1

A guerra está de volta ao continente europeu

Em pleno século 21, a guerra de alta intensidade está de volta ao continente europeu. Perplexos, fomos acordados na manhã de 24 de fevereiro pelo som das explosões das granadas e dos disparos das armas de fogo.  Eram inacreditáveis as cenas de mísseis atingindo residências, de blindados em chamas e de engarrafamentos gigantescos provocados pelos veículos de ucranianos em fuga.

Os europeus, de uma maneira geral acreditavam que, depois da guerra do Kosovo, nos estertores do século 20, não mais testemunhariam um conflito como o que está em curso na Ucrânia. Os vencedores da Guerra Fria acreditaram que o mundo globalizado, no qual os fluxos de capitais, pessoas, serviços e ideias desconhecem fronteiras, criaria tal interdependência que tornaria os custos de um conflito tão altos que dissuadiriam qualquer iniciativa belicosa.

Além disso, a vitória na disputa contra o bloco socialista tinha levado ao “fim da história”. Todos os países caminhariam inexoravelmente para o modelo democrático liberal do Ocidente. Esse pensamento talvez tenha sido um dos fatores contribuintes para que os vencedores desprezassem a necessidade de se estabelecer um pacto com os derrotados. A Rússia, herdeira da União Soviética, teve suas preocupações de segurança ignoradas e a OTAN, nas duas primeiras décadas do século 21 foi se expandindo em sucessivas ondas em direção ao Leste, passando a incluir países que antes eram repúblicas integrantes da própria URSS. Este avanço causou profundo ressentimento dentre as lideranças russas.

Neste contexto, ocorreram os atentados de 11 de setembro em Nova York, que provocaram a reação dos EUA e foram o evento disparador de uma importante mudança nas estratégias militares: como não havia mais a ameaça de um conflito interestatal e a nova ameaça eram os grupos terroristas, grupos guerrilheiros e entes não-estatais, o esforço principal dos exércitos não deveria mais ser voltado para a preparação para o combate de alta intensidade, interestatal, mas, sim para a “Guerra ao Terror”.

Então, se já “não havia mais guerras”, como escreveu o General britânico Rupert Smith na abertura de sua obra “A utilidade da Força”, de 2005, por que os investimentos em Defesa europeus deveriam se manter nos níveis até então existentes? Para que investir em carros de combate, submarinos, caças, se essas armas eram desnecessárias para se enfrentar terroristas? Essa foi se tornando uma pergunta incômoda para os políticos em todo o mundo, que foram sendo cada vez mais pressionados a diminuírem seus investimentos em Defesa, priorizando outras áreas.

Até que veio o primeiro alerta, com a invasão da Geórgia pelos russos, em 2008, e o consequente reconhecimento de duas novas “repúblicas”, que se declararam independentes: Abecásia e Ossétia do Sul. A ascensão de Xi Jinping ao poder na China, em 2012, e o grande impulso estratégico que ele deu às suas forças armadas, que passaram por uma reorganização e rapidíssima modernização, também fizeram soar alarmes nos estrategistas ocidentais. O terceiro e decisivo alerta foi a anexação da Crimeia pelos russos e o apoio aos separatistas das regiões de Luhansk e Donetsk, na bacia do Rio Don, no Leste da Ucrânia.

Os alertas ecoaram nos centros de estudos estratégicos dos principais países do Ocidente. Em 2017, os EUA lançaram o conceito de Operações em Múltiplos Domínios, já voltado para a guerra de alta intensidade em largas frentes. Em 2018, o país publicou sua estratégia militar, onde “guerra ao terror” perdeu importância, e a nova prioridade passou a ser a competição entre Estados. O documento lista nominalmente os potenciais inimigos: China, Rússia, Irã e Coreia do Norte. À Rússia, o documento atribui ações de violação de fronteiras e a intimidação de países vizinhos.

Reino Unido e França, ambos em 2021, também lançaram revisões de seus documentos norteadores de Defesa. Os britânicos identificavam nominalmente a Rússia como sendo a maior ameaça à segurança europeia. O documento francês seguiu a mesma ideia.

Como se vê, a guerra russo-ucraniana estava anunciada nos documentos estratégicos das principais potências militares do Ocidente. Então, cabe a pergunta: se ela foi antevista pelos estrategistas militares, por que as lideranças políticas não foram capazes de evitá-la?

Essa é uma pergunta muito complexa, para a qual não existe uma explicação simples. Talvez um bom caminho a explorar na busca das respostas seja a análise da incapacidade dos líderes ocidentais de se afastarem das questões domésticas para enxergarem o todo, de identificarem prioridades e de estabeleceram ações com objetivos político-estratégicos claramente definidos. A inércia internacional face às sucessivas violações russas do Direito Internacional, em 2008 e 2014, certamente pavimentou o caminho para a guerra. Esperemos que, desta vez, a lição seja aprendida. Forças militares minimamente capazes não se improvisam, assim como vácuos de poder podem custar muito caro à segurança internacional.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!




O Direito Internacional dos Conflitos Armados e a Guerra Russo-ucraniana

Soldados! É fácil a missão de comandar homens livres: basta apontar-lhes o caminho do dever. O nosso caminho está ali defronte. Não me é preciso lembrar-vos que o inimigo vencido e o paraguaio inerme ou pacífico devem ser sagrados para um exército composto de homens de honra e de coração. (OSÓRIO, abril de 1866)

General Osório

As ações russas e ucranianas acompanhadas por todos praticamente em tempo real pelas televisões e pela internet suscitam uma série de dúvidas acerca da legitimidade das ações de ambos os lados do conflito. Neste artigo, procuro esclarecer alguns aspectos do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) que podem ajudar na compreensão dos acontecimentos em curso na Ucrânia.

O DICA, como entendido atualmente, surgiu em 1864, ano em que foi celebrada a primeira Convenção de Genebra. Mas, desde a antiguidade, existiam regras sobre os meios e métodos a serem utilizados nos combates.

As leis da guerra nasceram do confronto entre forças armadas no campo de batalha. Até a metade do século XIX, essas regras permaneceram costumeiras por natureza, reconhecidas porque elas existiam desde tempos imemoriais e porque elas correspondiam às demandas da civilização. Todas as civilizações haviam desenvolvido regras com o intuito de minimizar a violência – até essa a forma de violência institucionalizada que chamamos de guerra – já que a limitação da violência faz parte da essência da civilização. (Henckaerts e Doswald-Beck, citados por Silva Gomes (2013)

O DICA é um conjunto de normas que, procura limitar os efeitos de conflitos armados. Protege as pessoas que não participam ou que deixaram de participar nas hostilidades, e restringe os meios e métodos de combate. Ele também designado por “Direito da Guerra” e por “Direito Internacional Humanitário (DIH). Ele faz parte faz parte do Direito Internacional que rege as relações entre Estados e que é constituído por acordos concluídos entre Estados – geralmente designados por tratados ou convenções – assim como pelos princípios gerais e costumes que os Estados aceitam como obrigações legais.

Sugestão de leitura – compre na Amazon

As fontes do DICA são basicamente três: Os chamados Direito de Genebra, de Haia e de Nova York.

O Direito de Genebra é constituído pelas quatro convenções de Genebra, de 1949, que estabelecem normas de proteção das vítimas dos conflitos: membros das forças armadas fora de combate; feridos; doentes; náufragos; prisioneiros de guerra; população civil e todas as pessoas que não participem ou tenham deixado de participar das hostilidades.

As quatro convenções são complementadas por seus protocolos adicionais I e II que tratam, respectivamente, da proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais e das vítimas dos conflitos armados não internacionais. Tanto Rússia, quanto Ucrânia, são signatários das Convenções de Genebra[1].

O Direito de Haia consubstancia-se nas Convenções de Haia, celebradas em 1889 e revistas em 1907, e em vários acordos internacionais posteriores. Trata da proibição ou regulação da utilização de armas, impondo limitações aos meios utilizados para provocar danos ao inimigo.

As normas originadas no âmbito da ONU ficaram conhecidas como o “Direito de Nova York”. Ele também ficou conhecido como “Direito Misto”, porque buscou complementar e aproximar as normas de Genebra e de Haia.

O DICA é regido por cinco princípios básicos: humanidade, distinção, limitação, proporcionalidade e necessidade militar.

Foi o princípio da humanidade que motivou o General Osório, na Guerra da Tríplice Aliança, a exortar seus homens em 13 de abril de 1866, às vésperas de cruzar o Rio Paraguai e entrar pela primeira vez em território inimigo, a agirem com “honra e com coração”. Uma exortação de claro caráter humanitário.

De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a finalidade do princípio da humanidade é evitar e aliviar, a todo custo, em qualquer situação, o sofrimento humano. Ao final da invasão da Ucrânia pela Rússia, certamente a comunidade internacional vai se debruçar sobre os acontecimentos em território ucraniano e o princípio da humanidade será um dos que mais será verificado, especialmente se se verificarem ações, por parte dos comandantes dos dois partidos, que afrontem esses princípio tão fundamental.

O princípio da distinção, segundo Cinelli (2011) é aquele sobre o qual se assenta todo o edifício do DICA como corpo normativo destinado à proteção de pessoas e bens. Isso se deve à necessidade do combatente de identificar, com clareza, entre aqueles que são considerados “população civil” e aqueles considerados combatentes inimigos. O objetivo desse princípio é, em suma, impedir ataques amplos e indiscriminados sem preocupação com baixas civis e danos à propriedades. Esse princípio suscitará muita discussão no caso da Ucrânia. Convocar os civis para defender o país e armá-los, em tese, na constitui violação deste princípio, desde que esses civis utilizem sinais distintivos claros, como uniformes ou qualquer adereço que os identifique, utilizem as armas de forma ostensiva e entrem em uma organização com uma clara cadeia de comando. Caso contrário, caso escondam o fato de que atuam como combatentes, não atenderão ao princípio da distinção e estarão, em tese, cometerão o crime de perfídia, listado no artigo 37 do Protocolo I das Convenções de Genebra.

O princípio da limitação afirma que o direito das partes beligerantes na escolha dos meios para causar danos ao inimigo não é ilimitado, sendo imperiosa a exclusão de meios e métodos que causem sofrimento desnecessário ou danos supérfluos. De acordo com o artigo 52 do Protocolo I, “os ataques devem se limitar estritamente aos objetivos militares”.  Assim, a população civil, deve sempre ser protegida. A guerra, não é um vale-tudo. No caso da invasão russa à Ucrânia, as cenas de prédios civis destruídos por armas que infligem danos não só ao objetivo militar, mas também a todo o seu entorno, em tese, constituem violação desse princípio, exceto se ficar comprovado que os prédios civis também constituíam alvos legítimos segundo o DICA.

O princípio da proporcionalidade rege que os meios e métodos de combate devem ser proporcionais à vantagem militar concreta e direta. Nenhum alvo, mesmo militar, deve ser atacado se os prejuízos e sofrimento forem desproporcionais aos ganhos militares que se esperam da ação. No caso da ação russa na Ucrânia, chama atenção o caso da utilização da munição cluster, ou de fragmentação, pelos russos. Há muita discussão sobre o uso desse tipo de arma, que espalha submunições explosivas por uma grande área, muitas das vezes redundando em engenhos falhados espalhados por uma grande área, que após a cessação das hostilidades terão que ser desarmadas e poderão provocar danos por um longo período, mesmo após a guerra.

Finalmente, há o princípio da necessidade militar. Em todo o conflito armado, o uso da força deve corresponder à vantagem militar que se pretende obter. As necessidades militares não justificam condutas desumanas, tampouco atividades proibidas pelo DICA. Assim, qualquer ação que não traga uma vantagem militar clara deve ser evitada por ambas as partes em conflito.

Como se vê, o dito popular que afirma que “no amor e na guerra vale tudo”, não representa a verdade. Desde tempos imemoriais, há um esforço em se regular minimamente as ações das partes beligerantes, a fim de se preservar a ética no campo de batalha.

Um exemplo de cumprimento, por ambos os partidos, dos princípios do DICA, foi a Guerra das Malvinas. Tanto argentinos quanto britânicos se comportaram exemplarmente, e, ao fim do conflito os dois lados foram reconhecidos e respeitados em relação ao comportamento ético no campo de batalha.

Finalmente, espero que este artigo proporcione aos leitores algumas ferramentas mínimas para acompanhar com mais profundidade os acontecimentos da guerra que, tristemente, acontece em território ucraniano neste momento.

 

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!

 

REFERÊNCIAS

BRASIL, Ministério da Defesa. Manual de Emprego do Direito Internacional dos Conflitos Armados nas Forças Armadas. Disponível em https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/File/legislacao/emcfa/publicacoes/md34a_ma_03a_dicaa_1aed2011.pdf

CINELLI, Carlos Frederico. Direito Internacional Humanitário: ética e legitimidade na aplicação da força em conflitos armados. Editora Juruá. 2011

SILVA GOMES, Túlio Endres da. Impactos do Direito de Guerra para a Campanha do Exército Brasileiro na Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai (1864-1870). Tese de Doutorado. Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Disponível em http://www.eceme.eb.mil.br/images/IMM/producao_cientifica/teses/tulio-endres-da-silva-gomes.pdf

[1] Lista de países signatários aqui – https://ihl-databases.icrc.org/applic/ihl/ihl.nsf/States.xsp?xp_viewStates=XPages_NORMStatesParties&xp_treatySelected=375




Na guerra vale tudo?

Todas as guerras são baseadas no logro. Portanto, quando capazes de atacar, devemos parecer incapazes, ao usarmos as nossas forças, devemos parecer inativos, quando estivermos próximos, devemos parecer distantes e quando distantes, devemos parecer próximos.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 1

Quem faz injuria vil e sem razão,

Com forças e poder em que está posto

Não vence, que a vitória verdadeira

É saber ter justiça nua e inteira

 

Camões. Os Lusíadas, Canto X, estrofe LVIII

 

O jornal The New York Times, em sua edição de 03 de fevereiro, publicou uma reportagem citando autoridades norte-americanas que, sem serem identificadas, afirmaram que a Rússia estava planejando divulgar um vídeo falso no qual seria mostrado um ataque ucraniano em território russo ou um ataque contra a comunidade étnica russa das regiões separatistas no leste da Ucrânia.

Esse tipo de operação, já utilizada muitas vezes ao longo da história em guerras passadas, em inglês recebem o nome de false flag operations[1].

Trata-se de atuar militarmente contra um objetivo e atribuir essa operação ao inimigo, com a finalidade de criar um pretexto para a reação – um casus belli[2] – legitimando-a aos olhos da comunidade internacional e perante seu próprio público interno.

É, evidentemente, uma ação realizada muito abaixo da linha da ética. Por essa razão, nos casos já documentados na história, dificilmente o Estado assume sua prática.

A Segunda Guerra Mundial foi iniciada coma invasão da Polônia pela Alemanha. E o pretexto para a invasão foi uma famosa operação de bandeira falsa, a Operação Himmler, que leva esse nome em razão de ter sido criada por Heinrich Himmler.

A Operação Himmler teve vários episódios: assalto à estação de rádio de Gleitwitz (atualmente Gliwice na Polônia); ataque à estação aduaneira de Hochlinden; e ataque à estação de serviço florestal de Pitschen.

O principal foi o assalto à estação de rádio de Gleitwitz (a cerca de 4 Km da então fronteira com a Polônia). Por volta das 20 horas do dia 31 de agosto de 1939, um pequeno grupo de seis agentes alemães das SS, vestidos com uniformes poloneses e liderado por Alfred Naujocks, atacou a estação de rádio de Gleiwitz e transmitiu uma curta mensagem antialemã, em polonês, afirmando que a rádio estava nas mãos dos poloneses. Os alemães deixaram os corpos de alguns poloneses fardados no local ao mesmo tempo em que as emissoras de rádio alemãs noticiaram o incidente na fronteira, relatando a invasão e a reação da polícia alemã, que teria matado os poloneses. Em Londres, a BBC retransmitiu a informação. No dia seguinte, Hitler usou o “incidente” como pretexto para iniciar a invasão da Polônia e a II Guerra Mundial.

Sugestão de leitura – compre na Amazon

A invasão japonesa da Manchúria chinesa, em 1931, também foi uma operação de bandeira falsa. Em setembro de 1931, forças japonesas detonaram uma pequena quantidade de explosivos perto de uma linha férrea de propriedade de uma empresa japonesa, a South Manchuria Railway, nas proximidades de Mukden – atualmente Shenyang. A explosão não causou danos relevantes, e um trem passou pelo local sem problemas, minutos depois. Entretanto, o Exército japonês acusou chineses do ato e desencadeou a invasão que levou à ocupação da Manchúria, na qual o Japão estabeleceu seu estado fantoche de Manchukuo, seis meses depois. A operação foi exposta internacionalmente, levando o Japão ao isolamento diplomático e sua retirada da Liga das Nações em março de 1933.

Em setembro de 2003, o jornal The Guardian divulgou documentos em uma reportagem que mostrava a existência de um plano secreto, elaborado em 1957, de forma conjunta pelos serviços secretos britânico, o MI-6, e norte-americano, a CIA, para criar falsos incidentes na fronteira da Síria, a fim de criar um levante para derrubar o regime sírio. O plano não foi executado, por falta de apoio dos vizinhos árabes da Síria.

Em 26 de novembro de 1939, a União Soviética realizou disparos com sua própria artilharia contra a vila soviética de Mainila, acusando os finlandeses de terem efetuado os tiros. Assim, forjou o casus belli que desencadeou a Guerra do Inverno, contra a Finlândia.

Como disse Platão, somente os mortos verão o fim das guerras. O fenômeno acompanha a história humana desde tempos imemoriais e assim permanecerá por muito tempo. Entretanto, até as guerras, um ato de suprema violência, têm suas regras no Direito Internacional Humanitário (DIH), constantes nas convenções de Genebra e seus protocolos adicionais, além de outros tratados internacionais. Igualmente importantes são as normas não-escritas, consuetudinárias, vigentes por usos, tradições, convenções e costumes de honradez.

As operações de bandeira falsa são condenáveis sob todos os aspectos. Do ponto de vista do DIH, podem configurar crimes de guerra, enquadrados no artigo 8º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional: VII) utilizar indevidamente uma bandeira de trégua, a bandeira nacional, as insígnias militares ou o uniforme do inimigo ou das Nações Unidas, assim como os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, causando deste modo a morte ou ferimentos graves.

Do ponto de vista moral, causam a repulsa de toda a comunidade internacional. Estratagemas para enganar o inimigo, como recomenda Sun Tzu no cabeçalho deste texto, sempre existiram, e sempre existirão. São exemplos notórios o cavalo de troia e o exército fictício comandado por Patton posicionado de modo a enganar os alemães sobre o local de desembarque no dia D, na II Guerra Mundial. Coisa completamente diferente é atuar de forma pérfida, desleal e traiçoeira, criando um casus belli falso.

Conheça a lista de desejos do blog na Amazon

Afinal, as causas que justificam a guerra, como a legítima defesa contra uma agressão, a intenção moralmente correta, o fato de ser o último recurso e de ser travada para evitar um mal maior são os critérios que fazem com que os povos aceitem pagar o altíssimo preço de participar de um conflito armado.

Por tudo isso, a acusação feita à Rússia de que ela estaria preparando uma operação de bandeira falsa para forjar um casus belii é gravíssima. Se concretizada, por qualquer dos lados, certamente causará enorme repulsa internacional.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!

[1] Na falta de uma tradução consagrada para a expressão, neste artigo vou usar “operação de bandeira falsa”.

[2] Na terminologia bélica, casus belli é uma expressão latina para designar um fato considerado suficientemente grave pelo Estado ofendido, para declarar guerra ao Estado supostamente ofensor.




Para entender a crise na Ucrânia

A crise na Ucrânia está em todos os noticiários internacionais, em razão de sua importância e da possibilidade de a situação se agravar, dando origem a um conflito de grande intensidade em território europeu.

Neste artigo, faço uma compilação de todas as informações que publiquei sobre o assunto, no meu blog e no twitter, de modo a tentar reunir em um único texto todo o desenrolar dos acontecimentos. Na conclusão, arrisco alguns possíveis desdobramentos.

A Ucrânia está no centro de uma crise que ameaça escalar para um confronto militar entre ucranianos e russos, com risco de transbordamento para outros países, o que seria gravíssimo para a estabilidade da Europa e do mundo. Mais do que uma simples disputa entre ucranianos e separatistas na região de Donbas, localizada no leste da Ucrânia e fronteira com a Rússia, os acontecimentos mostram o confronto entre duas visões de mundo. De um lado, europeus ocidentais e norte-americanos, que enxergam na Ucrânia um jovem país soberano que tenta trilhar o caminho apontado pelas democracias liberais europeias, desvencilhando-se da Rússia depois do esfacelamento da União Soviética. De outro, a Rússia, que vê a Ucrânia como um território historicamente ligado à sua própria nacionalidade, um país fundamental para sua visão geopolítica, que deve ser mantido sob sua esfera de influência sob pena de ver os adversários europeus e norte-americanos demasiadamente próximos de Moscou.

Para entender como se chegou à situação atual, é importante recapitular alguns acontecimentos.

O primeiro grande império do leste europeu foi o Principado de Kiev, atual capital da Ucrânia, surgido no século IX. Sua população era constituída por uma mistura de Vikings escandinavos, que chegavam do Norte pelos rios, e pelos eslavos orientais, nativos da própria região. A pobreza do solo logo obrigou essas populações a buscarem novas terras, expandindo o território e delineando um império. Como explica Robert Kaplan, em A Vingança da Geografia, a Rússia, como conceito geográfico e cultural nasceu do Principado de Kiev.

Figura 1 – Principado de Kiev / Fonte Wikipedia

Em permanente luta contra os nômades das estepes, no século XIII o principado foi devastado pelos mongóis comandados por Batu Khan, neto de Gengis Khan. A partir daí, com o passar do tempo, a história russa foi paulatinamente se deslocando para o Norte, até ficar centrada em Moscou, já no final da Idade Média.

Após a invasão mongol, o território onde hoje está a Ucrânia foi dominado por lituanos e poloneses. Em 1648, uma grande rebelião cossaca acabou por levar à partilha do território ucraniano entre russos e poloneses. Com a partilha da Polônia, no final do século XVIII, o território ucraniano é novamente dividido, agora entre russos e austríacos.

Os colapsos dos impérios russo e austríaco, bem como a revolução russa, no início do século 20, deram espaço ao ressurgimento de movimentos nacionalistas ucranianos, que buscavam a independência. Entretanto, em 1919, a Ucrânia foi incorporada à União Soviética.

O colapso da União Soviética, em 1991, permitiu a independência da Ucrânia. No plebiscito realizado naquele ano, 90% dos ucranianos se posicionaram favoravelmente à separação, incluindo-se aí 80% da população da região de Donbass e 54% dos votantes da Crimeia, península com grande população russa, reanexada ao território russo em 2014.

O fim da URSS foi seguido por uma significativa expansão da OTAN em direção às fronteiras russas. Entre 1999 e 2020, a Aliança incorporou vários países da Europa central e de leste, muitos deles antigos estados comunistas: República Tcheca, Hungria, Polônia, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte. A União Europeia seguiu os passos da OTAN, estendendo sua fronteira para o leste para incluir uma série de ex-repúblicas soviéticas e aliados, incluindo os Estados bálticos, República Tcheca, Hungria, Polônia, Eslováquia e Eslovênia.  Essa expansão foi um choque para as lideranças russas, que esperavam que, em troca do apoio dado aos norte-americanos na invasão do Afeganistão após o 11 de Setembro, os EUA se mantivessem fora do que a Rússia considerava ser sua esfera de influência, os antigos Estados integrantes da URSS. O presidente Putin se sentiu pessoalmente afrontado.

Figura 2 – Expansão da OTAN / Fonte Wikipedia

Os ucranianos permaneceram em uma espécie de limbo, entre o ocidente e a Rússia. No final de 2004, multidões saíram às ruas, na chamada Revolução Laranja. Os manifestantes deixavam claro que desejavam que a Ucrânia ingressasse na União Europeia.

Em 2008, a Rússia invadiu a Geórgia, demonstrando que os Russos não estavam dispostos a admitir nenhum passo a mais da União Europeia ou da OTAN em direção às suas fronteiras.

Em 2013, uma nova onda de protestos varreu a Ucrânia, em razão da recusa do então presidente, Viktor Yanukovych, de assinar um acordo de associação do país à União Europeia. A situação se agravou, com o aumento da violência até que, em fevereiro de 2014, o Congresso destituiu o presidente Yanukovych e determinou a realização de eleições, que foram vencidas pelo candidato com uma plataforma pró-europeus.

Em 01 de março de 2014, antes mesmo da realização das eleições, a Rússia invadiu a Crimeia, península estratégica que mantém, em Sebastopol, a sede da armada russa na Mar Negro. Em 6 de março, o parlamento da Crimeia aprovou uma decisão no sentido de entrar para a Federação Russa e, em 18 de março, tal adesão foi ratificada pelas duas partes, apesar da Assembleia Geral das Nações Unidas ter votado uma resolução se opondo a tal adesão.

Em abril, grupos pró-Rússia na região de Donbas, no leste da Ucrânia, iniciaram uma guerra civil. Embora a Rússia não reconheça, é fato hoje incontestável que o país apoiou militarmente os separatistas, em uma ação típica de Guerra Híbrida, com soldados e equipamentos, mas também com Operações de Informação e Cibernéticas, o que impediu a Ucrânia de controlar a situação. Diversos países do ocidente impuseram sanções econômicas à Rússia em razão dessa interferência.

Figura 3 – Regiões da Ucrânia oriental. Note-se, no centro do país, cortando-o de norte a sul, o Rio Dnieper / Fonte Wikipedia

Em 2015 foram celebrados os Acordos de Minsk, proporcionando ao menos uma estrutura de diálogo entre as partes, mas a violência se manteve e mais de 13 mil vidas já foram perdidas nos combates.

Assim, chegamos ao momento atual, no qual os ucranianos e norte-americanos acusam os russos de já terem concentrado na fronteira cerca de 100 mil soldados e estarem planejando uma invasão com um efetivo de cerca de 175 mil militares, com blindados, artilharia e tudo mais necessário para invadir a Ucrânia já nos primeiros meses de 2022.

Os russos negam a intenção ofensiva, afirmando que quem está se preparando para uma ação armada são os ucranianos, que estariam planejando atacar a região de Donbas. O presidente Putin reiterou que há “linhas vermelhas” que não devem ser cruzadas pelo Ocidente, referindo-se claramente à integração da Ucrânia à União Europeia ou à OTAN.

Em meio à crise, os presidentes dos EUA, Joe Biden, e da Rússia, Vladimir Putin, reuniram-se em videoconferência no dia 07 de dezembro de 2021, para tratar do assunto.

Em seguida, no dia 17 de dezembro, os russos divulgaram uma proposta de acordo, com medidas para “garantir a segurança da Federação Russa e dos Estados membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte”[1].

No documento os russos listaram, basicamente, as seguintes exigências:

  1. Que a OTAN não posicione tropas em território de países que não pertenciam à OTAN em 1997, data em que a Aliança e a Rússia celebraram o “Ato de Relações Mútuas, Cooperação e Segurança”;
  2. o compromisso de não instalação de mísseis de curto e médio alcance, que tenham a capacidade de atingir o território russo;
  3. que a OTAN se comprometa a não aceitar nenhum novo membro, especialmente a Ucrânia e;
  4. que a OTAN se comprometa a não conduzir nenhuma atividade militar no território da Ucrânia, bem como em outros Estados da Europa Oriental, do Sul do Cáucaso e da Ásia Central. A Rússia assumiria o mesmo compromisso em faixa territorial correspondente do seu lado da fronteira.

Em seguida, entre 09 e 14 de janeiro de 2022, já conhecendo as exigências russas. EUA, OTAN e demais países europeus realizaram uma série de reuniões com os russos para tratarem da crise. Chama atenção o formato adotado para reunir as potências. Inicialmente, na segunda-feira, apenas russos e norte-americanos se reuniram. Na quarta-feira, foi a vez de os aliados da OTAN e, somente na quinta-feira, os 57 integrantes da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) tiveram a oportunidade de participar. Interessante notar que foi apenas nessa terceira reunião que Ucrânia e Rússia se sentaram à mesma mesa.

O fato das negociações terem sido iniciadas entre russos e norte-americanos, sem a presença de nenhum europeu, para tratar de um problema na Europa, causou muito desconforto no velho continente. Apesar dos representantes dos EUA reafirmarem várias vezes que nada seria decidido sem a participação da Europa e da própria Ucrânia, para os europeus ficou um sentimento de que eles estavam sendo ultrapassados nas tomadas de decisão. A ver, no futuro, se esse episódio deixará marcas nas relações entre norte-americanos e europeus.

O resultado das negociações não apontou para a solução do impasse. Os norte-americanos propuseram aos russos o agendamento de novas conversas. Os russos falaram em “beco sem saída”. Foi um resultado previsível, uma vez que parte das exigências russas são claramente incompatíveis com a própria natureza da aliança militar que congrega os principais países do Ocidente.

Os EUA e a OTAN reiteraram que a política de “portas abertas” da organização é inegociável. A Aliança considera que, como um país soberano, cabe somente à Ucrânia a decisão de solicitar a integração ao grupo e somente aos 30 membros da organização a decisão de aceitar ou não um novo membro. Isso elimina a possibilidade de a Rússia – ou qualquer outro país que não seja membro da Otan – vetar de antemão qualquer expansão da organização em qualquer direção.

O segundo ponto inegociável é a liberdade que a Aliança arroga de posicionar tropas e material de emprego militar no território de qualquer Estado-membro, a qualquer tempo, nas quantidades que julgar necessárias. Isso evidentemente inclui os 14 países, muitos deles ex-repúblicas soviéticas, que aderiram à OTAN entre 1999 e 2020.

Apesar de se posicionar de forma irredutível quanto aos dois aspectos acima, a OTAN deixou alguma margem de manobra em relação às propostas referentes ao posicionamento de mísseis de curto e médio alcance, bem como no que concerne à limitação de exercícios militares na porção leste da Europa, convidando o lado russo a agendar novas rodadas de negociações sobre esses pontos específicos.

Entretanto, os EUA e seus aliados europeus, embora tenham descartado uma atuação militar direta em território ucraniano, ameaçaram a Rússia de sanções econômicas “nunca vistas”, que fariam o país “pagar um alto preço pela invasão”, além de garantir que forneceriam armas, munições e materiais de emprego militar ao exército ucraniano, apoiando-o em uma eventual invasão.

Os russos, por sua vez, mostraram-se descontentes com os resultados das conversas, afirmando que as negociações não tinham avançado e que levavam a “um beco sem saída”. Entretanto, não fecharam as portas para futuras negociações.

Após a rodada de reuniões, os russos se mantiveram no controle dos acontecimentos, com uma série de ações e anúncios que se destinam, claramente, a manter a pressão sobre o Ocidente.

Já no dia seguinte ao fim das conversas, em 14 de janeiro, órgãos do governo e instituições privadas ucranianas foram alvos de um grande ataque cibernético, que tirou do ar inúmeras páginas eletrônicas e interrompeu diversos serviços. Embora a origem do ataque seja encoberta, é obvio que as suspeitas recaíram sobre os russos.

Divulgou-se que a Rússia faria novas manobras militares, sobre as quais não se tinha notícia anteriormente, em território de Belarus, país que faz fronteira com a Ucrânia pelo Norte e que é governado por Aleksandr Lukashenko, governante muito alinhado a Putin.

Outro anúncio foi o de que a marinha russa fará um enorme exercício, que envolverá todas as suas frotas, do Atlântico ao Pacífico, com cerca de 140 navios de guerra e embarcações de apoio, 60 aviões, e 10.000 militares, passando pelo Mar Mediterrâneo, Mar do Norte e Mar de Okhotsk, este último nas proximidades do Japão.

Ao mesmo tempo, Rússia, China e Irã divulgaram a realização de exercícios navais conjuntos, o terceiro da série, chamado “2022 Marine Security Belt”, no norte do Oceano Índico.

Outro fato que chamou atenção foi a grande diminuição do efetivo de diplomatas russos na embaixada do país em Kiev, capital da Ucrânia. A diminuição do corpo diplomático, com o retorno de suas famílias à Rússia, poderia indicar uma escalada da crise e a previsão de um conflito.

Houve ainda pronunciamentos de autoridades russas, dando a entender que poderiam aumentar a aproximação de países nas Américas, inclusive no campo militar, como Cuba e Venezuela. O presidente Putin inclusive divulgou uma conversa telefônica com o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, realizada em 20 de janeiro, expressando seu “apoio inabalável aos esforços das autoridades venezuelanas para fortalecer sua soberania”.

Foi nessas circunstâncias que no dia em que escrevo este artigo, 21 de janeiro, ocorreu novo encontro diplomático, dessa vez entre o Secretário de Estado Antony Blinken, dos EUA, e o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov. Após a reunião, divulgou-se que os EUA responderiam por escrito se aceitavam ou não as condições propostas pelos russos em 17 de dezembro de 2021, e que ambas as partes estariam dispostas a “prosseguir no diálogo”.

Interessante notar que ao longo de toda a crise, foi o lado russo que definiu o ritmo das negociações, impôs a pauta e tomou iniciativas. O lado Ocidental permaneceu o tempo todo na posição daquele que reagia, sem conseguir impor as negociações segundo seus próprios termos ou ritmo.

Assim, pode-se considerar que até este momento, Putin é, do ponto de vista político, o grande vencedor. Conseguiu obrigar os EUA, a OTAN e a Europa a se sentarem em uma mesa para negociar os seus próprios termos, mostrando, para os próprios russos e para a comunidade internacional, uma Rússia poderosa do ponto de vista político/militar. Uma potência que relembra o status soviético, dos tempos de guerra fria.

Tentar antever os próximos acontecimentos não é tarefa fácil. Mas são quatro os cenários que julgo possíveis, um em que não há emprego do poder militar e outros três em que ocorre a invasão:

  1. A Rússia arranca algumas garantias do Ocidente, públicas ou secretas, e desescala a crise, apresentando à sua população razões que demonstrem que ela atingiu seus objetivos e evitou uma guerra. Creio ser esse o cenário de maior probabilidade. Uma ação militar na Ucrânia traria enormes consequencias para os russos, e eles sabem disso.
  2. A Rússia adota ações militares de baixa intensidade e no campo da guerra híbrida, atuando fortemente com guerra cibernética e propaganda, ocupando apenas as regiões de Luhansk e Donetsk (ver figura 3), alegando estar atuando em defesa daquelas populações, majoritariamente russas étnicas.
  3. A Rússia atua militarmente de forma um pouco mais incisiva, também nas regiões de Zaporizhia e Kherson (ver figura 3), no sudeste do país, criando um corredor terrestre que uniria a Rússia até a Crimeia, o que seria um ganho importante do ponto de vista geoestratégico para o país.
  4. A Rússia invadiria a Ucrânia até o corte do rio Dnieper, que separa o país nas porções oriental e ocidental, tentando provocar a criação de um Estado-tampão na porção leste do país.

Ainda no arriscado campo das previsões, passemos a considerar as opções em que a Rússia decide empregar seu poder militar. Creio que, caso a opção escolhida fosse a de número 4, haveria uma forte reação militar da Ucrânia, apoiada decisivamente pela OTAN e alguns outros países europeus, como Suécia e Finlândia. Já as possibilidades de números 2 e 3 seriam apenas o agravamento da crise já em curso na Ucrânia desde 2014. Caso se efetivassem, provocariam as sanções comerciais norte-americanas e europeias, mas não muito mais do que isso.

Assim, na hipótese de emprego do poder militar, creio que as opções 2 e 3 sejam as mais prováveis.

É claro que as avaliações acima estão pautadas nas informações a que tive acesso até o momento em que escrevo este artigo, dia 21 de janeiro de 2022, exclusivamente pela imprensa. Outros fatos, dados e informações podem alterar consideravelmente os rumos dos acontecimentos.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!




As tensões na Ucrânia

Artigo primeiramente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 20/01/2022

Desde novembro do ano passado, o mundo tem assistido ao acirramento das tensões entre a Rússia, a Ucrânia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em razão da concentração de 100 mil soldados russos, com meios blindados, artilharia e helicópteros, nas proximidades da fronteira com a Ucrânia. Dados de inteligência ucraniana e da própria aliança atlântica alertaram que os russos estariam planejando uma invasão, que poderia acontecer a partir de fevereiro deste ano. A Rússia nega a intenção de desencadear a ofensiva militar.

O emprego de forças militares de vulto, em um ataque a um país europeu soberano, mudaria o cenário de segurança da Europa de uma forma ainda não vista desde a Segunda Guerra Mundial, com consequências graves para a própria Europa e para todo o mundo.

Os EUA e seus aliados europeus, embora tenham descartado uma atuação militar direta em território ucraniano, reagiram à concentração de forças, ameaçando a Rússia de sanções econômicas “nunca vistas”, que fariam o país “pagar um alto preço pela invasão”, além de garantir que forneceriam armas, munições e materiais de emprego militar ao exército ucraniano, apoiando-o em uma eventual invasão.

Sugestão de Leitura – Compre na Amazon

Autor – Steven Lee Myers

Em dezembro, os russos apresentaram suas exigências em um documento contendo uma proposta de tratado sobre “garantias de segurança”, entre a Rússia e os EUA. Na sequência, houve um encontro virtual entre os presidentes Putin e Biden e três reuniões foram agendadas para janeiro, as quais acabaram de ocorrer.

A primeira, somente entre os representantes dos EUA e da Rússia, a segunda, entre a Otan e a Rússia e a terceira, reunindo todos os 57 integrantes da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Interessante notar que foi apenas nessa terceira reunião que Ucrânia e Rússia tiveram oportunidade de se sentar à mesma mesa.

O resultado das negociações não apontou para a solução do impasse. Os norte-americanos propuseram aos russos o agendamento de novas conversas. Os russos falaram em “beco sem saída”. Foi um resultado previsível, uma vez que parte das exigências russas são claramente incompatíveis com a própria natureza da aliança militar que congrega os principais países do Ocidente.

As demandas russas são, basicamente, quatro: 1) que a Otan não posicione tropas em território de países que não pertenciam ao grupo em 1997, data em que a Aliança e a Rússia celebraram o “Ato de Relações Mútuas, Cooperação e Segurança”; 2) o compromisso de não instalação, pela Otan, de mísseis de curto e médio alcance em posições que os possibilitem atingir alvos em território russo; 3) que a Otan se comprometa a não se expandir para o leste, não agregando nenhuma ex-república soviética, especialmente a Ucrânia e; 4) que a Otan se comprometa a não conduzir nenhuma atividade militar no território ucraniano, bem como em outros Estados da Europa Oriental, do sul do Cáucaso e da Ásia Central. A Rússia assumiria o mesmo compromisso em faixa territorial correspondente do seu lado da fronteira.

Em resposta, os EUA e a Otan reiteraram que a política de “portas abertas” da Aliança é inegociável. A Aliança considera que, como um país soberano, cabe somente à Ucrânia a decisão de solicitar a integração ao grupo e somente aos 30 membros da organização a decisão de aceitar ou não um novo membro. Isso elimina a possibilidade de a Rússia – ou qualquer outro país que não seja membro da Otan – vetar de antemão qualquer expansão da organização em qualquer direção.

O segundo ponto inegociável é a liberdade que a Aliança arroga de posicionar tropas e material de emprego militar no território de qualquer Estado-membro, a qualquer tempo, nas quantidades que julgar necessárias. Isso evidentemente inclui os 14 países, muitos deles ex-repúblicas soviéticas, que aderiram à Otan entre 1999 e 2020.

Conheça minha lista de livros sugeridos na Amazon

Apesar de se posicionar de forma irredutível quanto aos dois aspectos acima, a Otan deixou alguma margem de manobra em relação às propostas referentes ao posicionamento de mísseis de curto e médio alcance, bem como no que concerne à limitação de exercícios militares na porção leste da Europa, convidando o lado russo a agendar novas rodadas de negociações sobre esses pontos específicos.

Os russos, por sua vez, mostraram-se descontentes com os resultados, afirmando que as negociações não tinham avançado e que levavam a “um beco sem saída”. Entretanto, não fecharam as portas para futuras negociações.

É importante notar que a simples realização das reuniões já pode ser considerada uma vitória para o presidente Putin. Ele conseguiu mostrar ao mundo – e aos próprios cidadãos russos – uma Rússia forte, uma potência militar que obrigou os EUA e a Otan a negociarem em termos escolhidos pelos russos. A iniciativa das ações continua em suas mãos, podendo escalar ou desescalar a crise ao seu bel-prazer, para grande infortúnio dos ucranianos, ameaçados há meses por um poderoso exército postado à porta da antiga Rus Kievana, origem primeira da atual Federação Russa. Um nó górdio para os diplomatas ocidentais desatarem nesse início de 2022.

Se você acha nosso trabalho relevante e quer contribuir com a manutenção do Blog, por favor, considere tornar-se um apoiador. 

Clique aqui e saiba mais




Russos, norte-americanos e europeus debatem o futuro da Ucrânia

Amanhã, 10 de janeiro de 2022, começam as negociações entre os EUA e seus aliados, de um lado, e a Rússia, de outro, sobre a questão ucraniana. As conversas foram propostas pelo lado russo, após concentrarem, ao longo do segundo semestre de 2021, cerca de 100 mil soldados, com artilharia, blindados e meios aéreos, do seu lado da fronteira com a Ucrânia, em uma escalada de tensões sem precedentes na Europa desde o término da Guerra Fria.

A Rússia se considera ameaçada pela existência de laços entre a OTAN e a Ucrânia, mesmo que esses sejam informais. Em razão disso vai exigir que os EUA e seus aliados atendam às chamadas “garantias de segurança”[1], uma lista de exigências que o país divulgou em dezembro como uma proposta de acordo, cujos tópicos principais são os seguintes:

  1. que a OTAN não posicione tropas em território de países que não pertenciam à OTAN em 1997, data em que a Aliança e a Rússia celebraram o “Ato de Relações Mútuas, Cooperação e Segurança”;
  2. o compromisso de não instalação de mísseis de curto e médio alcance, que tenham a capacidade de atingir o território russo;
  3. que a OTAN se comprometa a não aceitar nenhum novo membro, especialmente a Ucrânia e;
  4. que a OTAN se comprometa a não conduzir nenhuma atividade militar no território da Ucrânia, bem como em outros Estados da Europa Oriental, do Sul do Cáucaso e da Ásia Central. A Rússia assumiria o mesmo compromisso em faixa territorial correspondente do seu lado da fronteira.

Conheça a lista de livros que indico na Amazon

Com a possível exceção do tópico que diz respeito aos mísseis e do que veda exercícios militares, trata-se de um acordo inviável para os EUA e a OTAN.

No que diz respeito ao posicionamento de tropas da OTAN, é importante lembrar que, entre 1999 e 2021, a aliança incorporou vários países da Europa central e de leste, muitos deles antigos estados comunistas: República Checa, Hungria, Polônia, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte.

A anexação da Criméia pela Rússia, em 2014, motivou uma forte condenação dos países da OTAN e o envio de 5 000 soldados para bases militares na Estônia, Lituânia, Letônia, Polônia, Romênia e Bulgária.

A possibilidade de se desdobrar pessoal e meios militares em qualquer um dos 30 Estados membros da aliança está no cerne da finalidade da própria existência da OTAN, sendo evidente que abrir mão dessa possibilidade está fora de cogitação.

Embora tal expressão não seja usada pelos russos, o que se está a assistir é uma tentativa do governo do presidente Putin de se estabelecer uma “zona de influência” sobre a qual o ocidente se abstenha de atuar e cuja liderança caberia naturalmente aos russos.

É a isso que o presidente Putin se refere quando fala sobre as “linhas vermelhas” que não devem ser ultrapassadas pelos EUA ou pela OTAN.

Sugestão de leitura – Compre o livro na AmazonAutor – Steven Lee Myers

Os EUA e seus aliados, por sua vez, entram nas negociações já tendo declarado que os termos do acordo, como estão propostos, não podem ser aceitos. Eles parecem estar dispostos a demonstrar ao lado russo que uma eventual invasão da Ucrânia custaria caro. A reação do ocidente não se daria no campo militar, uma vez que os EUA já descartaram a utilização de tropas na defesa da Ucrânia. Entretanto, os ucranianos seriam apoiados militarmente com suprimentos, armas e munições. Além disso, seriam impostos embargos econômicos nunca vistos, que vão desde a proibição de exportação de itens tecnológicos produzidos nos EUA ou cuja tecnologia pertença ao país, até a imposição de barreiras ao fluxo financeiro internacional, como a vedação do acesso dos russos ao sistema SWIFT de transferências financeiras internacionais. Dessa forma, os EUA e a OTAN querem dissuadir os russos, mostrando que o preço de uma eventual invasão seria altíssimo e que a resistência ucraniana, financiada pelo Ocidente, poderia perpetuar-se indefinidamente, em uma guerra altamente desgastante para a Rússia.

Para complicar ainda mais as negociações, elas ocorrerão em pleno desenvolvimento da crise no Cazaquistão, para onde os russos e seus aliados da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) enviaram tropas em socorro do governo aliado à Moscou, no enfrentamento dos violentos protestos que explodiram naquele país.

A crise no Cazaquistão[2], quando somada à que ocorreu em Belarus, em 2020, ambas ex repúblicas soviéticas, fronteiriças à Rússia e de grande importância para o país, pode aumentar nos russos a sensação de que estão sendo pressionados em mais de uma frente, e de que precisam agir na Ucrânia antes que seja tarde.

Semana que vem pode ser uma semana decisiva, não só para a Ucrânia, mas também para a Europa e para o futuro das relações entre as duas maiores potências militares do planeta.

[1] Leia o documento em https://mid.ru/ru/foreign_policy/rso/nato/1790803/?lang=en&clear_cache=Y

[2] Sobre essa crise leia o artigo Crise no Cazaquistão, em https://paulofilho.net.br/2022/01/06/crise-no-cazaquistao/




Ocidente e Rússia se chocam na Ucrânia

A Ucrânia está no centro de uma crise que ameaça escalar para um confronto militar entre ucranianos e russos, com risco de transbordamento para outros países, o que seria gravíssimo para a estabilidade da Europa e do mundo. Mais do que uma simples disputa entre ucranianos e separatistas na região de Donbass, leste da Ucrânia e fronteira com a Rússia, os acontecimentos mostram o confronto entre duas visões de mundo. De um lado, europeus ocidentais e norte-americanos, que enxergam na Ucrânia um jovem país que tenta trilhar o caminho apontado pelas democracias liberais europeias, desvencilhando-se da Rússia depois do esfacelamento da União Soviética. De outro, a Rússia, que vê a Ucrânia como um território historicamente ligado à sua própria nacionalidade, um país fundamental para sua visão geopolítica, que deve ser mantido sob sua esfera de influência sob pena de ver os adversários europeus e norte-americanos demasiadamente próximos de Moscou.

Para entender como se chegou à situação atual, é importante recapitular alguns acontecimentos.

O primeiro grande império do leste europeu foi o Principado de Kiev, atual capital da Ucrânia, surgido no século IX. Sua população era constituída por uma mistura de Vikings escandinavos, que chegavam do Norte pelos rios, e pelos eslavos orientais, nativos da própria região. A pobreza do solo logo obrigou essas populações a buscarem novas terras, expandindo o território e delineando um império. Como explica Robert Kaplan, em A Vingança da Geografia, a Rússia, como conceito geográfico e cultural nasceu do Principado de Kiev.

Em permanente luta contra os nômades das estepes, no século XIII o principado foi devastado pelos mongóis comandados por Batu Khan, neto de Gengis Khan. A partir daí, com o passar do tempo, a história russa foi paulatinamente se deslocando para o Norte, até ficar centrada em Moscou, já no final da Idade Média.

Após a invasão mongol, o território onde hoje está a Ucrânia foi dominado por lituanos e poloneses. Em 1648, uma grande rebelião cossaca acabou por levar à partilha do território ucraniano entre russos e poloneses. Com a partilha da Polônia, no final do século XVIII, o território ucraniano é novamente dividido, agora entre russos e austríacos.

Conheça a lista de Livros que eu preparei e presenteie quem você gosta neste Natal!

Lista de livros do Paulo Filho

Os colapsos dos impérios russo e austríaco, bem como a revolução russa, no início do século 20, deram espaço ao ressurgimento de movimentos nacionalistas ucranianos, que buscavam a independência. Entretanto, em 1919, a Ucrânia foi incorporada à União Soviética.

O colapso da União Soviética, em 1991, permitiu a independência da Ucrânia. No plebiscito realizado naquele ano, 90% dos ucranianos se posicionaram favoravelmente à separação, incluindo-se aí 80% da população da região de Donbass e 54% dos votantes da Crimeia, península com grande população russa.

Em 2004, a OTAN aceitou os três Estados Bálticos – Letônia, Estônia e Lituânia – como membros da Aliança. A União Europeia seguiu os passos da OTAN, estendendo sua fronteira para o leste para incluir uma série de ex-repúblicas soviéticas e aliados, incluindo os mesmos estados bálticos, República Tcheca, Hungria, Polônia, Eslováquia e Eslovênia.  Foi um choque para as lideranças russas, que esperavam que, em troca do apoio dado aos norte-americanos na invasão do Afeganistão após o 11 de Setembro, os EUA se mantivessem fora do que a Rússia considerava ser sua esfera de influência, os antigos Estados integrantes da URSS. O presidente Putin se sentiu pessoalmente afrontado.

Os ucranianos, naquele momento, estavam em um limbo, entre o ocidente e a Rússia. No final de 2004, multidões saíram às ruas, na chamada Revolução Laranja. Os manifestantes deixavam claro que desejavam que a Ucrânia ingressasse na União Europeia.

Em 2008, a Rússia invadiu a Geórgia, demonstrando que os Russos não estavam dispostos a admitir nenhum passo a mais da União Europeia ou da OTAN em direção às suas fronteiras.

Em 2013, uma nova onda de protestos varreu a Ucrânia, em razão da recusa do então presidente, Viktor Yanukovych, de assinar um acordo de associação do país à União Europeia. A situação se agravou, com o aumento da violência até que, em fevereiro de 2014, o Congresso destituiu o presidente Yanukovych e determinou a realização de eleições, que foram vencidas pelo candidato com uma plataforma pró-europeus.

Em 01 de março de 2014, antes mesmo da realização das eleições, a Rússia invadiu a Criméia, península estratégica que mantém, em Sebastopol, a sede da armada russa na Mar Negro. Em 6 de março o parlamento da Crimeia aprovou uma decisão no sentido de entra para a Federação Russa e, em 18 de março, tal adesão foi ratificada pelas duas partes, apesar da Assembleia Geral das Nações Unidas ter votado uma resolução se opondo a tal adesão.

Em abril, grupos pró-Rússia na província de Donbas, no leste da Ucrânia, iniciaram uma guerra civil. Embora a Rússia não reconheça, é fato hoje incontestável que o país apoiou militarmente os separatistas, em uma ação típica de Guerra Híbrida, com soldados e equipamentos, mas também com Operações de Informação e cibernéticas, o que impediu a Ucrânia de controlar a situação. Diversos países do ocidente impuseram sanções econômicas à Rússia em razão dessa interferência.

Em 2015 foram celebrados os Acordos de Minsk, proporcionando ao menos uma estrutura de diálogo entre as partes, mas a violência se manteve e mais de 13 mil vidas já foram perdidas nos combates.

Assim chegamos ao momento atual, no qual os ucranianos e norte-americanos acusam os russos de já terem concentrado na fronteira cerca de 90 mil soldados e estarem planejando uma invasão com um efetivo de cerca de 175 mil militares, com blindados, artilharia e tudo mais necessário para invadir a Ucrânia já nos primeiros meses do ano que vem.

Os russos negam a intenção ofensiva, afirmando que quem está se preparando para uma ação armada são os ucranianos, que estariam planejando atacar a região de Donbass. O presidente Putin reiterou que há “linhas vermelhas” que não devem ser cruzadas pelo Ocidente, referindo-se claramente à integração da Ucrânia à União Europeia ou à OTAN.

Em meio à crise, os presidentes dos EUA, Joe Biden, e da Rússia, Vladimir Putin, marcaram uma videoconferência para a próxima terça-feira, dia 07 de dezembro, para tratar do assunto. Vamos aguardar o desenrolar dos acontecimentos, para ver se eles conseguirão amenizar a crise e arrefecer as tensões.




As tensões entre as maiores potências militares do planeta

Neste exato momento, é bastante provável que dois contratorpedeiros, o USS Donald Cook e USS Roosevelt, da marinha norte-americana, estejam em deslocamento para o Mar Negro. A informação foi divulgada pela Turquia, não sendo oficialmente confirmada pelos EUA. O acesso dos países sem costa para o Mar Negro é livre, conforme a Convenção de Montreal, de 1936. Entretanto, o trânsito pelo Estreito de Bósforo, que dá acesso àquele mar, deve ser informado à Turquia com duas semanas de antecedência. Os EUA teriam informado o trânsito dos dois navios, que cruzariam o Estreito nos dias 14 e 15 de abril e permaneceriam no Mar Negro até os primeiros dias de maio. A Rússia já anunciou que, no mesmo período, estará com sua frota fazendo exercícios na mesma região.

Mar Negro

 

A presença de navios da marinha norte-americana no Mar Negro não é uma novidade. Mas desta vez, a notícia é divulgada em pleno momento de grave acirramento de tensões entre Rússia e Ucrânia, com reflexos óbvios para uma escalada de tensões entre a Rússia e a OTAN. Os russos concentraram a maior quantidade de tropas nas proximidades da fronteira com a Ucrânia desde 2014, ano em que o país anexou a península da Crimeia. Desde então, as forças ucranianas têm travado combates contra separatistas patrocinados pela Rússia na região de Donbass, na porção mais oriental do país. Há poucos dias, em 26 de março, a Ucrânia anunciou a morte de mais quatro soldados do seu exército naqueles combates. Ao mesmo tempo, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, fez declarações expressando a sua intenção de integrar seu país à OTAN, o que desagrada profundamente as autoridades russas.

Além dessa questão, uma série de outras notícias envolvendo os EUA, Rússia e China demonstram que as relações entre as principais potências militares do planeta vivem um momento de tensionamento bem acima da normalidade.

A primeira notícia é a entrevista do presidente Biden ao jornalista George Stephanopoulos, na rede de televisão ABC. Biden concordou com a assertiva de Stephanopoulos de que o presidente russo Vladimir Putin seria um assassino. Disse ainda que Putin “pagará o preço” por interferir nas eleições do país, o que teria acontecido, segundo um relatório da inteligência norte-americana recentemente divulgado, em favor do ex-presidente Trump.

A resposta russa foi imediata e o embaixador do país nos Estados Unidos foi chamado à Moscou “para consultas”. Como se sabe, no balé da diplomacia, este é um gesto que demonstra profundo descontentamento. A explicação da chancelaria russa foi a de que o embaixador seria consultado de modo a “não permitir que a relação entre os dois países se deteriore de maneira irreparável”. O presidente Putin, em declaração imediatamente posterior, desejou “vida longa” ao presidente Biden para depois dar a entender que o presidente dos EUA identificava em outras pessoas características de sua própria personalidade.

Um chefe de Estado chamar outro de assassino, em tempo de paz, é algo extremamente incomum. O presidente Biden é um político experiente, que já foi vice-presidente da república e senador por décadas. É claro que sabia perfeitamente da repercussão que teria sua fala. Se fez isso só se pode crer que tenha sido com o objetivo de escalar as tensões com os russos.

Mas, esse não foi o único evento recente e estressar a relação entre as duas potências. A empresa russa Gazprom lidera a construção do Gasoduto Nord Stream 2, que duplicará a quantidade de gás natural que os russos vendem à Alemanha. Trata-se de um projeto de 1200 Km, que já teve 94% de sua construção terminada, e que ligará os dois países pelo Mar Báltico. O projeto recebe forte oposição dos EUA, que consideram que a obra visa, na verdade, a “dividir a Europa e enfraquecer sua segurança energética”, como declarou o Secretário de Estado Antony Blinken no último dia 18 de março. Isto porque o gasoduto contorna a Ucrânia, que desta forma não recebe os royalties devidos pela passagem do gás por seu território. Na mesma declaração, os norte-americanos reiteram as sanções que já são aplicadas às empresas que trabalham na construção do gasoduto e afirmam que estas podem ser estendidas caso novas empresas venham a ser identificadas. Trata-se de uma questão delicada por envolver a aliada Alemanha, que defende a construção do gasoduto.

Para completar as recentes rusgas nas relações entre EUA e Rússia, o embaixador russo em Sarajevo escreveu um artigo dizendo que “a Rússia terá que reagir” caso a Bósnia e Herzegovina ingresse na OTAN, aliança militar ocidental liderada pelos EUA. Assim como os ucranianos, os bósnios movimentam-se para se juntar à aliança. O país, além da Sérvia e de Kosovo, cuja soberania ainda está em aberto, são os únicos países dos Balcãs que não aderiram à OTAN. Montenegro juntou-se à aliança em 2017, enquanto a Macedônia do Norte se tornou membro no ano passado.

Ao mesmo tempo, no Alasca, acontecia um “diálogo de alto nível”, entre EUA e China. O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken se encontrou com o Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi e com Yang Jiechi, principal diplomata chinês. Embora tenham terminado em tom ameno, com as trocas de boas intenções de praxe, as conversas começaram em um tom muito duro, com Blinken afirmando que os EUA defendem uma ordem internacional baseada em regras, sem o que o mundo seria muito mais violento. Disse que os EUA consideravam que as ações chinesas no trato da minoria étnica uigur, na região de Xinjiang, e em relação a Taiwan e Hong Kong, além de ataques cibernéticos aos EUA e coerção econômica da China em relação a países aliados dos EUA, violavam essa ordem internacional baseada em regras.

Yang Jiechi respondeu no mesmo tom, afirmando que a China se opõe firmemente à interferência em seus assuntos internos, como seria o caso de Taiwan, Xinjiang e Hong Kong, e que os EUA, além de não estarem em posição de “dar lições” à China, deveriam se concentrar em seus próprios problemas em relação ao respeito aos direitos humanos.

Russos e chineses têm se aproximado bastante, inclusive militarmente. As sanções econômicas que norte-americanos e europeus impuseram aos russos em razão da anexação da Crimeia e da ação militar russa na Ucrânia acabaram por incentivá-los a se aproximar da China, que por sua vez ampliou significativamente seu comércio com os russos e, pela Iniciativa Belt and Road, tem oferecido vários projetos ao enorme vizinho de norte.

Os momentos de crise e de acirramento de tensões exigem estadistas hábeis na escolha dos momentos de escalar e de arrefecer as tensões. Esperemos que este seja o caso de todos os envolvidos.