A nova (e inédita) Estratégia de Segurança da Alemanha
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A Alemanha divulgou sua Estratégia de Segurança. Trata-se de um documento inédito no pós-guerra, no qual o governo alemão divulga as bases de uma segurança que se quer integrada e voltada para o cidadão alemão, para que este possa “continuar vivendo em paz, com liberdade e segurança”.

O documento é assinado pelo chanceler Olaf Scholz e pela ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock e afirma que o ambiente de segurança no qual a Alemanha está inserida vive um momento de virada, de “divisão de águas”: na expressão em alemão, um Zeitenwende. É uma obvia referência à situação internacional, de guerra na Europa e de acirramento da competição sistêmica entre EUA e China.

Porém, trata-se também de um Zeitenwende no que se refere ao pensamento estratégico alemão. O fato desse documento ser o primeiro do gênero é sintomático do trauma que a sociedade alemã carrega desde o fim da 2ª guerra mundial, que se refletiu na dificuldade de desenvolvimento de um pensamento estratégico voltado para o fortalecimento de seu aparato de defesa. Agora, os alemães correm atrás do prejuízo, anunciando que “o governo federal fará da Bundeswehr uma das forças armadas convencionais mais eficazes da Europa nos próximos anos, capaz de responder e agir rapidamente em todos os momentos”.

Esse anúncio é feito com muito cuidado, quase se desculpando. O texto esclarece que a Alemanha tem consciência de sua história e por isso é grata pela reconciliação com os países vizinhos, em especial com a França, e que continua a assumir responsabilidade pelo direito de Israel de existir.

O documento aponta a Rússia como a mais significativa ameaça para a segurança Euro-Atlântica. Os estrategistas alemães apontam para um mundo crescentemente multipolar, em que alguns países estariam tentando mudar a ordem internacional, motivados por suas percepções acerca de uma rivalidade sistêmica. Nesse contexto, a China é apresentada como um parceiro, um competidor e um rival.

Ainda na apresentação da conjuntura mundial, o texto identifica que guerras, crises e conflitos nas vizinhanças da Europa têm um efeito adverso na segurança da Alemanha e da própria Europa. Estados frágeis nesse entorno estariam se tornando paraísos para grupos terroristas, enquanto conflitos internacionais se ampliariam para Estados vizinhos. Em acréscimo a essa realidade, os estrategistas alemães apontam para outras ameaças complexas: terrorismo, extremismo, crime organizado, ataques cibernéticos, todos com capacidade de causar graves danos à segurança alemã.

A crise climática também é definida como uma grave ameaça à própria subsistência das pessoas e aos fundamentos da economia. Ela ameaça milhões de pessoas no mundo, pela destruição do meio-ambiente e consequentes fome, pobreza e doenças.

Para fazer face a tudo isso, a estratégia tem seu foco no conceito de Segurança Integrada. Esta é definida como sendo aquela que reúne todos os instrumentos à disposição do Estado que, sendo afetos às questões de segurança, sirvam para proteger o cidadão alemão de ameaças externas. Essa abordagem parte da premissa de que a segurança é parte e objetivo de todas as políticas, de forma que, se ela se deteriorar, cada política, em todos os setores governamentais, será afetada.

O foco da segurança, de acordo com a Estratégia, seria o indivíduo, a garantia de seus direitos democráticos e de suas liberdades. Na medida que isso tudo seja garantido, a estabilidade do Estado e da sociedade estariam garantidas. Essa ênfase no indivíduo é ainda mais salientada quando a Estratégia se afirma alinhada com uma política externa feminista, que defende os direitos e a representatividade de mulheres e de grupos marginalizados.

 

Os alemães desejam que sua segurança integrada seja defensiva, resiliente e sustentável. Ao ser defensiva, ela deverá possuir uma capacidade dissuasória crível, no âmbito da OTAN, que garanta que eventuais inimigos se abstenham de agir contra a Aliança. Para isso, o governo alemão informa que vai fortalecer suas forças armadas, consideradas “o pilar da dissuasão convencional na Europa”. Assim, se informa que a Alemanha perseguirá o objetivo de garantir investimentos de 2% do PIB em defesa, aumentará seus investimentos em proteção a infraestruturas críticas, diplomacia efetiva, prevenção e atuação em desastres e engajamentos em assistência humanitária. Tudo isso com o objetivo de tornar as forças armadas alemãs “uma das mais efetivas forças convencionais da Europa”.

A resiliência é o segundo aspecto destacado. Trata-se de uma qualidade necessária em caso de conflito. Ela depende do Estado, da sociedade civil e do setor privado, que deverão assegurar que, na crise, o governo continue funcionando, que a população tenha suas necessidades básicas atendidas e que as forças armadas sejam supridas com toda a logística necessária. Defender a sociedade alemã da espionagem, sabotagem, e interferência estrangeira ilegítima, bem como da desinformação, também é uma forma de se fortalecer a resiliência, e por essa razão ações nesse sentido também são destacadas na Estratégia.

Quando destaca o aspecto da sustentabilidade, a Estratégia aponta para o combate à crise climática, apontada como uma ameaça à própria subsistência da humanidade, com impactos para a estabilidade entre países e regiões. Assim, os alemães se impõem o objetivo de “reduzir drasticamente as emissões, que atualmente ainda estão em ascensão e alcançar resultados urgentemente. Ao mesmo tempo, perseguir estratégias de adaptação que limitem os impactos da crise climática, de modo a proteger tanto pessoas quanto espaços naturais”. Nesse sentido é interessante destacar que os alemães afirmam no documento que “onde os governos minem a segurança e o estado de direito, iremos centrar a nossa cooperação em maior medida em atores não estatais, no nível local e em abordagens multilaterais.” Interessante notar que essa afirmação reforça temores recorrentes em países em desenvolvimento, de que a pauta ambiental possa ser instrumentalizada para o atingimento de interesses geopolíticos inconfessáveis, uma vez que quem julgaria que os governos estariam “minando a segurança climática” seria o próprio Estado alemão.

O documento alemão, de 73 páginas, cujo espírito tentei captar na análise acima, é bastante abrangente ao tratar de ameaças não-tradicionais à segurança. Mas, se comparado aos documentos congêneres das grandes potências, falha ao tratar das ameaças mais tradicionais, de cunho geopolítico, que saltam aos olhos no atual momento da história. Mas, é um primeiro passo, que mostra uma Alemanha que volta ao jogo geopolítico, praticamente empurrada pela invasão russa à Ucrânia. Os alemães ainda estão cruzando seu Zeitenwende. E todo mundo certamente vai prestar muita atenção.

Leia a Estratégia de Segurança aqui:

Estrategia nacional de segurança Alemanha

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