de promover atividades militares provocativas, como exercícios militares inopinados e em larga escala, inclusive nas proximidades das fronteiras de países aliados, de aumentar seu poderio militar estacionado na Criméia, instalação de sistemas modernos de mísseis em Kaliningrado, aumento da integração militar com a Belarus e repetidas violações do espaço aéreo da OTAN.

A Rússia também é acusada de promover ações de Guerra Híbrida como tentativas de interferência em processos eleitorais de países da Aliança, intimidar e exercer pressões políticas e econômicas, lançar campanhas de desinformação, guerra cibernética, além de atuar com seus serviços secretos em atividades ilegais nos países da OTAN.

A OTAN acusa a Rússia de diversificar seu arsenal nuclear, inclusive desdobrando sistemas de mísseis de curto e médio alcance de modo a ameaçar a aliança e de ocupar ilegalmente a Crimeia, atuando diretamente contra a soberania da Ucrânia. Ações contra a Geórgia e a Moldávia também são condenadas.

Após dedicar-se à ameaça representada pela Rússia, o documento passa a analisar os demais desafios à segurança da OTAN.

O terrorismo se mantém listado como uma ameaça direta à segurança das populações, e embora o documento reconheça que a segurança interna é responsabilidade de cada país, a OTAN está atenta e contribuirá sempre para o enfrentamento dessa ameaça. O documento cita a atuação no Afeganistão e no Iraque, dizendo que, apesar de estar retirando suas tropas do Afeganistão, permanecerá comprometida com o enfrentamento do terrorismo internacional.

A OTAN afirma seu apoio a uma completa, irreversível e verificável desnuclearização da Coreia do Norte e seu compromisso de não permitir que o Irã possua armamento nuclear. Afirma que apoia a retomada das negociações para que o JCPoA – o acordo nuclear com o Irã – seja retomado para que as atividades nucleares naquele país tenham finalidades exclusivamente pacíficas.

O conflito na Síria, que entra em seu 11º ano, também é listado como fonte de instabilidade na região e de insegurança para a fronteira sul da Aliança, que não hesitará em agir militarmente para preservar a segurança contra ameaças provenientes daquela região.

A instabilidade política em Belarus também causa preocupação, e a ação que obrigou o pouso de uma aeronave civil que sobrevoava o país, com a prisão de um opositor do regime que estava a bordo, foi classificada como inaceitável.

O “comportamento assertivo” e as ambições chinesas são apresentadas como ameaças à ordem internacional. Sua modernização e expansão do arsenal nuclear, a chamada “estratégia de fusão civil-militar”, a crescente cooperação militar com a Rússia, inclusive com a participação em exercícios militares conjuntos na área Euro-atlântica, sua falta de transparência e uso de campanhas de desinformação, são apontadas como causas de preocupação.

As mudanças climáticas são apontadas como os desafios conformadores dos tempos atuais. Significam ameaças com múltiplos impactos, tanto na área Euro-atlântica, quanto nas vizinhanças da Aliança. A OTAN se compromete a regularmente avaliar os impactos das mudanças climáticas no ambiente estratégico e nas suas operações.

A chamada “política de portas abertas”, que permite a entrada de novos países europeus na Aliança, é reforçada. O documento afirma que essa é uma questão que diz respeito apenas ao país que deseja entrar na Aliança e à própria OTAN, não interessando a terceiros países. Isto é um claro recado à Rússia, que é contrária ao ingresso dos países do leste europeu, em especial da Ucrânia e da Geórgia, na OTAN.

Para fazer face aos desafios acima listados, além de outros constantes no documento, a OTAN delineia uma série de medidas para fortalecer sua capacidade dissuasória, incluindo-se aí medidas de modernização de seu arsenal nuclear, inclusive por intermédio de suas capacidades missilísticas.

A declaração de Bruxelas deixa claro que a OTAN está preocupada com as mudanças no equilíbrio global de poder. A Rússia é apontada como a maior ameaça a Aliança, mas a China, o Irã e o terrorismo, além das mudanças climáticas, também são apresentados como desafios à segurança e à estabilidade mundial.

A Aliança Euro-atlântica reage ao que considera ser uma postura desafiadora de russos e chineses, que por sua vez alegam estar se preparando para ameaças à sua segurança por parte da OTAN. É o velho Dilema da Segurança, em que a percepção da ameaça externa provoca um maior investimento em segurança e defesa, que por sua vez desperta no outro lado o mesmo sentimento, em uma escalada que acaba por afetar ambos os lados da disputa.

A conclusão, evidente, é a de que há muitos pontos de atrito e confrontação, todos potenciais causadores de crises, que deverão ser manejadas com habilidade por todos os envolvidos, para a manutenção da paz.

(1) Leia a declaração em https://www.nato.int/cps/en/natohq/news_185000.htm




As tensões entre as maiores potências militares do planeta

Neste exato momento, é bastante provável que dois contratorpedeiros, o USS Donald Cook e USS Roosevelt, da marinha norte-americana, estejam em deslocamento para o Mar Negro. A informação foi divulgada pela Turquia, não sendo oficialmente confirmada pelos EUA. O acesso dos países sem costa para o Mar Negro é livre, conforme a Convenção de Montreal, de 1936. Entretanto, o trânsito pelo Estreito de Bósforo, que dá acesso àquele mar, deve ser informado à Turquia com duas semanas de antecedência. Os EUA teriam informado o trânsito dos dois navios, que cruzariam o Estreito nos dias 14 e 15 de abril e permaneceriam no Mar Negro até os primeiros dias de maio. A Rússia já anunciou que, no mesmo período, estará com sua frota fazendo exercícios na mesma região.

Mar Negro

 

A presença de navios da marinha norte-americana no Mar Negro não é uma novidade. Mas desta vez, a notícia é divulgada em pleno momento de grave acirramento de tensões entre Rússia e Ucrânia, com reflexos óbvios para uma escalada de tensões entre a Rússia e a OTAN. Os russos concentraram a maior quantidade de tropas nas proximidades da fronteira com a Ucrânia desde 2014, ano em que o país anexou a península da Crimeia. Desde então, as forças ucranianas têm travado combates contra separatistas patrocinados pela Rússia na região de Donbass, na porção mais oriental do país. Há poucos dias, em 26 de março, a Ucrânia anunciou a morte de mais quatro soldados do seu exército naqueles combates. Ao mesmo tempo, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, fez declarações expressando a sua intenção de integrar seu país à OTAN, o que desagrada profundamente as autoridades russas.

Além dessa questão, uma série de outras notícias envolvendo os EUA, Rússia e China demonstram que as relações entre as principais potências militares do planeta vivem um momento de tensionamento bem acima da normalidade.

A primeira notícia é a entrevista do presidente Biden ao jornalista George Stephanopoulos, na rede de televisão ABC. Biden concordou com a assertiva de Stephanopoulos de que o presidente russo Vladimir Putin seria um assassino. Disse ainda que Putin “pagará o preço” por interferir nas eleições do país, o que teria acontecido, segundo um relatório da inteligência norte-americana recentemente divulgado, em favor do ex-presidente Trump.

A resposta russa foi imediata e o embaixador do país nos Estados Unidos foi chamado à Moscou “para consultas”. Como se sabe, no balé da diplomacia, este é um gesto que demonstra profundo descontentamento. A explicação da chancelaria russa foi a de que o embaixador seria consultado de modo a “não permitir que a relação entre os dois países se deteriore de maneira irreparável”. O presidente Putin, em declaração imediatamente posterior, desejou “vida longa” ao presidente Biden para depois dar a entender que o presidente dos EUA identificava em outras pessoas características de sua própria personalidade.

Um chefe de Estado chamar outro de assassino, em tempo de paz, é algo extremamente incomum. O presidente Biden é um político experiente, que já foi vice-presidente da república e senador por décadas. É claro que sabia perfeitamente da repercussão que teria sua fala. Se fez isso só se pode crer que tenha sido com o objetivo de escalar as tensões com os russos.

Mas, esse não foi o único evento recente e estressar a relação entre as duas potências. A empresa russa Gazprom lidera a construção do Gasoduto Nord Stream 2, que duplicará a quantidade de gás natural que os russos vendem à Alemanha. Trata-se de um projeto de 1200 Km, que já teve 94% de sua construção terminada, e que ligará os dois países pelo Mar Báltico. O projeto recebe forte oposição dos EUA, que consideram que a obra visa, na verdade, a “dividir a Europa e enfraquecer sua segurança energética”, como declarou o Secretário de Estado Antony Blinken no último dia 18 de março. Isto porque o gasoduto contorna a Ucrânia, que desta forma não recebe os royalties devidos pela passagem do gás por seu território. Na mesma declaração, os norte-americanos reiteram as sanções que já são aplicadas às empresas que trabalham na construção do gasoduto e afirmam que estas podem ser estendidas caso novas empresas venham a ser identificadas. Trata-se de uma questão delicada por envolver a aliada Alemanha, que defende a construção do gasoduto.

Para completar as recentes rusgas nas relações entre EUA e Rússia, o embaixador russo em Sarajevo escreveu um artigo dizendo que “a Rússia terá que reagir” caso a Bósnia e Herzegovina ingresse na OTAN, aliança militar ocidental liderada pelos EUA. Assim como os ucranianos, os bósnios movimentam-se para se juntar à aliança. O país, além da Sérvia e de Kosovo, cuja soberania ainda está em aberto, são os únicos países dos Balcãs que não aderiram à OTAN. Montenegro juntou-se à aliança em 2017, enquanto a Macedônia do Norte se tornou membro no ano passado.

Ao mesmo tempo, no Alasca, acontecia um “diálogo de alto nível”, entre EUA e China. O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken se encontrou com o Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi e com Yang Jiechi, principal diplomata chinês. Embora tenham terminado em tom ameno, com as trocas de boas intenções de praxe, as conversas começaram em um tom muito duro, com Blinken afirmando que os EUA defendem uma ordem internacional baseada em regras, sem o que o mundo seria muito mais violento. Disse que os EUA consideravam que as ações chinesas no trato da minoria étnica uigur, na região de Xinjiang, e em relação a Taiwan e Hong Kong, além de ataques cibernéticos aos EUA e coerção econômica da China em relação a países aliados dos EUA, violavam essa ordem internacional baseada em regras.

Yang Jiechi respondeu no mesmo tom, afirmando que a China se opõe firmemente à interferência em seus assuntos internos, como seria o caso de Taiwan, Xinjiang e Hong Kong, e que os EUA, além de não estarem em posição de “dar lições” à China, deveriam se concentrar em seus próprios problemas em relação ao respeito aos direitos humanos.

Russos e chineses têm se aproximado bastante, inclusive militarmente. As sanções econômicas que norte-americanos e europeus impuseram aos russos em razão da anexação da Crimeia e da ação militar russa na Ucrânia acabaram por incentivá-los a se aproximar da China, que por sua vez ampliou significativamente seu comércio com os russos e, pela Iniciativa Belt and Road, tem oferecido vários projetos ao enorme vizinho de norte.

Os momentos de crise e de acirramento de tensões exigem estadistas hábeis na escolha dos momentos de escalar e de arrefecer as tensões. Esperemos que este seja o caso de todos os envolvidos.




O que esperar da política internacional em 2021?

O ano que se encerrou demonstrou da forma mais difícil que o inesperado está a nos espreitar, modificando a realidade, interrompendo planos, provocando adaptações, causando perplexidades, trazendo medo e exigindo reação.

Apesar de vários alertas e estudos predizerem a possibilidade e os efeitos potencialmente catastróficos de uma pandemia, ninguém estava prestando atenção nisso e a Covid-19 pegou a todos de surpresa.

Bem, 2021 começou e as surpresas continuaram. Não ultrapassamos ainda a primeira quinzena do ano e o Congresso norte-americano foi invadido por uma turba e o Presidente Trump sofre um inédito segundo processo de impeachment a uma semana de passar o cargo.

Tudo isso demonstra que tentar antecipar acontecimentos é uma tarefa arriscada. Mas, baseados nos indícios disponíveis é possível, pelo menos, selecionar alguns assuntos internacionais sobre os quais devemos concentrar nossa atenção.

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Nesse cenário, os rumos que serão dados à política externa norte-americana merecem destaque. No governo Biden, espera-se um retorno ao multilateralismo, com o país buscando legitimar suas ações sob o respaldo de entidades como a ONU, OTAN, OMC etc. Mas, para isso, o país terá que reconquistar muito espaço perdido nesses organismos, como o caso da Organização Mundial de Saúde, claramente sob influência preponderante da China, demonstra.

Aliás, o relacionamento dos EUA com a China deveria ser um foco primordial de atenção. Nesse caso, não se espere grandes modificações no ambiente de confrontação geopolítica, com os EUA tentando conter a crescente influência da China, enquanto os chineses buscam expandir seu poder e prestígio em escala mundial. Um exemplo interessante dessa tentativa de expansão será notada na maior presença de produtos culturais chineses disponíveis para consumo no ocidente, como produções cinematográficas, livros, reportagens e exposições divulgando a cultura do país. Seremos definitivamente apresentados ao softpower chinês.

Será, ainda, interessante observar a assertividade de sua política externa e, no campo interno, o completo domínio de Xi Jinping sobre a máquina partidária. É provável que acompanhemos o acelerado fim da política um país dois sistemas, com Hong Kong tendo cada vez menos autonomia. A independência de facto de Taiwan continuará sendo um grande aborrecimento para Beijing, mas também uma oportunidade para o governo estimular o crescente nacionalismo chinês. As questões referentes ao tratamento que o país concede a minoria étnica dos uigures, na província de Xinjiang, e aos tibetanos, certamente aparecerá nos noticiários. As questões fronteiriças com a Índia, que em 2020 levaram a confrontos com mortes de militares que redundaram em uma ainda maior militarização dos dois lados da fronteira, além da expansão chinesa em direção ao Mar do Sul da China, são questões que também possuem o potencial de iniciar crises.

O Irã é outro foco de atenção. Joe Biden declarou, em campanha, que seu governo retornaria ao acordo nuclear de 2015, do qual Trump retirou os EUA em 2018. Entretanto, essa retomada não será simples. A realidade hoje é outra, com as tensões entre os dois países em um nível muito mais elevado, especialmente em razão da morte do general iraniano Qassem Soleimani, e da recente decisão do país de voltar a enriquecer urânio ao nível de 20%. A realidade geopolítica regional também se modificou: os iranianos rivalizam cada vez mais com árabes e israelenses, tornando quaisquer negociações muito mais complicadas. Aliás, um ataque a algum alvo norte-americano, árabe ou israelense, por iranianos ou seus proxies, em vingança pela morte de Soleimani, não seria uma surpresa em 2021.

As mudanças climáticas também se manterão no foco em 2021, com repercussões para a pauta ambiental. As pressões da comunidade internacional e da opinião pública, especialmente sobre países em desenvolvimento como o Brasil, se manterão. O derretimento do Oceano Ártico intensificará a disputa geopolítica naquela área, em razão da crescente utilização comercial e militar das rotas marítimas naquele oceano. 2020 foi o ano em que foi batido o recorde de viagens atravessando a Rota Norte, que encurta consideravelmente as distâncias entre o norte da Europa e o Oceano Pacífico. A Rússia, em razão disto, voltou suas atenções para o Ártico.

Mas a atenção dos russos não estará voltada somente para o Norte. Espera-se a continuidade de sua atuação na África e na Síria, além do leste da Europa, Cáucaso e Ásia Central. Putin manterá sua política externa voltada para reconstruir o que ele considera ter sido perdido com o desmoronamento da antiga União Soviética. Para isso o país manterá sua forte atuação também no ambiente cibernético. Em 2021 veremos muitos casos de ataques cibernéticos a empresas e governos do ocidente, que serão atribuídos a “hackers russos”.

Muitos outros pontos de atenção poderiam ser levantados: a Coreia do Norte e seus lançamentos provocativos de mísseis; o Brexit e suas consequências para o Reino Unido e a Europa; a crise venezuelana a afetar o cenário sul-americano; e, finalmente, o desenlace da crise mundial da Covid-19 e a efetividade das vacinas, com todas as suas repercussões sociais e políticas.

Não vai faltar assunto em 2021.




A visão da OTAN para 2030

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mais poderosa aliança militar da história, acaba de publicar um documento[1] com análises e recomendações elaboradas por um Grupo de Trabalho designado especialmente para essa tarefa pelo Secretário Geral da Organização.

Ao grupo, foi solicitado que se dedicasse a encontrar formas de aumentar a unidade, coesão, solidariedade e coordenação entre os países-membros da Aliança. Além disso, o grupo também deveria buscar maneiras de reforçar o papel político da organização, além de indicar instrumentos para enfrentar as ameaças atuais e futuras, tudo isso tendo o ano de 2030 como horizonte temporal.

De início, o relatório diagnostica que o ambiente estratégico atual é caracterizado pelo retorno à rivalidade sistêmica, com a Rússia apontada como persistentemente agressiva e a China, como potência emergente. O ambiente ainda é marcado pelo surgimento acelerado de tecnologias disruptivas e pela elevação de ameaças e riscos transnacionais de toda a ordem.

O retorno à competição geopolítica é definido como sendo a principal característica do ambiente internacional de segurança. A Rússia é mantida no posto de principal ameaça à OTAN. O país é acusado de continuada agressão à Ucrânia e à Geórgia, ao mesmo tempo em que se volta para o Atlântico Norte e para o Oceano Ártico. Além disso, os russos estariam ampliando suas ações de guerra híbrida, com o objetivo de atuar no interior dos países da Aliança, para dividi-los e erodir sua coesão social. Os russos são ainda acusados de usar proxies e mercenários para atuarem em defesa de seus interesses em países do Norte da África e Oriente Médio.

Em relação à China, o documento aponta que sua maior assertividade constitui um desafio bastante diferente daquele representado pela Rússia. Embora os chineses não sejam considerados, no presente, uma ameaça militar direta à área Euro-atlântica, sua agenda internacional se apoia cada vez mais em seu peso econômico e crescente poderio militar. Isso indicaria que, em breve, os interesses chineses poderão colidir com os dos países da Aliança. Sua estratégia de fusão civil-militar presente no desenvolvimento tecnológico nas áreas nuclear, naval e de mísseis, para dar alguns exemplos, é um fator complicador, como demonstra a disputa que a China trava com países europeus na tecnologia de internet de 5ª geração.

O terrorismo tem sido, e permanecerá sendo, uma das ameaças mais imediatas aos países da Aliança e aos seus cidadãos. Embora o combate ao grupo Estado Islâmico tenha sido exitoso ao reduzir a capacidade de atuação daquele grupo, que vinha se constituindo na principal origem das ameaças terroristas, outros atores não-estatais motivados por extremismos religiosos ou políticos permanecem atuando.

Nos próximos dez anos, as tecnologias disruptivas representarão, tanto oportunidades, quanto ameaças à segurança dos países aliados e de suas populações. Essas tecnologias mudarão a natureza da guerra, possibilitando, por exemplo, ataques com misseis hipersônicos e operações de natureza híbrida ainda mais efetivas. A guerra estará cada vez mais presente no domínio espacial.

Sempre segundo as conclusões do relatório, mudanças climáticas poderão acelerar a escassez de recursos e gerar insegurança alimentar. Maiores efetivos populacionais sofrerão com a falta de água. Os níveis dos oceanos poderão se elevar. Tudo isso poderá aumentar ainda mais os fluxos de migrantes e refugiados em direção aos países da OTAN. O derretimento da calota polar ártica aumentará as disputas geopolíticas pelo controle das rotas marítimas comerciais que passarão a ser viáveis no Norte.

Para enfrentar essa realidade, o documento faz 138 recomendações. Dentre essas, podemos citar a proposição de que a OTAN mantenha, em relação à Rússia, uma dupla abordagem, ao mesmo tempo dissuasória e aberta ao diálogo. No que se refere à China, os aliados devem devotar muito mais recursos, tempo e ações para fazer face aos desafios de segurança impostos pelo gigante asiático.

Para o enfrentamento do terrorismo a Aliança deve prover recursos adequados ao fortalecimento dos sistemas de segurança cibernética e de defesa contra ameaças hibridas.

Quanto ao armamento nuclear, ao mesmo tempo em que o relatório aponta a necessidade do fortalecimento do controle desse tipo de arsenal, indica que a dissuasão nuclear deve ser mantida.

Outra recomendação relevante do documento é a de se criar um centro de excelência em segurança climática. As ameaças não militares à segurança, tais como as oferecidas pelo clima, mas também de outros tipos, como as pandêmicas, devem receber maior atenção da organização.

Enfim, o documento alerta os países membros da Aliança acerca dos muitos, variados e complexos riscos que se apresentam no curto espaço de tempo que nos separa de 2030. Mais uma vez os estrategistas alertam para o ambiente volátil, incerto, complexo e ambíguo que caracteriza o atual momento do Sistema Internacional.

Para nós, que estamos aqui na América do Sul, a leitura do documento é interessante não somente pela análise de cenário e pelas conclusões, mas também por desnudar a maneira de pensar dos formuladores das estratégias da Aliança. Quando 2030 chegar, é provável que nem todas as previsões se confirmem. Mas há uma boa possibilidade de que algumas já tenham se tornado realidade. Como seremos afetados? Estaremos prontos? São boas perguntas, para as quais não se deve ter necessariamente respostas. O importante é que, acompanhando cenários como os descritos no documento da OTAN, sejamos capazes de conhecer melhor as ameaças e nos preparemos adequadamente para as múltiplas possibilidades que o século XXI nos reserva.

[1] Disponível em https://paulofilho.net.br/wp-content/uploads/2020/12/Relatorio-OTAN.pdf




FIM DA GUERRA (por enquanto) EM NAGORNO KARABAKH

Armênia e Azerbaijão assinaram, no último dia 10 de novembro, um acordo para cessar as ações militares e pôr fim a este capítulo do conflito que envolve os dois países já há duas décadas.

Com a intermediação do presidente russo Vladimir Putin, o Primeiro-Ministro da Armênia, Nikol Pashinyan, e o Presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, concordaram em congelar a situação tal como ela se encontrava no dia 10 de novembro; ou seja, os avanços de tropas cessariam e a posse das regiões de Nagorno-Karabakh passariam a ser das tropas que controlassem o território naquela data.

Além disso, ficou acordado que os armênios deverão se retirar de sete províncias em território azerbaijano, as quais estavam controladas pelos armênios desde a guerra de 1991-94, e que tropas russas – em torno de dois mil homens – seriam desdobradas na região para separar os lados em conflito e garantir os termos do acordo.

O mapa abaixo facilita o entendimento do tratado.

Mapa adaptado pelo autor com base no existente em https://www.dhakatribune.com/

 

Em verde, no mapa, pode-se observar a área retomada pelas forças do Azerbaijão, que em uma manobra estratégica de flanco, pelo o Sul, conseguiram conquistar a cidade de Shusha, importantíssima do ponto de vista estratégico, uma vez que domina o corredor de Lachin, por onde os armênios abasteciam Nagorno-Karabakh com toda a sorte de suprimentos. Ao Norte, em terreno montanhoso e de progressão muito mais difícil, os ganhos territoriais azerbaijanos foram muito menores.

Foi uma vitória militar do Azerbaijão, sem dúvidas. Mas não uma vitória completa, visto que 2/3 do território de Nagorno-Karabakh permanecem sob controle da minoria armênia. Por alguma razão ainda não totalmente clara, os azerbaijanos não prosseguiram para a conquista da cidade de Stepankert, mais importante de toda a região, a apenas 11 quilômetros de Shusha. Certamente, esse prosseguimento estava no planejamento operacional, porque seria o natural objetivo para o aproveitamento do êxito decorrente da conquista de Shusha. Especula-se que a derrubada acidental, pela artilharia antiaérea do Azerbaijão, de um helicóptero russo sobre território armênio, no mesmo dia da conquista de Shusha, com a morte da tripulação, tenha desencadeado uma resposta mais assertiva dos russos no sentido de que poderiam entrar ao lado da Armênia se o conflito não fosse imediatamente interrompido.

De qualquer forma, o Azerbaijão comemora uma vitória pelas armas, que resulta no retorno à sua soberania de áreas de seu território perdidas na guerra de 1991/94 e que, por quase trinta anos, tentou recuperar por vias diplomáticas, sem sucesso. Isso aconteceu, em grande parte, por uma conjunção de fatores.

O primeiro deles foi o apoio decisivo da Turquia, tanto em recursos materiais quanto diplomáticos. Além disso, suspeita-se do envio pelos turcos de combatentes, recrutados na Síria para lutar ao lado das tropas azeris.

O segundo aspecto foi a neutralidade russa. A Armênia sempre contou com o apoio russo, com quem possui um acordo militar de segurança mútua, para dissuadir o Azerbaijão de uma aventura militar. Entretanto, desde que o Primeiro-Ministro Nikol Pashinyan assumiu o governo da Armênia, em 2018, o país adotou uma postura pró-ocidente, de aproximação da Europa, que contrariou os interesses russos. A neutralidade foi uma maneira bastante clara de a Rússia manifestar sua insatisfação.

O terceiro aspecto foi a inação dos EUA e da Europa. Enquanto os norte-americanos estavam totalmente concentrados em seu processo político interno de eleições presidenciais, os europeus mantinham-se completamente incapazes de atuar como um bloco coeso e permaneceram hesitantes em intrometer-se em problemas na área de influência russa.

Dada a conjunção de fatores acima, o Azerbaijão se sentiu à vontade para atuar militarmente, colocando em prática a máxima clausewitzniana de que a guerra é a continuação da política por outros meios.

Mas essa guerra travada no Cáucaso serve de alerta para uma realidade que poderá ser observada em outras partes do mundo. A emergência de uma ordem global multipolar, ao mesmo tempo em que há um enfraquecimento dos organismos multilaterais, multiplica os riscos de conflitos. Novas potências globais ou mesmo potências regionais em ascensão passam a ter seus interesses político-ideológicos, militares e econômicos ampliados e encontram a liberdade para agir que antes lhes era negada pelos freios que eram impostos pelas potências hegemônicas ou pelos organismos internacionais.

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Assim, é possível se observar interesses dos EUA e da China colidirem na Ásia, na África e mesmo na América do Sul. Disputas também ocorrem entre turcos e russos no Cáucaso, na Síria e na Líbia. Diversos outros exemplos podem ser encontrados em outros locais, com outros atores, como na região da Caxemira, do Mar do Sul da China, Península da Coreia, Mar da China Oriental, Norte da África, Oriente Médio, Região do Magreb africano, Leste Europeu, Norte da América do Sul e Caribe, e Chifre da África, dentre outros.

Como se vê, a ordem multipolar que caracteriza o início do século 21 é notadamente mais instável e fomentadora de disputas. Por isso mesmo, ela exige o aperfeiçoamento de instâncias internacionais capazes de resolver pacificamente as controvérsias entre diferentes Estados e povos. No conflito de Nagorno-Karabakh tais instâncias falharam completamente.

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