A guerra está de volta ao continente europeu
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Em pleno século 21, a guerra de alta intensidade está de volta ao continente europeu. Perplexos, fomos acordados na manhã de 24 de fevereiro pelo som das explosões das granadas e dos disparos das armas de fogo.  Eram inacreditáveis as cenas de mísseis atingindo residências, de blindados em chamas e de engarrafamentos gigantescos provocados pelos veículos de ucranianos em fuga.

Os europeus, de uma maneira geral acreditavam que, depois da guerra do Kosovo, nos estertores do século 20, não mais testemunhariam um conflito como o que está em curso na Ucrânia. Os vencedores da Guerra Fria acreditaram que o mundo globalizado, no qual os fluxos de capitais, pessoas, serviços e ideias desconhecem fronteiras, criaria tal interdependência que tornaria os custos de um conflito tão altos que dissuadiriam qualquer iniciativa belicosa.

Além disso, a vitória na disputa contra o bloco socialista tinha levado ao “fim da história”. Todos os países caminhariam inexoravelmente para o modelo democrático liberal do Ocidente. Esse pensamento talvez tenha sido um dos fatores contribuintes para que os vencedores desprezassem a necessidade de se estabelecer um pacto com os derrotados. A Rússia, herdeira da União Soviética, teve suas preocupações de segurança ignoradas e a OTAN, nas duas primeiras décadas do século 21 foi se expandindo em sucessivas ondas em direção ao Leste, passando a incluir países que antes eram repúblicas integrantes da própria URSS. Este avanço causou profundo ressentimento dentre as lideranças russas.

Neste contexto, ocorreram os atentados de 11 de setembro em Nova York, que provocaram a reação dos EUA e foram o evento disparador de uma importante mudança nas estratégias militares: como não havia mais a ameaça de um conflito interestatal e a nova ameaça eram os grupos terroristas, grupos guerrilheiros e entes não-estatais, o esforço principal dos exércitos não deveria mais ser voltado para a preparação para o combate de alta intensidade, interestatal, mas, sim para a “Guerra ao Terror”.

Então, se já “não havia mais guerras”, como escreveu o General britânico Rupert Smith na abertura de sua obra “A utilidade da Força”, de 2005, por que os investimentos em Defesa europeus deveriam se manter nos níveis até então existentes? Para que investir em carros de combate, submarinos, caças, se essas armas eram desnecessárias para se enfrentar terroristas? Essa foi se tornando uma pergunta incômoda para os políticos em todo o mundo, que foram sendo cada vez mais pressionados a diminuírem seus investimentos em Defesa, priorizando outras áreas.

Até que veio o primeiro alerta, com a invasão da Geórgia pelos russos, em 2008, e o consequente reconhecimento de duas novas “repúblicas”, que se declararam independentes: Abecásia e Ossétia do Sul. A ascensão de Xi Jinping ao poder na China, em 2012, e o grande impulso estratégico que ele deu às suas forças armadas, que passaram por uma reorganização e rapidíssima modernização, também fizeram soar alarmes nos estrategistas ocidentais. O terceiro e decisivo alerta foi a anexação da Crimeia pelos russos e o apoio aos separatistas das regiões de Luhansk e Donetsk, na bacia do Rio Don, no Leste da Ucrânia.

Os alertas ecoaram nos centros de estudos estratégicos dos principais países do Ocidente. Em 2017, os EUA lançaram o conceito de Operações em Múltiplos Domínios, já voltado para a guerra de alta intensidade em largas frentes. Em 2018, o país publicou sua estratégia militar, onde “guerra ao terror” perdeu importância, e a nova prioridade passou a ser a competição entre Estados. O documento lista nominalmente os potenciais inimigos: China, Rússia, Irã e Coreia do Norte. À Rússia, o documento atribui ações de violação de fronteiras e a intimidação de países vizinhos.

Reino Unido e França, ambos em 2021, também lançaram revisões de seus documentos norteadores de Defesa. Os britânicos identificavam nominalmente a Rússia como sendo a maior ameaça à segurança europeia. O documento francês seguiu a mesma ideia.

Como se vê, a guerra russo-ucraniana estava anunciada nos documentos estratégicos das principais potências militares do Ocidente. Então, cabe a pergunta: se ela foi antevista pelos estrategistas militares, por que as lideranças políticas não foram capazes de evitá-la?

Essa é uma pergunta muito complexa, para a qual não existe uma explicação simples. Talvez um bom caminho a explorar na busca das respostas seja a análise da incapacidade dos líderes ocidentais de se afastarem das questões domésticas para enxergarem o todo, de identificarem prioridades e de estabeleceram ações com objetivos político-estratégicos claramente definidos. A inércia internacional face às sucessivas violações russas do Direito Internacional, em 2008 e 2014, certamente pavimentou o caminho para a guerra. Esperemos que, desta vez, a lição seja aprendida. Forças militares minimamente capazes não se improvisam, assim como vácuos de poder podem custar muito caro à segurança internacional.

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Este post tem um comentário

  1. afquincas@gmail.com

    Professor Paulo, muito obrigado por tanta informação precisa e valiosa.
    OBS: Acredito que a guerra era da vontade dos europeus e americanos, para testar novas estratégias de guerra financeira , enfraquecimento financeiro da Rússia , limitando-a em vários aspectos, e mostrar a China os custos de invasões armadas.

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